Texto de João-Maria Nabais
Publicado no suplemento das Artes e Letras do jornal O Primeiro de Janeiro do dia 2 de Junhi de 2008
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Preâmbulo
Ao longo da História da Humanidade, a acção e o trabalho da mulher foram subalternizados e de certo modo negligenciados, já que estava obedientemente dependente sob a sombra tutelar omnipresente do homem. Durante muitos séculos, sempre estiveram destinados ao homem todos os ofícios mais condizentes com o fenótipo da sua estrutura morfológica, de início, representada na figura do nómada, do caçador-recolector (recolhendo o seu sustento da Natureza), do guerreiro, cavaleiro ou militar, evoluindo à posteriori para tarefas remuneradas no círculo exterior à família. Assim, desde tempos imemoriais, a ocupação da mulher resumia-se sobretudo à sua função de cônjuge, mãe e dona de casa.
Após um longo e lento processo evolutivo, desenvolvido ao longo de milhares de anos, a matriz primacial, para a sua emancipação, vai radicar na Revolução Francesa e nos acontecimentos daí decorrentes com a proclamação dos princípios universais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, simbolicamente, imortalizados pela imagem de uma mulher, decidida e corajosa, disposta a saltar da tela, representada no quadro A Liberdade Guiando o Povo, pintado em 1830 por Eugène Delacroix. Em paralelo, a seguir à Revolução Industrial, muitas mulheres passam a exercer uma actividade laboral, embora a um nível remuneratório inferior à do homem. Lutando contra essa discriminação, algumas na viragem para o século XX, encetam outras formas de luta, ex. greves reivindicativas, tanto nos EUA como na Europa que vão levar à sua emancipação, drasticamente acentuada a seguir à última Grande Guerra.
A partir de agora, o papel feminino no mundo globalizado pós-guerra, produz uma mudança decisiva nos hábitos e nas tendências do costumado núcleo familiar, tornando-se a mulher maioritária em vários segmentos da sociedade moderna, tanto ao nível do ensino, da educação (basta ver a larga percentagem de mulheres a frequentar os cursos médios-superiores, em múltiplos ramos e especialidades e, o número igualmente elevado de licenciadas que todos os anos saem das nossas universidades, à conquista do mercado livre de trabalho, hoje cada vez mais restrito e competitivo, mesmo naquelas profissões que até há bem pouco tempo, estavam só destinadas a homens), bem como em lugares de chefia e mesmo na política. Hoje, apesar de serem maioria em muitas das profissões mais importantes, a discriminação (já para não falar do crónico problema da inserção sócio-laboral dos deficientes) mantém-se a nível salarial, na segurança do emprego, no rendimento de substituição na doença, na percentagem de desempregados ou nos casos em situação de reforma.
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A linha do tempo no universo musical
Pode-se dizer que a música tem origem nos primórdios da civilização. A palavra Música deriva da arte das musas, numa referência à mitologia grega, verdadeiro marco da antiguidade clássica donde deriva toda a cultura ocidental.
Já na Pré-História, o ser humano comunicava com a ajuda de sinais sonoros recorrendo a paus, ramos, troncos, pedras, osso, etc., para tentar imitar os sons que diariamente ouvia na natureza, incluindo os gritos e cantos emitidos por pássaros e outros animais.
É a partir deste momento singular quando, intencionalmente, o Homem começa a produzir sons que se inicia a longa caminhada da História da Música. Os primeiros vestígios podem-se encontrar nas pinturas rupestres, onde aparecem desenhados os mais antigos apetrechos rudimentares de música, em cerimónias e ritos sociais, na evocação das forças da natureza, no culto dos mortos, na caça e na exaltação à guerra tribal, isto é, seria uma música de carácter mágico-religioso e ritualista. Primeiramente, usaria a voz e outros sons pela percussão de partes do corpo, ex. batendo as mãos e os pés, mas ao longo dos tempos, foi construindo outros utensílios, ex. à base de madeira, para acompanhar essas músicas e danças primitivas, cada vez mais elaboradas de modo, a melhor agradar aos deuses.
Nas primeiras grandes civilizações, a música induzia uma acção positiva em muitas das actividades sociais, outras vezes, era empregue como consolo ou necessidade lúdica.
Um bom exemplo é o Egipto dos faraós, em que a música e a dança acompanhavam de perto a vida do dia-a-dia, sendo a maioria dos personagens mulheres. A harpa, a lira e um género de alaúde eram muito usados, tanto na corte soberana como auxiliar e suporte no trabalho dos campos. A música sendo considerada de origem divina, estaria muito ligada ao culto das múltiplas divindades presentes.
Ao longo dos tempos, a música vai conquistando o seu espaço, com a aquisição de novas ferramentas: o órgão nas igrejas; o alaúde, a charamela (flauta rústica), a cítara, a sanfona, o realejo, a rabeca, o saltério, integrados na música popular profana. É na época dos menestréis e trovadores que se acentua o aperfeiçoamento da escrita musical. Surge na Idade Média, por esta altura, uma mulher notável que se destaca do panorama musical, sendo considerada uma das mais importantes compositoras de todos os tempos, o seu nome Hildegarda, natural de Bingen, uma monja beneditina alemã, mística, filósofa, visionária, escritora (escreve também sobre medicina natural, tratamentos de diversas doenças, alimentação, pedras preciosas, etc.) e compositora, conhecida como a Sibila do Reno. A sua música, preservada ao fim de novecentos anos está hoje disponível em CD, sendo objecto de larga difusão.
Com a Renascença, o homem assume o seu papel de protagonista nas Artes Humanitatis. A Europa inicia assim, uma longa caminhada para a secularização, ou laicização que vai levar ao afastamento da Igreja dos caminhos do poder e do controlo do saber. Até ao século XVI, a história musical progride quase exclusivamente no plano vocal. A música depressa irradia, com a ajuda preciosa da impressão musical. Maddalena Casulana (c.1544-c. 1590), alaudista e cantora do Renascimento tardio, será a primeira compositora a ver a sua obra (essencialmente madrigais) impressa e publicada nos anais da música ocidental.
A transição para o Barroco é um tempo de grande criatividade. A música instrumental apelando a novas sonoridades atinge um nível equiparado à da polifonia vocal religiosa. Há um progresso na prática do fabrico e na arte, com a manufactura de novos instrumentos de corda, tais como: o violoncelo, violino, viola da gamba, de arco e contrabaixo. Muito se deve este aperfeiçoamento, a Antonius Stradivarius, célebre luthier1 italiano. As peças orquestrais adquirem uma dificuldade técnica superior e ganham um renovado e maior esplendor. Os instrumentos de tecla acompanham a mesma evolução e o cravo tal como o violino alcançam o seu estatuto de solista. Surge a Ópera e o Ballet.
Neste tempo, há algumas poucas mulheres que se destacam, entre elas Francesca Caccini (1587-c.1640), mais conhecida, entre outros motivos, por ser a primeira compositora de sempre, a escrever uma ópera (talvez, a figura musical feminina mais importante entre os séculos XII e XIX), e Leonora Duarte (1610-1678), solista, também ela compositora, natural de Antuérpia, duma próspera família de genealogia sefardita portuguesa fugida à inquisição.
A importância e o papel das mulheres na música, dita clássica
“… Desejo mostrar ao mundo, a errónea presunção, tanto como pode a arte musical, de que só os homens possuem os dons da arte e do intelecto e de que estes dons nunca são atributos da mulher… “ (Maddalena Casulana)
Com o Humanismo, a datar dos séculos XIV-XV, a Europa é agitada por um amplo movimento de renovação cultural - o Renascimento, assente na redescoberta e reinterpretação da cultura clássica greco-romana.
As artes começam a centrar de novo, o ideal de harmonia, equilíbrio e beleza no corpo humano. E quem mais, senão a mulher para protagonizar esse modelo e arquétipo de serenidade e perfeição, isto é, a emoção estética do belo. Daqui a sua influência nas ciências e nas artes. A mulher torna-se a musa inspiradora tanto para poetas, músicos e artistas como em poemas (madrigais) e canções. A música passa a fazer parte da sociedade artística e intelectual desse tempo.
Através de pintores como Giorgione, Jan van Hemessen, Caravaggio, Jan Vermeer, Antoine Watteau, François Boucher, Fragonard, a figura feminina começa ser representada muitas vezes em lugar de destaque, cantando ou tocando vários instrumentos.
Até aqui, era crença assente que a mulher não possuía as qualidades emocionais e intelectuais obrigatórias para apreender a luz do conhecimento, sendo até considerada nociva essa mesma aprendizagem, porque podia desviá-la da sua função primacial de mulher e mãe.
Além do mais, as mulheres não eram bem aceites, sendo consideradas pessoas pouco dignas, se fizessem parte como solistas ou intérpretes, em espaços onde ate aí os homens tradicionalmente dominavam, como seriam as orquestras e os salões de ópera, melhor dito, a arte da música estava-lhes vedada como modelo respeitável de profissão. Este espírito vigente, ao atravessar transversalmente toda a história da música, anula a esperança de uma possível carreira, o que explica os poucos nomes que se distinguiram no panorama musical feminino até ao passado século.
Segundo consta, a própria Luísa Todi, já famosa além-fronteiras, ao voltar a Portugal em finais de setecentos, precisou de uma autorização especial, pois por cá, era ainda proibido às mulheres actuar em público. Essa liberdade, só irá verdadeiramente acontecer, em plenitude, na sequência do 25 de Abril.
Com o advento do século XIX e do Romantismo, os músicos tornam-se livres de tutelas, passando a ser também respeitados no seu estatuto profissional, ao adquirir o direito de auferir um salário justo e adequado durante as suas tournées anuais. Alguns passam a ser venerados como as actuais estrelas de cinema e da pop-music.
A mulher começa, gradualmente, a ter um papel mais participativo na música sendo agora, socialmente, melhor aceite, num período de maior liberdade na expressão de paixões e sentimentos. No entanto, as suas próprias composições têm dificuldade em chegar às salas de concerto e as obras quase nunca são publicadas.
Vários nomes sobressaem, numa listagem de mulheres compositoras que viveram nos últimos 250 anos, feita por Diana Ambache (a única mulher da Grã-bretanha, a fundar e a dirigir a sua orquestra clássica de câmara), tais como: Marianne Martinez (1744-1812), Louise Farrenc (1804-1875), Fanny Mendelssohn (1805-1847), Ethyl Smith (1858-1944), Nadia Boulanger (1887-1979), Germaine Tailleferre (1892-1983).
Além destas, é justo sublinhar a pessoa de Clara Schumann - “No que à arte diz respeito, você é suficientemente homem” (Joseph Joachim e o seu pensamento sobre Clara Schumann) -, ela própria proveniente de uma família de músicos, que vai conquistar uma emérita carreira de pianista, concertista e compositora alemã, após estar casada com o grande músico e criador romântico Robert Schumann, até à morte trágica deste num hospício para loucos em 1856. É uma das mais conhecidas intérpretes de sempre, ao mesmo tempo que teve de lutar contra a natural resistência e misoginia do espírito dominante à época - para a mulher estava destinada o cuidar da casa, aprender a bordar e costurar, além da educação dos filhos; aquelas poucas que não professassem num convento, o máximo a que podiam aspirar era dar lições de piano aos filhos das elites.
Com o apoio incondicional do seu amigo de longa data, Johannes Brahms, compõe uma série de peças para piano, orquestra, música de câmara e lieders, sendo uma das mais admiráveis executantes do repertório romântico. É hoje pacífico aceitar como um dos maiores talentos musicais desde o tempo em que viveu.
Já nessa altura e ainda hoje, embora menos, o universo profissional da música tal como uma arte apolínea tem sido dominada pelo homem, o que cria as maiores dificuldades de afirmação à mulher, mesmo que demonstre boas qualidades técnicas e especial sensibilidade interpretativa. Presentemente, o panorama musical está mudar, vendo-se até uma coisa impensável há uns anos atrás, mulheres na direcção orquestral.
E os últimos estudos mostram que as mulheres consomem cada vez mais cultura em relação aos seus parceiros e competidores mais directos, os homens. Lêem mais, são assíduas frequentadoras do teatro, do cinema, e vão mais vezes a museus e exposições e, estão mais atentas às últimas novidades.
1 Derivação da palavra francesa luthier (fabricante de instrumentos de corda), de luth (alaúde) mais o sufixo, -ier. (Dic. António Houaiss).