31.3.07

A Escola face à barbárie consumista

Texto de Philippe Meirieu, publicado no Le Monde de 22 de Março

«a questão escolar não pode ser pensada independentemente da própria organização da nossa sociedade»

«ousar interrogar se a educação na democracia e o todo-poderoso mercado são coisas compatíveis.»

Em França os debates sobre a educação são frequentemente reduzidos à escola. A história ajuda a compreender o facto: nenhum outro país se construiu na base e sobre o seu sistema escolar mais do que o nosso. E se não restauramos a esperança numa instituição que está hoje em larga medida reduzida a uma estação de triagem, devemos de qualquer forma encarar de frente o descontentamento dos jovens e a depressão que atinge os professores. Mesmo quando o fatalismo triunfa e o desencorajamento entre os professores alastra, precisamente naqueles que encarnam o futuro. Há muito, com efeito, para nos inquietarmos…

Não estamos tranquilos, de maneira alguma. Os sintomas estão aí e não param de se manifestar: inquietações sobre a descida do nível de exigências, interrogações sobre a autoridade, polémicas sobre as responsabilidades recíprocas dos professores e dos pais, estupefacção perante os actos de violência que escapam a qualquer entendimento. Mas a verdade é que a questão escolar não pode ser pensada independentemente da própria organização da nossa sociedade e mais concretamente do estatuto que a sociedade confere à infância.


Defrontamo-nos com um fenómeno completamente inédito: o capricho, ( «caprice»), que não era senão uma etapa do desenvolvimento individual da criança, tornou-se o princípio organizador do nosso desenvolvimento colectivo. Sabíamos que a criança atravessava sempre por uma fase marcada pelo «posso, quero, e mando» e que se julgava poder mandar no mundo. Quer se designasse por narcisismo inicial ou por egocentrismo infantil o certo é que o fenómeno estava lá: a criança, apanhada pelos seus desejos, que ainda não sabe nomear, nem inscrever na relação que mantém com outrem, é tentada a levá-los à prática. O educador terá que o acompanhar, ensiná-lo a não reagir de imediato pela violência ou por uma fuga para diante, de forma a ganhar tempo para o interpelar, antecipando-se para o levar a reflectir e a metabolizar as suas pulsões, enfim, a construir a sua vontade. No fundo, trata-se de uma questão de pedagogia.


Não se sai da infância sozinho: há necessidade de se inscrever nas configurações sociais que dão sentido à espera e que permitem entrever nas inevitáveis frustrações as promessas de satisfações futuras. Questão nunca resolvida: a infância molda-nos na maturidade e a tentação é grande, em qualquer idade da vida, para abolir a alteridade e instalarmo-nos no trono da tirania.


Hoje a máquina social, toda ela, em vez de fornecer pontos de apoio à criança para se afastar da infantilidade, repercute até ao infinito o princípio que ela deveria justamente saber afastar-se: «As tuas pulsões são ordens». É assim que a pulsão de comprar se torna o motor do nosso desenvolvimento económico. A publicidade curto-circuita qualquer reflexão e exalta constantemente a passagem à acção imediata. A televisão move-se mais depressa que os telespectadores para ao agarrar mais ao ecrã e impedi-los de passar a outro canal. Os telemóveis reduzem as relações humanas à gestão da injunção imediata. Parece que tudo tende a murmurar ao ouvido do adolescente: « Agora, de imediato, a qualquer preço».


Não é de espantar que nestas condições a tarefa da educação se tornou mais espinhosa: os pais conhecem bem a quantidade de energia necessária a despender para contrariar as modas, as marcas, os estereótipos impostos pelas «rádios jovens» e que são replicados pelos restantes media. Os professores constatam no quotidiano quanto é difícil construir espaços de trabalho efectivo, que permita a concentração, a formação e a afirmação de si próprio e o empenhamento numa dada tarefa. Eles vêem os seus alunos a chegar às salas de aula com um telecomando ligado ao cérebro, todo um high-tech que dinamita literalmente os rituais escolares que eles tentam construir. A preocupação principal dos professores – e que os angustia – passou a ser o que poderá baixar a tensão para poder favorecer a atenção. E o mal-estar é visível: menos no nível que baixa do que na tensão que sobe.


Face a esta deriva da infantilidade, o pensamento mágico faz figura de salvador: restaurar a autoridade, mudar os métodos de leitura e aprender as quatro operações desde os primeiros anos são apresentados como os meios capazes de salvar a escola e a república! Triunfo da prescrição tecnocrática quando o que era preciso era criar obstinadamente as situações pedagógicas em que a criança e o jovem pudessem descobrir, na acção, que o prazer do instante é mortífero e que não há desejo possível senão na construção da temporalidade.


Perante esta modernidade que produz os meios da barbárie, o pensamento totalitário avança insidiosamente. Alimenta-se do medo e desenvolve-se sempre segundo a mesma lógica: identificar, o mais cedo possível, os desvios individuais, circunscrevê-los, isolá-los, medicalizar as «perturbações», classificar e criar tipologias de forma a separar os indivíduos para os sujeitar a uma lógica de serviço controlado por gabinetes privados. Trata-se assim de fazer triunfar uma normalização soft, plebiscitada pelo individualismo liberal, quando o que era preciso era misturar os destinos, pôr a circular a palavra, permitindo os sujeitos dedicarem-se a projectos improváveis, criar ocasiões e implicá-los na produção do colectivo.


Como a crise da escola não suscita os questionamentos fundamentais acaba-se sempre por se adoptar medidas técnicas limitadas. Trata-se, acima de tudo, da crise da educação que importa tratar colocando as questões que durante muito tempo ficaram escondidas: vamos continuar a considerar a criança como um mandante de compras, torná-los cativos da publicidade? Não será necessário levar mais a sério os media – em especial, o audiovisual – fazendo ver que a sua liberdade de expressão exerce-se numa democracia em simultâneo com o dever de educação? Não será preciso repensar a gestão de tempo da infância, aligeirando, pelo menos, parcialmente, a pressão avaliativa? Não será altura de relançar a educação popular para fazer face ao frenesim consumista em matéria de lazer e cultura? Não será indispensável apoiar a parentalidade, e tornar isso uma prioridade política, deixando de ver os pais em dificuldades como pouco menos que delinquentes ou doentes mentais?


Certamente que a escola terá um lugar nestes dispositivos: interrogando-se sobre a maneira de lutar contra as coagulações dos alunos que têm «aulas…, estruturando grupos de trabalho exigentes em que cada um tenha um lugar e não seja tentado a ocupar todo o espaço…, e articulando uma pedagogia da descoberta, que dá sentido aos saberes, com uma pedagogia do rigo qure permita a sua apropriação, desenvolvendo uma verdadeira educação artística, física e desportiva que ajuda cada qual a passar da gesticulação ao gesto…, vectorizando o tempo escolar por uma «pedagogia de obra-prima» de forma a que cada um possa inscrever-se num projecto e deixe de exigir tudo, de imediato, e a qualquer momento.


Todos os níveis da escola e todas as disciplinas escolares podem e devem implicar-se nesta empresa. Tal como todos os actores sociais. Imaginando e aplicando projectos educativos capazes de ser um contrapeso ao capricho globalizado. Mas ousando interrogar também, se a educação na democracia e o todo-poderoso mercado são coisas compatíveis. E quais as alternativas que podemos inventar para sair do impasse.