Texto de Philippe Meirieu, publicado no Le Monde de 22 de Março
«a questão escolar não pode ser pensada independentemente da própria organização da nossa sociedade»
«ousar interrogar se a educação na democracia e o todo-poderoso mercado são coisas compatíveis.»
Em França os debates sobre a educação são frequentemente reduzidos à escola. A história ajuda a compreender o facto: nenhum outro país se construiu na base e sobre o seu sistema escolar mais do que o nosso. E se não restauramos a esperança numa instituição que está hoje em larga medida reduzida a uma estação de triagem, devemos de qualquer forma encarar de frente o descontentamento dos jovens e a depressão que atinge os professores. Mesmo quando o fatalismo triunfa e o desencorajamento entre os professores alastra, precisamente naqueles que encarnam o futuro. Há muito, com efeito, para nos inquietarmos…
Não estamos tranquilos, de maneira alguma. Os sintomas estão aí e não param de se manifestar: inquietações sobre a descida do nível de exigências, interrogações sobre a autoridade, polémicas sobre as responsabilidades recíprocas dos professores e dos pais, estupefacção perante os actos de violência que escapam a qualquer entendimento. Mas a verdade é que a questão escolar não pode ser pensada independentemente da própria organização da nossa sociedade e mais concretamente do estatuto que a sociedade confere à infância.
Defrontamo-nos com um fenómeno completamente inédito: o capricho, ( «caprice»), que não era senão uma etapa do desenvolvimento individual da criança, tornou-se o princípio organizador do nosso desenvolvimento colectivo. Sabíamos que a criança atravessava sempre por uma fase marcada pelo «posso, quero, e mando» e que se julgava poder mandar no mundo. Quer se designasse por narcisismo inicial ou por egocentrismo infantil o certo é que o fenómeno estava lá: a criança, apanhada pelos seus desejos, que ainda não sabe nomear, nem inscrever na relação que mantém com outrem, é tentada a levá-los à prática. O educador terá que o acompanhar, ensiná-lo a não reagir de imediato pela violência ou por uma fuga para diante, de forma a ganhar tempo para o interpelar, antecipando-se para o levar a reflectir e a metabolizar as suas pulsões, enfim, a construir a sua vontade. No fundo, trata-se de uma questão de pedagogia.
Não se sai da infância sozinho: há necessidade de se inscrever nas configurações sociais que dão sentido à espera e que permitem entrever nas inevitáveis frustrações as promessas de satisfações futuras. Questão nunca resolvida: a infância molda-nos na maturidade e a tentação é grande, em qualquer idade da vida, para abolir a alteridade e instalarmo-nos no trono da tirania.
Hoje a máquina social, toda ela, em vez de fornecer pontos de apoio à criança para se afastar da infantilidade, repercute até ao infinito o princípio que ela deveria justamente saber afastar-se: «As tuas pulsões são ordens». É assim que a pulsão de comprar se torna o motor do nosso desenvolvimento económico. A publicidade curto-circuita qualquer reflexão e exalta constantemente a passagem à acção imediata. A televisão move-se mais depressa que os telespectadores para ao agarrar mais ao ecrã e impedi-los de passar a outro canal. Os telemóveis reduzem as relações humanas à gestão da injunção imediata. Parece que tudo tende a murmurar ao ouvido do adolescente: « Agora, de imediato, a qualquer preço».
Não é de espantar que nestas condições a tarefa da educação se tornou mais espinhosa: os pais conhecem bem a quantidade de energia necessária a despender para contrariar as modas, as marcas, os estereótipos impostos pelas «rádios jovens» e que são replicados pelos restantes media. Os professores constatam no quotidiano quanto é difícil construir espaços de trabalho efectivo, que permita a concentração, a formação e a afirmação de si próprio e o empenhamento numa dada tarefa. Eles vêem os seus alunos a chegar às salas de aula com um telecomando ligado ao cérebro, todo um high-tech que dinamita literalmente os rituais escolares que eles tentam construir. A preocupação principal dos professores – e que os angustia – passou a ser o que poderá baixar a tensão para poder favorecer a atenção. E o mal-estar é visível: menos no nível que baixa do que na tensão que sobe.
Face a esta deriva da infantilidade, o pensamento mágico faz figura de salvador: restaurar a autoridade, mudar os métodos de leitura e aprender as quatro operações desde os primeiros anos são apresentados como os meios capazes de salvar a escola e a república! Triunfo da prescrição tecnocrática quando o que era preciso era criar obstinadamente as situações pedagógicas em que a criança e o jovem pudessem descobrir, na acção, que o prazer do instante é mortífero e que não há desejo possível senão na construção da temporalidade.
Perante esta modernidade que produz os meios da barbárie, o pensamento totalitário avança insidiosamente. Alimenta-se do medo e desenvolve-se sempre segundo a mesma lógica: identificar, o mais cedo possível, os desvios individuais, circunscrevê-los, isolá-los, medicalizar as «perturbações», classificar e criar tipologias de forma a separar os indivíduos para os sujeitar a uma lógica de serviço controlado por gabinetes privados. Trata-se assim de fazer triunfar uma normalização soft, plebiscitada pelo individualismo liberal, quando o que era preciso era misturar os destinos, pôr a circular a palavra, permitindo os sujeitos dedicarem-se a projectos improváveis, criar ocasiões e implicá-los na produção do colectivo.
Como a crise da escola não suscita os questionamentos fundamentais acaba-se sempre por se adoptar medidas técnicas limitadas. Trata-se, acima de tudo, da crise da educação que importa tratar colocando as questões que durante muito tempo ficaram escondidas: vamos continuar a considerar a criança como um mandante de compras, torná-los cativos da publicidade? Não será necessário levar mais a sério os media – em especial, o audiovisual – fazendo ver que a sua liberdade de expressão exerce-se numa democracia em simultâneo com o dever de educação? Não será preciso repensar a gestão de tempo da infância, aligeirando, pelo menos, parcialmente, a pressão avaliativa? Não será altura de relançar a educação popular para fazer face ao frenesim consumista em matéria de lazer e cultura? Não será indispensável apoiar a parentalidade, e tornar isso uma prioridade política, deixando de ver os pais em dificuldades como pouco menos que delinquentes ou doentes mentais?
Certamente que a escola terá um lugar nestes dispositivos: interrogando-se sobre a maneira de lutar contra as coagulações dos alunos que têm «aulas…, estruturando grupos de trabalho exigentes em que cada um tenha um lugar e não seja tentado a ocupar todo o espaço…, e articulando uma pedagogia da descoberta, que dá sentido aos saberes, com uma pedagogia do rigo qure permita a sua apropriação, desenvolvendo uma verdadeira educação artística, física e desportiva que ajuda cada qual a passar da gesticulação ao gesto…, vectorizando o tempo escolar por uma «pedagogia de obra-prima» de forma a que cada um possa inscrever-se num projecto e deixe de exigir tudo, de imediato, e a qualquer momento.
Todos os níveis da escola e todas as disciplinas escolares podem e devem implicar-se nesta empresa. Tal como todos os actores sociais. Imaginando e aplicando projectos educativos capazes de ser um contrapeso ao capricho globalizado. Mas ousando interrogar também, se a educação na democracia e o todo-poderoso mercado são coisas compatíveis. E quais as alternativas que podemos inventar para sair do impasse.