2.8.05

O casal e a sua função alienante


No programa comum das mulheres que apareceu em França em Fevereiro de 1978 era possível ler:
«Se o objectivo é a supressão da família patriarcal , então é necessário, para alcançar esse fim, suprimir a coabitação do casal durante, pelo menos, uma geração.»
As reacções a esta afirmação não se fizeram esperar. No Le Monde de 12 de Fevereiro aparecia a resposta:
«O ódio, eis o que se desprende de cada página deste singular programa comum propostas às mulheres. E que explica o incómodo e o mal-estar que um homem não deixa de sentir quando o lê, por mais compreensivo, resignado, masoquista que possa ser. E não podemos deixar de pensar que atiçando assim o ódio, os autores desacreditam ainda mais a causa que pretendem defender, a causa das mulheres.»

Será que aquelas afirmações se mantém actuais?. Pensamos que sim, pois que o sistema económico está baseado em grande medida sobre a ideia do casal e da família.
Os benefícios concedidos na legislação aos casais permitem garantir o funcionamento de uma economia baseada na exploração de um(a) pelos outro(a)s. Já para não falar que tais benefícios têm como resultado acantonar as mulheres nos papéis tradicionais e travar qualquer veleidade de liberdade pessoal. Ocultam ainda certos valores que acabam assim por estarem presentes quer os meios laicos ou religiosos.

Três quartos do tempo do casal significam a alienação de uma pessoal por outra, quer seja um meio familiar mais vasto quer esteja reduzido a dois. O mais frequente é a mulher sofrer a alienação, mas o inverso também existe. Esta alienação traduz-se por um enquadramento moral, psicológico e sexual com consequências para o indivíduo.
Assim, no plano moral, o casal está estruturado de tal modo que a liberdade individual praticamente não existe. A noção de fidelidade é quase intrínseca à de casal. A dinâmica pessoal fica associada ao casal e não existe senão através desse binómio.

Quanto ao plano psicológico, a noção de casal liga-se a um comportamento psicológico cheio de constrangimentos, a maior parte deles cabe à mulher sofrer: elas devem seduzir, mas não serem sedutoras ( para a salvaguarda do casal), submissas aos desejos dos seus companheiros.
Inumeráveis artigos jornalísticos reproduzem tais valores, ainda que a lógica consumista actual submeta os dois elementos do casal a uma pressão diferenciada, o que se traduz por conceder maior dinamismo ao tradicional papel feminino.
Por seu turno o regime sexual vigente baseia-se na hetero-normatividade. E mesmo quando as práticas sexuais ditas desviantes são aceites e integradas, elas são-no para a salvaguarda do casal, para a manutenção da sua coesão.
E o recrudescimento actual de uma sexualidade agressiva, senão mesmo violenta, visa mais satisfazer a libido masculina que outro coisa.

No meio de tudo isto, onde fica a liberdade individual?
Claro está que desta concepção bivalente normalizada deriva uma opção de vida restritiva, um plano de vida mais ou menos formatado.

Quantas mulheres e homens estão prontos a investir numa acção política, com os consequentes custos na vida do casal?
Desde a primeira infância os seres humanos são educados e predestinados a certas funções. Os brinquedos estão lá para orientar as escolhas dos futuros adultos. Quantos pais podem dizer que escaparam à influência insidiosa do comércio que determina a escolha das prendas, dos brinquedos, dos jogos e todas a quinquilharia que povoa o universo das crianças de hoje?
Até a própria literatura infantil reproduz tais esquemas. Três quartos dos heróis são masculinos e, quando são femininos, as heroínas revelam-se as mais das vezes em áreas artísticas ou adjacentes.
Para escapar a esta espécie de predestinação chocamos invariavelmente com obstáculos insuperáveis. A mulheres agricultoras que pretendiam gerir as suas explorações sem intervenção do homem são confrontadas por polidas desculpas dos bancos que lhes recusam o financiamento. Todo este pequeno exemplo mostra até que ponto somos influenciado(a) pelas representações sexistas que nos impuseram e somos levado(a)s a reproduzir.

Como lutar

O lugar da mulher no mesmo pé de igualdade do homem só pode existir numa sociedade em que a igualdade seja uma realidade viva, ou como uma reivindicação política. Quando o objectivo é explorar o trabalho doméstico da mulher, utilizá-la para empregos subalternos, e sub-pagar as mulheres com iguais qualificações – uma sociedade que permita coisas como estas exige obviamente um atitude e uma tomada de posição política.
O sistema capitalista é baseado na exploração das pessoas uma vez que os seus objectivos é alcançar o máximo lucro, se preciso for pagando o mínimo aos assalariados. No caso das mulheres essa exploração é ainda mais agravada com a divisão sexual das tarefas domésticas.
Isso exige uma revolução que bem pode começar com o derrube dos mitos patriarcais e transformação das mentalidades, para além de uma visão igualitária entre os homens e mulheres. As lutas a travar devem fazer-se tanto na esfera privada como na esfera pública junto da quem contesta o sistema de opressão em que vivemos.
Ninguém melhor que as mulheres duplamente exploradas e oprimidas poderão lutar por transformações económicas e culturais no sentido da igualdade social.
Sonho «com uma vida em que as relações não sejam mais baseadas na posse mas na liberdade…uma utopias que eliminassem o casal constituído, estrutura coerciva e condicionadora por natureza que nos encerra, por mais reformas que se façam. Utopias que procurem renovar o laço entre o indivíduo e o grupo, entre a necessidade de solidão e de convivialidade, uma reforçando a outra de modo positivo.

Apresenta-se frequentemente a liberdade como algo de muito perigoso, capaz de nos destruir. Nada mais falso. Se bem que nesta sociedade, é certo, reivindicar uma certa liberdade possa sempre significar um certo risco.» ( in «Un Lit à soi», de Évelyne Le Garrec)