(Tradução do texto publicado no nº 140, Mai 2005, da revista «Alternative Libertaire», sob o título Justice de classe, Des magistrats face au sécuritaire»)
Julgamos oportuno reproduzir este texto, apesar de dizer respeito a um país como a França, a fim de mostrar não só a tendência securitária que percorre actualmente a política estatal de justiça como ainda demonstrar que as resistências a essa orientação repressiva e atentatória da liberdade são muito fortes, e vêm de todos os lados, inclusive da classe da magistratura.
Pudéssemos nós, em Portugal, dizer o mesmo…
O Sindicato da Magistratura foi historicamente o primeiro sindicato de magistrados a aparecer ( no ano de 1968 ). De acordo com os seus estatutos ele vela pela defesa das liberdade e dos princípios democráticos. Não pertence a nenhuma federação sindical. Trata-se de um sindicato independente que não se coíbe de criticar os governos sejam eles de direita ou de esquerda.
O Sindicato da Magistratura inscreve-se numa tradição de luta contra os discursos e as práticas securitárias. Propõe aos magistrados reflectirem sobre as suas práticas profissionais a fim de limitarem os efeitos das legislações particularmente atentatórias das liberdade, legislações essas que têm sido adoptadas nos últimos anos. Desenvolve todo um trabalho de descodificação dos textos e do funcionamento interno da justiça a fim de que os cidadãos possam estar a par da sua evolução e actividade.
A justiça tem conhecido profundas mudanças nos últimos anos. Em nome de um sentimento de insegurança, frequentemente apresentado de forma redutora ao relacioná-lo unicamente com a delinquência, a justiça já foi objecto de várias reformas nos últimos anos.
A parir do fim do ano d 2001 o governo de esquerda aceitou o discurso securitário, abrindo, assim, a porta para a via, que a direita mais não faz que prosseguir. Da lei sobre segurança quotidiana à reforma da lei sobre a «presunção de inocência» ( governo Jospin), passando pela lei sobre segurança interior, a lei sobre imigração ou ainda a lei sobre a adaptação dos meios da justiça à evolução da criminalidade ( governo Raffarn), certas categorias da população, nomeadamente, os menores, as prostitutas, os mendigos, os viajantes e os estrangeiros são acusados a dedo com sendo os responsáveis pela desordem da sociedade. Em nome da luta contra a delinquência legitimaram-se atentados às liberdades. Hoje o Sindicato da Magistratura faz um primeiro balanço dessas leis que se mostram ser tão perigosas quanto ineficazes. Tais leis procedem da mesma lógica uma vez que elas conduzem a penalizar certas categorias de populações que são apresentadas como um perigo para o Estado. Inclusivamente certas categorias da população é colocada à parte da sociedade por essas leis securitárias que procedem a uma penalização extraordinária dos seus comportamentos.
A via da estigmatização de certas categorias da população
A título de exemplo, a lei sobre a segurança quotidiana de Novembro de 2001 votada no seguimento dos atentados do 11 de Setembro de 2001 reprime a fraude habitualmente cometida nos transportes públicos prevendo um pena que pode ir até aos 6 meses de prisão. Ora as primeiras experiências recolhidas junto dos tribunais mostram, que nas zonas em que os transportes públicos são gratuitos para as pessoas em situação de precariedade, o número de infracções registado é muito baixo. O que leva a concluir que o objectivo da criação desta infracção é relegar as pessoas nessa situação para determinadas zonas urbanas.
De forma algo semelhantes temos a lei sobre a segurança interior de Março de 2003 que penaliza comportamentos que relevam seguramente de outra problemática. A ocupação de terrenos por parte de pessoas em viagem tornou-se uma infracção, mesmo quando os municípios não coloquem terrenos à sua disposição. O tratamento reservado às prostitutas é também esclarecedor pois volta a ser tutelado pela lei penal. Em Paris, as prostitutas em situação irregular no território francês são sujeitas a um procedimento ultra-rápido, e reenviadas para os seus países sem que os seus proxenetas sejam sequer identificados. Estes exemplos mostram bem como se utiliza o direito penal para marginalizar certas categorias da população que possam embaraçar as políticas do Estado. Em vez de desempenhar uma função social, o Estado torna-se essencialmente um Estado penal, a luta contra a delinquência torna-se a sua prioridade número um.
A afichagem generalizada da população
A uma superpenalização do comportamento dos cidadãos acresce uma afichagem exponencial da população. O número de ficheiros multiplica-se: sistema de infracções registadas (STIC), ficheiro nacional automatizado das impressões genéticas (FANEG), ficheiro dos delinquentes sexuais. O campo de acção estende-se não só às pessoas que delinquíram como aos potenciais delinquentes.
A lei sobre segurança quotidiana estendeu a FANEG, originalmente concebida para a delinquência sexual, para certos delitos ordinários contra os bens e as pessoas, estendendo-se ainda ao tráfico de armas por força da lei de segurança interior. Note-se que este ficheiro pode incluir pessoas que sejam simplesmente suspeitas de uma infracção.
A repressão aumenta com os tribunais a condenarem em pesadas penas todas as pessoas que se recusarem a dar as suas impressões genéticas.
A grande delinquência é o álibi para os atentados á liberdade
A lei Perben II é a este respeito significativa: sob pretexto de lutar contra a grande criminalidade, esta lei prevê o recurso a regras procedimentais de excepção desde que certas infracções forem realizadas em grupos organizados. Ora as infracções que se pretende abranger são muito numerosas e vão do tráfico de estupefacientes, passando pelo proxenetismo, a violação e os crimes por danos. Paralelamente a definição de grupo organizado é pouco rígida, permitindo recorrer a este procedimento sempre que várias pessoas concordem entre si para a realização de uma transgressão. Assim, logo que uma autoridade policial conclua pela existência desta situação, logo um regime especial de procedimentos poderá ser posto em andamento, nomeadamente a detenção por 96 horas sem necessidade de comparecer perante um juiz nem a assistência de um advogado, autorização de interpelações à noite, sonorização de domicílios (isto é, colocação de microfones e de câmaras,…). Todo este direito de excepção tende a tornar-se pouco a pouco direito comum. Mais concretamente este regime especial aplica-se, por exemplo, a duas ou três pessoas que tenham decidido roubar um carro e que podem ficar privadas de liberdade durante 5 dias, antes de serem presentes a um magistrado.
Procedimentos expeditos: o sacrifico dos direitos a favor da políticas afichagem
A lei de 9 de Setembro de 2002 aumento a possibilidade do recurso às comparências imediatas, um procedimento ultra-rápido que permite julgar uma pessoa logo após ter sido detida. Este procedimento reduz como é evidente os direitos da defesa: o acusado não tem tempo de constituir e preparar a sua defesa, nem o seu advogado consegue reunir o dossier e as provas que possam levar à absolvição. O próprio tribunal não tem também tempo para avaliar a personalidade do acusado e preparar uma decisão justa. A multiplicação destas situações leva a multiplicar as penas de prisão efectivas. Cada vez mais os tribunais estruturam-se para julgar o máximo de pessoas mediante comparências imediatas a fim de satisfazer critérios de rentabilidade.
A lei Perben II introduziu ainda um outro procedimento favorável à uma justiça repressiva e expedita. Trata-se da comparência na base do reconhecimento prévio de culpabilidade que permite ao procurador da República propor ao suspeito uma pena negociável que pode ir até um ano de prisão efectiva e evitar assim a realização de um julgamento e que requer uma simples homologação pelo juiz. Desta forma, a autoridade que persegue terá, se as coisas não mudarem, o estatuto de juiz. O suspeito não terá outra solução que não negociai caso não queira comparecer detido perante um juíz.
Todos estes procedimentos servem para satisfazer a política securitária e de afichagem do governo. Os objectivos sócio-educativos são colocados completamente à parte. As penas de prisão de curta duração, pronunciadas no seguimento de procediment judiciais expeditos, vão certamente levar a uma cada vez maior dessocialização.
Esta breve análise das leis securitárias mostra bem como tais procedimentos são extremamente perigosos em termos de liberdade e se mostram completamente ineficazes.
Aida Chouk, Presidente do Sindicato da Magistratura
Julgamos oportuno reproduzir este texto, apesar de dizer respeito a um país como a França, a fim de mostrar não só a tendência securitária que percorre actualmente a política estatal de justiça como ainda demonstrar que as resistências a essa orientação repressiva e atentatória da liberdade são muito fortes, e vêm de todos os lados, inclusive da classe da magistratura.
Pudéssemos nós, em Portugal, dizer o mesmo…
O Sindicato da Magistratura foi historicamente o primeiro sindicato de magistrados a aparecer ( no ano de 1968 ). De acordo com os seus estatutos ele vela pela defesa das liberdade e dos princípios democráticos. Não pertence a nenhuma federação sindical. Trata-se de um sindicato independente que não se coíbe de criticar os governos sejam eles de direita ou de esquerda.
O Sindicato da Magistratura inscreve-se numa tradição de luta contra os discursos e as práticas securitárias. Propõe aos magistrados reflectirem sobre as suas práticas profissionais a fim de limitarem os efeitos das legislações particularmente atentatórias das liberdade, legislações essas que têm sido adoptadas nos últimos anos. Desenvolve todo um trabalho de descodificação dos textos e do funcionamento interno da justiça a fim de que os cidadãos possam estar a par da sua evolução e actividade.
A justiça tem conhecido profundas mudanças nos últimos anos. Em nome de um sentimento de insegurança, frequentemente apresentado de forma redutora ao relacioná-lo unicamente com a delinquência, a justiça já foi objecto de várias reformas nos últimos anos.
A parir do fim do ano d 2001 o governo de esquerda aceitou o discurso securitário, abrindo, assim, a porta para a via, que a direita mais não faz que prosseguir. Da lei sobre segurança quotidiana à reforma da lei sobre a «presunção de inocência» ( governo Jospin), passando pela lei sobre segurança interior, a lei sobre imigração ou ainda a lei sobre a adaptação dos meios da justiça à evolução da criminalidade ( governo Raffarn), certas categorias da população, nomeadamente, os menores, as prostitutas, os mendigos, os viajantes e os estrangeiros são acusados a dedo com sendo os responsáveis pela desordem da sociedade. Em nome da luta contra a delinquência legitimaram-se atentados às liberdades. Hoje o Sindicato da Magistratura faz um primeiro balanço dessas leis que se mostram ser tão perigosas quanto ineficazes. Tais leis procedem da mesma lógica uma vez que elas conduzem a penalizar certas categorias de populações que são apresentadas como um perigo para o Estado. Inclusivamente certas categorias da população é colocada à parte da sociedade por essas leis securitárias que procedem a uma penalização extraordinária dos seus comportamentos.
A via da estigmatização de certas categorias da população
A título de exemplo, a lei sobre a segurança quotidiana de Novembro de 2001 votada no seguimento dos atentados do 11 de Setembro de 2001 reprime a fraude habitualmente cometida nos transportes públicos prevendo um pena que pode ir até aos 6 meses de prisão. Ora as primeiras experiências recolhidas junto dos tribunais mostram, que nas zonas em que os transportes públicos são gratuitos para as pessoas em situação de precariedade, o número de infracções registado é muito baixo. O que leva a concluir que o objectivo da criação desta infracção é relegar as pessoas nessa situação para determinadas zonas urbanas.
De forma algo semelhantes temos a lei sobre a segurança interior de Março de 2003 que penaliza comportamentos que relevam seguramente de outra problemática. A ocupação de terrenos por parte de pessoas em viagem tornou-se uma infracção, mesmo quando os municípios não coloquem terrenos à sua disposição. O tratamento reservado às prostitutas é também esclarecedor pois volta a ser tutelado pela lei penal. Em Paris, as prostitutas em situação irregular no território francês são sujeitas a um procedimento ultra-rápido, e reenviadas para os seus países sem que os seus proxenetas sejam sequer identificados. Estes exemplos mostram bem como se utiliza o direito penal para marginalizar certas categorias da população que possam embaraçar as políticas do Estado. Em vez de desempenhar uma função social, o Estado torna-se essencialmente um Estado penal, a luta contra a delinquência torna-se a sua prioridade número um.
A afichagem generalizada da população
A uma superpenalização do comportamento dos cidadãos acresce uma afichagem exponencial da população. O número de ficheiros multiplica-se: sistema de infracções registadas (STIC), ficheiro nacional automatizado das impressões genéticas (FANEG), ficheiro dos delinquentes sexuais. O campo de acção estende-se não só às pessoas que delinquíram como aos potenciais delinquentes.
A lei sobre segurança quotidiana estendeu a FANEG, originalmente concebida para a delinquência sexual, para certos delitos ordinários contra os bens e as pessoas, estendendo-se ainda ao tráfico de armas por força da lei de segurança interior. Note-se que este ficheiro pode incluir pessoas que sejam simplesmente suspeitas de uma infracção.
A repressão aumenta com os tribunais a condenarem em pesadas penas todas as pessoas que se recusarem a dar as suas impressões genéticas.
A grande delinquência é o álibi para os atentados á liberdade
A lei Perben II é a este respeito significativa: sob pretexto de lutar contra a grande criminalidade, esta lei prevê o recurso a regras procedimentais de excepção desde que certas infracções forem realizadas em grupos organizados. Ora as infracções que se pretende abranger são muito numerosas e vão do tráfico de estupefacientes, passando pelo proxenetismo, a violação e os crimes por danos. Paralelamente a definição de grupo organizado é pouco rígida, permitindo recorrer a este procedimento sempre que várias pessoas concordem entre si para a realização de uma transgressão. Assim, logo que uma autoridade policial conclua pela existência desta situação, logo um regime especial de procedimentos poderá ser posto em andamento, nomeadamente a detenção por 96 horas sem necessidade de comparecer perante um juiz nem a assistência de um advogado, autorização de interpelações à noite, sonorização de domicílios (isto é, colocação de microfones e de câmaras,…). Todo este direito de excepção tende a tornar-se pouco a pouco direito comum. Mais concretamente este regime especial aplica-se, por exemplo, a duas ou três pessoas que tenham decidido roubar um carro e que podem ficar privadas de liberdade durante 5 dias, antes de serem presentes a um magistrado.
Procedimentos expeditos: o sacrifico dos direitos a favor da políticas afichagem
A lei de 9 de Setembro de 2002 aumento a possibilidade do recurso às comparências imediatas, um procedimento ultra-rápido que permite julgar uma pessoa logo após ter sido detida. Este procedimento reduz como é evidente os direitos da defesa: o acusado não tem tempo de constituir e preparar a sua defesa, nem o seu advogado consegue reunir o dossier e as provas que possam levar à absolvição. O próprio tribunal não tem também tempo para avaliar a personalidade do acusado e preparar uma decisão justa. A multiplicação destas situações leva a multiplicar as penas de prisão efectivas. Cada vez mais os tribunais estruturam-se para julgar o máximo de pessoas mediante comparências imediatas a fim de satisfazer critérios de rentabilidade.
A lei Perben II introduziu ainda um outro procedimento favorável à uma justiça repressiva e expedita. Trata-se da comparência na base do reconhecimento prévio de culpabilidade que permite ao procurador da República propor ao suspeito uma pena negociável que pode ir até um ano de prisão efectiva e evitar assim a realização de um julgamento e que requer uma simples homologação pelo juiz. Desta forma, a autoridade que persegue terá, se as coisas não mudarem, o estatuto de juiz. O suspeito não terá outra solução que não negociai caso não queira comparecer detido perante um juíz.
Todos estes procedimentos servem para satisfazer a política securitária e de afichagem do governo. Os objectivos sócio-educativos são colocados completamente à parte. As penas de prisão de curta duração, pronunciadas no seguimento de procediment judiciais expeditos, vão certamente levar a uma cada vez maior dessocialização.
Esta breve análise das leis securitárias mostra bem como tais procedimentos são extremamente perigosos em termos de liberdade e se mostram completamente ineficazes.
Aida Chouk, Presidente do Sindicato da Magistratura
http://www.syndicat-magistrature.org/
http://alternativelibertaire.org/index.php?&action=accueil&dir=al140&page=140_11.html&n=