7.8.05

Alexandre Vieira, director d’«A Batalha», jornal da CGT


Quando se reconhece que está por fazer a história dos últimos cem anos, com os acontecimentos que derivaram do surto da industrialização e das suas consequências sociais e políticas, a I República e o reinado sombrio do salazarismo, é preciso conhecer e revelar o valor e o papel que desempenhou nessa época o movimento operário e sindicalista. Deste modo a História não aparecerá somente feita pelas personalidades políticas ombreando apenas com poetas, literatos e cientistas mas também por outras figuras que marcaram essa nova expressão democrática, o movimento operário, que muito contribuiu para a transformação da sociedade portuguesa.

Alexandre Vieira, operário gráfico, cujo centenário do seu nascimento se completou a 11 de Setembro de 1980, foi uma notável figura marcante nos grandes acontecimentos que caracterizaram a I República e os anos posteriores como militante sindicalista e na acção que o movimento sindical revolucionário desempenhou na melhoria e elevação da condição operária e da sua intervenção nessa evolução.
Nasceu no Porto, na freguesia de Santo Ildefonso, em Setembro de 1880 e, em breve, vai com os pais para Viana de Castelo onde, aos 10 anos, começou como aprendiz de latoeiro. Aos 15 anos de idade, na sua passagem por Coimbra, inicia a aprendizagem de tipógrafo, condição profissional que jamais abandonaria e seguiu sempre com paixão e orgulho.
Por esse tempo, bastante convulso, pelas consequências da crise de 91, dos problemas coloniais e do processo de industrialização, o movimento operário que já vinha dos meados do século a afirmar o valor e a presença operária no processo de produção, mas condicionado a um reformismo que a hegemonia do Partido Socialista patrocinava como indispensável ao papel político que julgava poder realizar segundo a dialéctica marxista, viu surgir novas concepções revolucionárias inspiradas na experiência da Primeira Internacional.
Alexandre Vieira, trabalhando nas artes gráficas, além dos contactos com essas movimentações, começou a privar com leituras de carácter social e naturalmente a formar uma personalidade que cedo se vem a afirmar. Com 23 anos de idade ele dirige, em Viana de Castelo, o jornal «O Lutador»,órgão local da Federação das Associações Operárias.
Não tarda a aparecer em Lisboa onde se fixou definitivamente, filiando-se na Associação dos Compositores Tipográficos.
As grandes lutas operárias na Europa e as suas contingências iam produzindo uma experiência. A social-democracia, que se gerara nos votos do Congresso de Haia de 1872, propostos pelos postulados de Marx, entrava no parlamentarismo e no terreno resvaladiço do constitucionalismo burguês, ao mesmo tempo que os movimentos operários mais amadurecidos se iam inspirando no princípio que, para além das reivindicações económicas imediatas, se abrangia a própria socialização dos meios de produção, e seriam, portanto, os próprios sindicatos os instrumentos válidos dessa socialização.
O movimento das Bolsas de Trabalho em França toma, por inspiração anarquista de Pelloutier, da crítica marxista de Lagardelle e Berth e da crítica sorelliana, uma notável autonomia. Formulava-se, na teoria e na prática, o sindicalismo revolucionário, e em 1906 constitui-se a CGT estruturada na célebre carta de Amiens.
A influência cultural francesa transporta para Portugal, pelo veículo da literatura anarquista , o sindicalismo revolucionário que ensaiava.
Alexandre Vieira, que privava nos meios libertários, com Emílio Costa, Pinto Quartin, Campos de Lima, Neno Vasco, Adolfo Lima e Aurélio Quintanilha, integra-se na proposta revolucionário do sindicalismo e torna-se um dos seus mais activos militantes e propagandistas depois da célebre conferência de Emílio Costa sobre o tema «Acção directa e acção legal».
Em 1908, animando a crítica e a experiência sindicalista transposta para as associações de classe de tipo profissional, começa a publicar-se o diário sindicalista «A Greve», redigido, composto, impresso e vendido por um grupo de militantes entre os quais estava Alexandre Vieira como seu director, coadjuvado por Pinto Quartin, anarquista, e Fernandes Alves, socialista.
O jornal durou apenas seis meses e Vieira viria a confessar «se bem que o novo jornal defendesse com vivacidade os trabalhadores, manda a verdade que se diga que fez uma medíocre divulgação do Sindicalismo» ( in «Para a História do Sindicalismo em Portugal», A. Vieira, col. Seara Nova,pág.30)
Esta confissão é um dos traços do seu carácter. Vieira era um homem íntegro, duma extraordinária lealdade, sem dogmatismos, praticando uma amizade firma com todos; se discordava não se irritava e até seria capaz de contemporizar, o que o levou também muitas vezes a posições de certo modo ambíguas quer quando se definiu a influência anarco-sindicalista quer depois do aparecimento do Partido Comunista, e do dissimulado grupo dos «Partidários da ISV», encontrando-se muita vez no meio com o seu ramo de oliveira.

Em Novembro de 1910, ainda na euforia da implantação da República, algo parecido ao 25 de Abril, surge o novo semanário «O Sindicalista», também com a direcção e colaboração de Alexandre Vieira, para substituir «A Greve».
Marcando claramente uma posição e doutrinação sindicalista revolucionária, «O Sindicalista» veio desenvolver uma nova dinâmica sindical e despertar nas classes trabalhadoras um espírito novo de autonomia e da sua missão histórica, a marcar a sua presença e identidade própria na evolução da sociedade portuguesa e nos acontecimentos que agitam a I República e, depois, durante o período fascista.
Alexandre Viera teve uma notável intervenção e perseverante acção na evolução sindical a começar na Casa Sindical. Gérmen da futura central sindical.

A fundação da União Operária Nacional

Em Maio de 1914 o Congresso Operário Nacional, realizado em Tomar, toma decididamente a posição sindicalista e constitui a União Operária Nacional. Alexandre Vieira teve grande intervenção nos debates e resoluções que suplantaram a influência socialista, tendo no final sido eleito secretário-geral da Comissão Executiva. Nos acidentados anos que se seguem, que a guerra vem agravar, com as suas crises, tumultos e agravamento das condições de vida da população e o conturbado perído sidonista a UON demonstra uma capacidade de resposta da posição sindicalista.
Esta será a grande afirmação da geração de A. Vieira, em que se evidenciou sempre com a sua presença e capacidade de acção e de reflexão.

Esta força que nascia e se afirmava carecia, portanto, duma voz equivalente à sua presença. Exactamente quando na serra do Monsanto sucumbia a aventura duma pretendida restauração monárquica, breves dias após, começa a publicar-se em Lisboa o diário operário e sindicalista «A Batalha», dirigido por Alexandre Vieira.

O que o jornal «A Batalha» representava pela acção dos que o lançaram é que tendo sido uma iniciativa arrojada, mesmo temerária, apenas igualada pelo sindicalismo espanhol, não soçobrou e desempenhou a sua importante missão, ser a voz dos trabalhadores que só o terror amordaçou para não voltar hoje a ser repetida como iniciativa do movimento sindical.
A projecção que o jornal teve, e que ainda se repercute, foi em muito, obra de Vieira. A sua acção como jornalista operário, já experimentado como autodidacta, afirma-se e notabiliza-se na orientação do jornal como na formação do seu quadro redactorial, exclusivamente composto de operários militantes, alguns ainda jovens, tendo assumido uma nova categoria na Imprensa como jornal de combate, ideológico, crítico, cultural e informativo do quotidiano, sendo por isso, e pela sua tiragem, um dos principais do país.
Quase sempre os governantes respondem aos grandes problemas ou conflitos com a prisão dos militantes sindicais. Várias vezes Vieira, como tantos outros, estanciou no Limoeiro, no governo civil e até no forte de Elvas. Quando da célebre bomba do Carmo, em 1911, A. Vieira e os companheiros da redacção de «O Sindicalista» foram presos, o jornal publicou-se indicando como local e sede da redacção e da administração, a cadeia do Limoeiro.
Alexandre Vieira como todos os militantes sindicalistas da época foram impressionados pela revolução de 1917 e manifestaram-se de maneiras diferentes. Vieira acolheu-a e guardou sempre aquela simpatia inicial, mas não alterou a sua posição sindicalista nem se dispôs a críticas ou louvores.
Os polémicos debates desencadeados pelos maximalistas, a formação da Federação Maximalista e do seu órgão «A Bandeira Vermelha», primeiro as reflexões, depois, a crítica aos anarquistas, decorreram sem que Vieira tomasse posição. Mesmo depois do Partido Comunista aparecer, e se ampliarem os debates polémicos, A. Vieira mostra-se inalterável, acolhendo todos com a mesma amizade, a mesma bonomia, porfiando na convicção dum sindicalismo autónomo e apto à gestão sindical da produção e na formação duma sociedade socialista, um sindicalismo da carta de Amiens, reafirmado ainda em 1925 numa pequena polémica em «A Batalha».
Paternal, contemporizador, sem pretender elaborar quaisquer sínteses, solução de compromisso ou miscelânea, deixou-se ficar um tanto à parte, e todos contemplava com o seu sorriso aberto, a sua palmada no ombro do amigo conservando amizades com os outros.
De formação libertária, tendo convivido e colaborado com muitos anarquistas, nunca se afirmou como tal, conservando o essencial de não aceitar a ideia de Partido nem do Estado como construtor do socialismo. Nessa posição rigidamente sindical tropeçou algumas vezes em várias ambiguidades que uma leitura unilateral do sindicalismo pode conduzir.
Por influência dos seus amigos do grupo dos Partidários da ISV em 1928, Vieira foi convidado a participar em Moscovo num Congresso da Internacional Sindical Vermelha, como «delegado fraternal», isto é, convidado, e aceitou.
No relato da sua missão publicado num livro cujo título é bastante inexpressivo -«Delegacia a um congresso sindical» - relata-nos com agrado os convívios de camaradagem e asa solenidades a que assistiu ou algumas impressões da vida quotidiana. Não entrou no debate dos principais problemas do movimento internacional quando o estalinismo já dominava.
Não obstante, um certo tipo de neutralismo, Vieira sintetizava toda a grandeza dum movimento e uma corrente de pensamento e de acção, que no dédalo das contradições da época, continuava a afirmar, pela sua autonomia e pelo conteúdo de ideias, a sua missão histórica que entre nós alterou positivamente a condição operária.
Quando se preparava o Congresso Confederal da Covilhã e constava da sua ordem de trabalhos a adesão da CGT à Internacional anarco-sindiacalista, a Associação Internacional dos Trabalhadores, a que o pequeno núcleo dos partidários da ISV se opunha, Alexandre Vieira adopta uma posição neutralista e leva o Sindicato dos Compositores Tipográficos a propor ao Congresso a neutralidade internacional da CGT.
Vieira criou grandes amizades para além dos quadros sindicais e conviveu com grandes figuras da intelectualidade que o apreciavam pelas suas notáveis qualidades de inteligência e de acção, colaborando em muitas publicações.
Depois de ter sido chefe da tipografia da «Seara Nova». E quando Jaime Cortesão e Raul Proença assumiram a direcção da Biblioteca Nacional, Vieira – sempre operário gráfico de que se orgulhava – foi com eles para chefiar a tipografia. Quando a tempestade reaccionários os afastou, Vieira, na defesa das regalias do pessoal gráfico, teve polémicas com o director, o dr. Fidelino de Figueiredo, e como este o ofendesse, pela primeira vez na sua vida, agrediu-o. Quando foi julgado em tribunal rodearam-no numerosos amigos de variados quadrantes.
A sua acção estendeu-se para além do movimento sindical. Teve grande actividade na Universidade Popular Portuguesa, conjuntamente com Bento Caraça, Dias Amado, Avelino Cunhal, José Carlos de Sousa, e Augusto Carlos Rodrigues. Foi também um dos organizadores da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, dando-lhes boa parte da sua colaboração.
Infatigável militante, persistente jornalista, homem de pensamento e de acção duma geração que revolveu Portugal, Alexandre Vieira morreu com 93 anos, sempre com a mesma grandeza de espírito e duma bondade singela, em Março de 1974, não chegando, por escassos dias, a ver a queda de um regime a que ele permanentemente se opôs.

(Texto de autoria de Emídio Santana, publicado em «O Jornal» de 12/9/1980)


Bibliografia de Alexandre Vieira:
= Em volta da minha profissão subsídios para a história do movimento operário no Portugal continental – edição de autor, 1950
=Como se corrigem provas tipográficas – noções úteis para quem manda executar impressão às tipografias. De colaboração com Gonçalves Piçarra – Edição da Albagráfica, Lda, Lisboa 1951
=Figuras gradas do Movimento Social Português – Edição do autor, Lisboa 1959
=Delegacia a um Congresso Sindical – Lisboa, 1960
= Para a História do Sindicalismo em Portugal – edição da Seara Nova, 1970