6.8.05

Não houve um, mas dois Holocaustos (Auschwitz e Hiroshima)



Fala-se correntemente do holocausto nazi que perseguiu e matou milhões de judeus. A sua denúncia tornou-se moeda corrente. E muito justamente. Ao ponto de um filósofo como Adorno ter tido necessidade de levantar a questão de como educar após Auschwitz, ou seja, a necessidade de toda e qualquer educação não ignorar o que o homem foi capaz de fazer a outro homem, e construir resistências para que tal não volte a acontecer.
Mas o simbolismo da bomba atómica e o risco nuclear, representado pelo acto gratuito que foi o lançamento pelos Estados Unidos - paradigma societário das democracias ocidentais e do mundo dito civilizado - de bombas atómicas contra populações civis em 1945, e a consequente carnificina, exigem que se fale de um segundo Holocausto, o de Hiroshima.
E deste vez o dedo acusador vai para o desvario da razão científica, para a arrogância do militarismo tecnológico e, em última análise, para a suposta superioridade civilizacional do modelo das democracias ocidentais - como os Estados Unidos da América gostam de se auto-representar - e cujo presumido ascendente moral é definitivamente manchado pelo sangue, morte e ameaça do apocalipse atómico

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Não por acaso este outro holocausto é objecto de mutismo cúmplice e censura, como se a vergonha tivesse ainda dificuldade em dizer por palavras a sua própria condição. O manto de quase silêncio que rodeia ainda o lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima mostra que ainda está tudo por fazer. Que a liberdade humana é uma conquista permanente, e que os poderes não olham a meios para imporem a sua verdade.
Que a racionalização moderna, representada pelas tecno-ciências, tantas vezes proclamada como panaceia, afinal, não é o garante para a felicidade humana, e que guarda nela os germens da destruição planetária.
No meio de tudo isto, cabe aos indivíduos concretos resistirem com estoicismo e lucidez para bem da Humanidade e do planeta, defenderem a vida contra todas as racionalizações fechadas, contra todas as doutrinas dogmáticas e todos os poderes que arrogantemente e por interesses inconfessados, se querem suplantar ao livre fluir da vida, espontânea, bela e selvagem. Pois só ela tem legitimidade de nos surpreender com a dor da morte e a alegria de um sorriso súbito de contentamento, luminosamente imprevisível.