18.3.05

Tomás da Fonseca e os Sermões da Montanha




«Sermões da montanha» é um dos mais famosos livros do ex-padre católico e filósofo português Tomás da Fonseca, aparecido em 1909 . Os argumentos apresentados são contundentes e quase todos actuais. Mesmo alguns dados desactualizados permitem-nos uma útil visão para o passado não distante, lembrando-nos das terríveis pressões e limitações que os nossos antepassados sofreram da parte do retrógrado e todo-poderoso clero católico. Por isso venho aqui apresentar alguns extractos muito interessantes dessa memorável obra do ateísmo lusófono.
Escrito na forma de diálogos com o povo, assim fala o Autor na:
Página 360:
«...o protestantismo é a religião católica reformada. Não quer isso dizer que seja boa, porque não pode haver religiões boas. Dizer-se que uma religião é boa, equivale a proclamar os benefícios do câncer, as vantagens da varíola ou os confortos da sífilis. O que todavia quero dizer acerca da religião protestante é que é menos má. E é menos má porque foi expurgada dum grande número de abusos, intolerâncias e absurdos. Lutero e seus discípulos fizeram ao cristianismo o mesmo que fazemos à s árvores que caducam: podaram-no, fizeram- lhe raspagens, procuraram limpá-lo. Curaram-no? Não, apenas lhe tiraram alguns dos parasitas que roíam a sua decrepitude, a fim de o poderem conservar mais algum tempo. Assim, por exemplo, desfizeram-no dos santos, amputaram-lhe a missa, desafogaram-no dos cardeais, chegando mesmo a extrair-lhe essa grande verruga que o tem cada vez mais canceroso: o pontífice romano, com a sua corte e o seu sacro colégio, a sua infalibilidade. Eles não têm os sacramentos católicos, não observam o celibato dos pastores, não crêem na substanciação, não reconhecem a existência do Purgatório, não querem ofícios nem indulgências; não têm latim, nem confissão, não usam bulas e, sobretudo, não resgatam as almas por dinheiro, pois a isso se opõe a Bíblia, que eles consideram como seu guia principal e único.
Por aqui já podem ver que é uma religião um pouco mais leve para o povo. Sobretudo mais humana, tanto para os que a seguem como para os que a pregam. A sua condição primeira é que cada um tenha e saiba ler a Bíblia. Mas parta que se saiba ler a Bíblia, o que é preciso? Ter aprendido a ler. Pois é o que fazem: o bom protestante é obrigado a saber ler. Eles próprios se comprometem a ensinar todo aquele que os procure. Ao contrário do que manda a Madre Igreja, que só prega a revelação e a fé. Só o latim da missa, mas esse mesmo baixinho, para que ninguém ouça nem saiba o que se diz. Posto isto, que direis se eu vos provar que quanto menos religião tiver o povo, mais progresso e felicidade sentirá?...»
Página 362:
«...A verdade completa, doa a quem doer. Comecemos pelas estatísticas oficiais. O resumo que delas vou apresentar não é recente mas, embora colhido em antigos boletins, assim nos serve ainda melhor do que se fosse tirado dos últimos publicados, porque são estatísticas do tempo em que o papado regia ainda os seus estados e as comunidades religiosas gozavam de todas as regalias. Por elas se vê que, de 1841 a 1851, houve na protestante Inglaterra , em média anual, 4 assassinatos por cada milhão de habitantes, ao passo que na católica Irlanda esse número excedeu a 33. Na Bélgica, nação católica, mas centro admirável de livre- pensamento, com escolas laicas e universidades livres, dirigidas por livres-pensadores, anarquistas, ateus e protestantes, esse número baixou para 18 (relatório de 1852). A França, igualmente católica, embora também cheia de dissidentes, mas com um operariado menos culto e pior organizado do que o da Bélgica, dá já um contingente de 31 homicídios (Estatística de 1851). A Áustria, talvez a mais católica das nações, depois da Espanha, apresenta logo um contingente de 36. E a Baviera, mais católica ainda, contribui para a hecatombe com 68 assassinatos. Da Espanha não possuímos relatório algum oficial, mas cálculos têm sido feitos, sobre documentos respeitantes à criminalidade naquele país, que dão para o homicídio a verba monstruosa de 250 por milhão, anualmente.
Agora a Itália, país católico por excelência, onde assiste o representante de Cristo e onde, ao tempo do relatório que me serve de guia (1848), não havia ainda quem fizesse sombra à marcha dos negócios eclesiásticos, pois só 22 anos depois é que o papa deixou de ser rei de Roma. Dividindo por províncias, temos: na Sardenha, 20 crimes de morte por milhão; na Lombada, 45; na Toscada, 56; nos estados pontifícios (estamos ainda 24 anos antes das invasões de Garibalda) 143; na Sicília da Máfia, 190; em Nápoles, 174; e assim por diante. Isto na terra dos cardeais, onde nesse tempo ainda havia conventos como entre nós há capelas; terra que por isso mesmo tinha obrigação de ser um modelo de santidade! Acontece isto na terra dos grandes santuários, das magníficas catedrais, onde os milagres se dão todos os dias. Isto onde os padres, frades e freiras atingiam, nesse tempo, o número de 120.000. Só na cidade de Assis havia 12 conventos; em Foligno, 12 de frades e 12 de freiras; em Spoleto, 22; em Terni, 5; em Norni, 5 de freiras e 7 de monges; em Perugia, 34 pelo menos. Em Roma então era uma farra: 74 conventos de frades e 50 de freiras. Pois bem, é precisamente neste distrito da piedade e do milagre que os homicídios chegam a 115 por cada milhão de católicos. Em Nápoles e na Sicília havia 15.455 frades e 13.000 freiras, número que não se encontrava em qualquer outro país. Também em país nenhum do mundo os crimes se multiplicavam como lá, sobretudo os homicídios. Esta mesma proporção se mantém em todos os outros ramos da criminalidade.
Página 364:
«...Vejamos agora se o desenvolvimento intelectual e o progresso acompanham a mesma escala. Primeiro, em povos com a mesma origem, para que não se diga que é uma questão de raças. ´Está admitido, diz o Professor belga Emile de Laveleye, que os escoceses e os irlandeses têm a mesma origem. Uns e outros foram submetidos aos ingleses. Até ao século XVI, a Irlanda era muito mais civilizada que a Escócia. A fértil Eire foi, durante a primeira metade da Idade Média, um dos focos de civilização, quando a Escócia não passava dum covil de bárbaros. Desde que os escoceses adotaram a reforma religiosa protestante, ultrapassaram até os ingleses. O clima e a Natureza opõem-se a que a Escócia seja rica como a Inglaterra; contudo, Macamby prova que, desde o séc. XVII, os escoceses sobrepujaram os ingleses em quase tudo. A Irlanda, pelo contrário, dedicada ao seu ultramontanismo (doutrina da ligação com o papado), fica pobre, miserável, agitada pelo espírito de rebelião e parece incapaz de se tornar a levantar por suas próprias mãos´. O mesmo autor nota ainda o contrate que se observa na própria Irlanda, entre o Connaught, exclusivamente católico e o Ulster, onde domina o protestantismo. O Ulster é rico pela indústria. Connaught apresenta a imagem da miséria humana mais completa. Mas tal fato dar-se-á apenas nestes povos? Não. Basta que olhemos as duas Américas. Ao norte, os Estados Unidos fulgem entre o maior esplendor: grandeza, ordem, civilização.
Voltando os olhos para o Sul, vemos a decadência e as guerras intestinas, o atraso moral e social, acompanhados com abusos e dificuldades de toda a ordem. É porque ao norte o povo é protestante, indiferente ou ateu, e, ao sul, católico-romano, com a intolerância própria do ultramontanismo. E este fenômeno singular não é de sangue, como vimos. Também não é de clima, nem de raça, como vamos provar. Na Suíça, os cantões de Lucerna, Alto-Valois e os florestais diferem inteiramente dos de Neufchatel, Vaud e Genebra. Os últimos sobrepujam em tudo os primeiros: na instrução, na literatura, nas belas-artes, na indústria, no comércio, na riqueza, no asseio, etc. Agora a pergunta: a que raça pertencem os primeiros? À germânica. Que religião professam? O catolicismo. E os outros referidos cantões que tanto diferem pelo seu progresso e cultura, são de raça latina e professam o protestantismo. O culto, pois, e não a origem racial, é a causa da superioridade ou decadência do povo. Se olharmos agora para o cantão de Appenzell, notaremos que a parte interior, habitada por católicos, e a exterior pelos protestantes, divergem tanto entre si como Neufchatel e Lucerna. Dum lado a instrução, o progresso, a força e a harmonia; do outro, a ignorância e a pobreza, o mal estar e a desordem, o definhamento e a morte.»
Na página 367:
«...Quais são as nações mais ricas, mais prósperas e felizes do mundo? Toda a gente sabe isso, porque na boca de todos andam os nomes da Inglaterra, Alemanha, EUA, Canadá, Suécia, Japão... Pergunta-se: que religião professam? É católica alguma dessas nacionalidades? Não! São protestantes, budistas ou livres- pensadoras. Grande parte dos seus habitantes não tem mesmo religião alguma.
Mas os povos católicos? ... que é Portugal e quem somos nós, portugueses? Escravos duma nacionalidade exausta, com um povo devorado até aos ossos, cheio de fome, sem liberdade, fanatizado, escravizado, inconsciente, miserável... É católica a Espanha. Mas que é a Espanha? Uma nação depauperada, como nós também exausta e decadente, também enferma e aviltada. O jesuitismo minou-a desde os alicerces...É católica a Itália. Mas essa só agora começa a libertar-se, fazendo substituir o templo pela escola, o frade pelo professor, o devoto pelo industrial. Porque a Itália tem sido um foco imenso de miséria moral e econômica. ...É católica a Áustria. Mas como Portugal, e a Espanha, a Áustria é uma nação vencida, onde vegeta um povo miserável, em perpétuo conflito consigo próprio, os negócios sempre mal... Isto sem sairmos da Europa, porque o mesmo acontece nas duas Américas. Pois que são o Paraguai, o Brasil, o Chile, o Equador, o México, a Bolívia, católicos, comparados com os povos do norte, protestantes?
...Laveleye, que nos fornece o melhor destes dados, acentua, em conclusão, que o catolicismo é, com efeito, a causa principal da decadência duma nacionalidade...»