Na Antiguidade o filósofo vivia como filósofo. A prova da sua essência era a sua existência. Graças as seus hábitos alimentares, à vasta guedelha ou ao cabelo rapado, ao bordão, à tigela, ao manto de linho branco ou aos andrajos, qualquer sabia que estava perante um filósofo estóico ou cínico. Nesse tempo, filósofo designava o indivíduo que punha em prática uma teoria, teoria essa graças à qual ele visava atingir a sabedoria.
O cristianismo oficial irá modificar a definição de filósofo – e ainda hoje vivemos parcialmente sob o regime cristão. O cristianismo chama filósofo à personagem que põe a sua inteligência, saber, retórica e trabalho ao serviço do poder vigente, forgando para uso dos poderosos um arsenal de conceitos que permita a legitimação política da sua acção. Durante o regime cristão, a filosofia funcionou como disciplina incestuosa e segundo uma lógica de gabinetes. Os filósofos esforçavam-se através de esforçadas dissertações sobre o sexo dos anjos, sobre o seu número bem como a sua disposição nos tronos no Paraíso, sobre a excelência da guerra santa e justa, sobre os fundamentos ontológicos da transubstanciação (=conversão da hóstia em Corpo de Cristo!!!!) e outras empolgantes questões de um corpo eclesiástico que continua a fascinar alguns filósofos contemporâneos amadores de sofismarias e retóricas absconsas.
Ainda hoje operam na filosofia estas duas tradições: uma linhagem existencial, e uma linhagem de gabinete.
Os primeiros pensam com vista a uma salvação individual, visando uma vida transfigurada, para além da vida mutilada da maior parte das pessoas. São filósofos 24 horas por dia e procuram fazer coincidir os seus pensamentos com as suas acções.
Os segundos reflectem para outrem, e não aplicam forçosamente as suas conclusões; possuem ainda grandes habilidades para dar lições ao mundo inteiro.
(Excertos de um texto de Michel Onfray publicado no Le Monde Diplomatique de Novembro de 2004)