(reprodução de um texto de Arnaldo Saraiva, publicado no Jornal de Notícias)
O melhor emblema e o maior pólo de atracção social das grandes cidades foi, durante séculos, a catedral.
À volta dos anos 60,porém, a catedral ( como a igreja em geral) perdeu muita da sua frequência e da sua importância ou do seu prestígio. Dois outros lugares passaram a concorrer com ela: o estádio, que todavia, mobilizava quase só a população masculina; e sobretudo, o banco. A vitória do banco sobre a catedral; às vezes até verificável na altura e na opulência das construções, sinalizava uma verdadeira revolução nos costumes e nas mentalidades, mesmo que sinalizasse também alguma degradação, sugerida logo pelos nomes ( «catedral» tem que ver com «cadeira», «cátedra»).
Duas décadas depois, multiplicaram-se os frequentadores dos bancos, mas estes transformaram-se em lugares tristes, friamente burocráticos, e até acanhados, com funcionários circunspectos e automáticos, com bichas permanentes, com horários tontos. Longe vão os tempos em que os bancos portugueses nos deslumbravam com os seus mármores, pinturas, tapeçarias, mobílias; longe vão os tempos ( e só passaram duas décadas) em que os bancos nos ofereciam – com sorrisos e reverências - álbuns, calendários, pastas, cinzeiros e livros de cheques, que agora saem logo da nossa conta.
À entrada dos anos 80, o grande centro de atracção social das grandes cidades já não era o banco, mas o supermercado, e cada vez mais,o…centro comercial.
Ampliações das drogarias que já ampliavam os bazares medievais, os centros comerciais são miniaturas das ruas, das cidades e até do país produtor e consumidor. E não se pense que são simples lugares comerciais, que convocam todas as artes e artimanhas do consumo; porque são também lugares da festa possível, densos de vibração estética e até sentimental, que favorecem a distracção, o passatempo, o flirt e o engate.
Nos seus largos corredores centrais ou nas suas artérias não por acaso labirínticas, nos seus jogos aquáticos, nas suas plantas, mesmo que artificiais, nas suas escadas-rolantes, nas suas cores, nas suas luzes, nos seus vidros e espelhos, nos seus proliferantes sinais visuais, na variedade dos seus espaços e das suas respectivas funções ( o quiosque, a pequena boutique, a grande loja, a tabacaria, o pub, o cinema, o restaurante, o cabeleireiro, a agência, a sala de flippers, a livraria, a discoteca, etc; só falta, curiosamente, a capela, o centro comercial faz o possível para atenuar a secura e a agressividade do produto comercial e sabe envolver o consumidor numa atmosfera moderna, cosmopolita, confortável, festiva, capaz de gerar, rapidamente, um caleidoscópio de emoções.
Como disse Jean Baudrillard, o centro comercial reconcilia «o pequeno e o grande comercio», «o ritmo moderno e a antiga passeata», estimula a »errância lúdica» e a prática combinatória; sublima a vida real e a vida social objectiva, acabando por «abolir não só trabalho e o dinheiro mas também as estações», «pois oferece uma Primavera perpétua, pouco importa se artificial».
O centro comercial parece pedir ou corresponder a um novo tipo de consumidor: simultaneamente mais apressado, mais exigente, mais moderno e mais cosmopolita do que o das décadas anteriores. Não é por acaso que ele com-centra produtos sem abolir a sua variedade, selecciona sem esmagar com a quantidade ( no que contrata com o supermercado). Como não é por acaso que se dão a centros comerciais nomes cosmopolitas como Brasília, Itália, Newark, Dallas. Como não é por acaso que se diz «shopping center» em vez de centrocomercial.
Em 1965, ao deparar, no Rio de Janeiro, com o Shopping Center de Copacabana, perguntava-me se a língua portuguesa não servia para designar um lugar assim. Mas o problema, evidentemente, não era nem é de língua – era e é de «business», de «marketing», e também de moda, naturalmente ditada pelo modelo americano.
Curiosamente é um jornalista brasileiro, Pedro Zan, que, quase vinte anos depois, caracteriza a nova geração brasileira, em especial, a paulista, como uma «geração shopping»: «Chegam a pé ou em carros desportivos equipados. Entram em lojas, passeiam, descontraídos, pelos corredores. Gastam muito com os cheques dos pais. Ou, simplesmente, perguntam os preços sem levar nada. Gostam de roupas largas, folgadas, de cores cítricas, da moda Muitos não querem ouvir falar de política, nem lêem livros. Preferem curtis o «brake», «funk» ou «new wave»…»
A geração shopping portuguesa não terá todas as características da brasileira, mas ninguém duvidará que ela existe, até mesmo onde menos se espera ( nas artes, nas letras, por exemplo). E de algum modo todos pertencemos à geração shopping se não resistirmos ao fascínio do consumo e se não nos recusarmos a frequentar a moderna feira que é o centro comercial.
Acontece apenas que nem todos irão ao centro pelas mesmas razões. Alguns terão de contentar-se apenas com a festa da visão ou da comida ligeira: sanduíches, hamburgers, gelados e, agora, croissants. Outros,porém, poderão perder-se na euforia do grande consumo.
Cansados da vida, da miséria, da política, da crise, do trabalho, e também do desemprego, nem uns nem outros, porém, se disporão a ver no centro comercial o diabo que, afinal, já se manifestava no Auto da Feira de Gil Vicente:
Vender-vos-ei nesta feira
Mentiras vinte três mil,
Todas de nova maneira,
cada uma tão subtil,
que não vivais em canseira:
mentiras para senhores,
mentiras para senhoras,
mentiras para os amores,
mentiras, que a todas as horas
vos nasçam delas favores.
E como fomos avindos
Nos preços disto que digo,
Vender-vos-ei como amigo
Muitos enganos infindos,
Que aqui trago comigo