Memórias de uma imprensa bem-comportada
Por José Vítor Malheiros
Por José Vítor Malheiros
Esta crise seria uma ocasião excelente para os media provarem a sua utilidade
Os jornalistas realizam diferentes tarefas e preenchem diferentes funções sociais. Uma dessas tarefas consiste em produzir e difundir notícias. Outra função consiste em alimentar o debate de ideias no seio da sociedade.
Porém, aquilo que, aos meus olhos, é a função essencial do jornalista é o que se chama vulgarmente a “fiscalização dos poderes” e a que os anglo-saxónicos chamam de forma mais colorida a função de watchdog – servir de cão de guarda das liberdades cívicas, revelar as actividades de todos os poderes e de todos os poderosos e denunciar abusos.
Esta é a função que só os media levam a cabo de forma independente e constitui o coração do ethos jornalístico. Isto não quer dizer que não possa haver uma organização não-mediática que funcione dessa forma. Mas a prossecução desse objectivo de forma independente – sem qualquer agenda predefinida, sem defender interesses particulares – é a marca de água da actividade jornalística.
Tivemos há dias um exemplo de grande impacto do que pode ser esta fiscalização dos poderes com a publicação pelo site WikiLeaks de milhares de casos de abusos perpetrados pelas tropas americanas e iraquianas no Iraque.
Curiosamente, o líder do WikiLeaks, Julian Assange, não só não se considera um jornalista como recusa com veemência o rótulo, que considera “ofensivo”. Porquê? Porque Assange pensa que a esmagadora maioria da imprensa, premeditadamente ou não, não só não fiscaliza os poderes como colabora activamente com eles, escamoteando ou maquilhando as suas práticas mais criticáveis.
Um exagero? Talvez. Mas vale a pena, no actual panorama de crise e recessão, quando todos os portugueses têm uma lista de perguntas que gostariam de ver respondidas pelo Governo (sobre as empresas que não pagam impostos, sobre os impostos da banca, sobre a nacionalização do BPN, a política fiscal, o real funcionamento da economia, as razões para o optimismo com que nos regalaram nos últimos dois anos) podemos perguntar-nos a quantas dessas perguntas os media conseguiram responder. Ou quantos nomes foram responsabilizados. Ou quais foram as denúncias que vimos nas páginas dos jornais e nos ecrãs dos noticiários. Existem pequenas excepções singulares, mas contam-se pelos dedos de uma mão.
No geral, a imprensa limita-se a reproduzir os discursos existentes na cena política ou económica. Claro que isso significa citar o Governo e a oposição, os patrões e (esporadicamente) os sindicatos, mas a verdade é que isso é dramaticamente insuficiente. Mais do que saber qual é a mensagem que os protagonistas querem transmitir, o que os cidadãos gostariam de ter é um retrato fiel da situação.
Esta crise seria uma ocasião excelente para os media provarem a sua utilidade – para além do consabido “este disse, aquele disse”. Todos gostaríamos de saber o que aconteceu de facto com o PEC I e II. Quais são as contas reais do país. O que está a acontecer com as parcerias público-privadas (os factos e não as leituras ideológicas). Com as empresas que não pagam impostos. Com o off-shore da Madeira, com as mil e tal fundações privadas que recebem dinheiro dos nossos impostos, com os privilegiados que acumulam pensões e salários, etc. A verdade é que a maioria dos media se encontra ou acantonada num confortável conformismo ou numa quase paralisia imposta por uma draconiana redução de despesas, que impede qualquer actividade de investigação. Só que, sem essa investigação, sem essa função irreverente de watchdog, os media apenas repetem as versões que interessam aos poderes.
Sobrevivem, mas isso não é vida. A crise que os media estão a atravessar não é alheia a esta situação. Os media parecem empenhados em provar a sua irrelevância, sem perceberem que é esse o caminho que os está a levar à cova.
José Vítor Malheiros – “Público” 26 Out 2010