27.10.10

A austeridade assimétrica e o Estado belicista ( texto de André Freire)

André Freire Nasceu em Lisboa a 25 de Abril de 1961. Fez a sua licenciatura em Sociologia, em 1995, na instituição onde actualmente é Professor Auxiliar no Departamento de Sociologia, e Investigador – o ISCTE. Prosseguiu os seus estudos numa outra instituição onde também é Investigador – o ICS-UL. Foi no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa que tirou o seu Mestrado em Ciências Sociais, em 2000, e o seu Doutoramento, quatro anos mais tarde, também em Ciências Sociais: Sociologia Política.
André freire publicou vários livros e artigos sobre opinião pública, atitudes políticas, comportamentos políticos e eleitorais, sistemas eleitorais, elites políticas e sistemas partidários. Os seus artigos foram publicados, entre outras, em revistas académicas como Análise Social, Sociologia, European Journal of Political Research, West European Politics, The Journal of Legislative Studies, Portuguese Journal of Social Science.

Biografia:
www.cies.iscte.pt/investigadores/ficha.jsp?pkid=5&a=-816410170&subarea=doutorados



A austeridade assimétrica e o Estado belicista
Por André Freire
Texto publicado no jornal Público de 25 de Outubro de 2010

Muitos portugueses encaram esta austeridade como profundamente (!) assimétrica, injusta e até ilegítima

Sob a pressão dos mercados internacionais e dos neoliberais que dominam a Europa, a que se somam os nossos erros e as fragilidades da nossa economia, somos mais uma vez (a enésima desde 2002) confrontados com a necessidade de mais austeridade para reduzir o défice orçamental e a dívida pública. Vale a pena recordar como chegámos aqui e reflectir sobre se existiriam alternativas às soluções de austeridade que nos estão a ser propostas e, em caso afirmativo, quais seriam elas.

Com a crise do subprime, falou-se muito num regresso do Estado, numa falência do capitalismo desregulado, etc. A desregulação dos mercados de capitais tinha estimulado investimentos ruinosos, virtuais do ponto de vista da geração de riqueza mas muito concretos nas suas consequências. Infelizmente, conto-me entre os que já na altura consideraram que, sem a afirmação de alternativas, rapidamente voltaríamos ao mesmo (PÚBLICO, 21/4/2008). Durante a crise, o Estado regressou em força para salvar os bancos e minimizar as consequências sociais da sua irresponsabilidade: resvalaram de novo os défices e as dívidas. Salvas as sociedades financeiras com injecções maciças de dinheiro público, chegou a hora de pagar a factura. Mais uma vez, serão os assalariados a fazê-lo. Em vários países da Europa, muitos deles apontados no passado como o paradigma de sucesso a emular (o Reino Unido e o seu socioliberalismo da "terceira via", a Irlanda, a Islândia, etc.), vemos idênticos problemas de endividamento e duríssimos programas de austeridade. O Governo cometeu muitos erros e irresponsabilidades do ponto de vista financeiro, que estão com certeza também por detrás desta nossa crise, mas temos de reconhecer que o facto de a crise afectar tantos países da Europa (do Sul e não só) indica que a explicação não pode passar só pelos erros de Sócrates. Naturalmente, há ainda, e acima de tudo, as fragilidades da nossa economia, subjacente ao nosso gravíssimo défice comercial: uma especialização centrada no "trabalho intensivo" e que nos tornou um dos países mais prejudicados com o alargamento da UE a leste e com a liberalização mundial do comércio.

Recordada a genealogia da crise, e dando por adquirida a necessidade de responder com urgência à pressão dos mercados internacionais e da Europa, será que poderia existir pelo menos uma austeridade menos assimétrica do que a que nos propõem (e que mesmo assim aceitasse, nos limites do possível, o enquandramento internacional)? Recorde-se que as soluções que nos estão a propor assentam sobretudo no corte dos vencimentos dos funcionários públicos, no aumento do IVA e do IRS e nos cortes nos serviços públicos e nas prestações sociais. Haveria alternativas, sim, se tivéssemos simultaneamente um PS menos socioliberal e uma esquerda radical (BE e PCP) mais predisposta a firmar compromissos e a aceitar o enquadramento internacional. Ou seja, haveria alternativa se os orçamentos do PS em minoria não tivessem de ser sempre negociados à direita. Vejamos alguns exemplos cruciais.

Primeiro, poder-se-ia cortar menos no Estado social, cortando mais no Estado belicista: segundo o Stockholm International Peace Research Institute (http://www.sipri.org/), com 2 por cento de despesas militares face ao PIB, em 2008, Portugal gasta mais do que o conjunto dos países europeus (UE 26 + 3: Islândia, Noruega e Suíça): média de 1,59 por cento; esta posição portuguesa é recorrente, 1989-2008. Porém, em plena crise, o Governo não só avança com a compra de dois submarinos (caríssimos!), apesar de o vendedor estar a falhar redondamente em matéria de contrapartidas, como, além disso, não parece disposto a pô-los já à venda como sugeriu o economista Silva Lopes e está a propor o BE. Para grandes males, grandes remédios... Mais, em plena crise e com brutais sacrifícios pedidos à população, o mesmo Governo avança com a compra de carros de combate (5 milhões de euros) para a cimeira da NATO. Parece que caminhamos mesmo do Estado social para o Estado belicista...

Segundo, os patrões queixam-se muito de que pagam impostos muito elevados, mas a verdade é que, como cabalmente demonstrou João Ramos de Almeida, uma grande parte das empresas pura e simplesmente não paga impostos: 30 a 40 por cento das empresas, entre 1997 e 2007 (PÚBLICO, 9/8); e sabemos porquê: além dos benefícios fiscais, a dedução de toda a espécie de custos como prejuízos leva a que, durante anos a fio, grande parte das (grandes e pequenas) empresas ficticiamente não dê lucros (PÚBLICO, 9/8 e 13/10). Neste capítulo, as medidas propostas pelo Governo são de uma tibieza confrangedora, fazendo jus à ideia de uma austeridade profundamente assimétrica (PÚBLICO, 31/9 e 1/10).

Terceiro, o Governo devia reduzir drasticamente os pedidos de pareceres e estudos externos, mobilizando ao invés não só a própria administração mas também as universidades públicas: combateria o subaproveitamento do sector público e a drenagem sistemática de recursos.

Quarto, é preciso equidade nos sacrifícios que se pedem às pessoas, caso contrário estas consideram-nos ilegítimos: por exemplo, ninguém percebe que pessoas que estão ainda no activo estejam simultaneamente a receber uma ou mais reformas (ver José Vítor Malheiros, PÚBLICO, 12/10 e 19/10). Estão nesta situação vários políticos, a começar pelo mais alto magistrado da nação, e também vários dos economistas (pelo menos todos os que passaram pela administração do Banco de Portugal) que amiúde nos vêm dizer que é preciso reduzir os salários dos portugueses porque nós (não eles, claro) ganhamos muito... Porque nada disto tem sido feito, muitos portugueses (nos quais me incluo) encaram esta austeridade como profundamente (!) assimétrica, injusta e até ilegítima. Já para não falar dos seus efeitos recessivos, mas isso é também um problema europeu e a sua análise terá de ficar para um próximo artigo.

Público, 25.10.2010