22.7.09

A revolta dos uigures ( texto de Joaquim Magalhães de Castro)


A revolta dos uigures

(por Joaquim Magalhães de Castro, escritor e jornalista de viagens. Acabou de publicar o seu terceiro livro, «O Mar das Especiarias», na editora Presença)

Os violentos motins na província chinesa de Xinjiang são uma reacção contra o ataque à identidade cultural e religiosa da etnia mais representativa de uma região rica em petróleo e gás natural.

OS RECENTES motins étnicos ocorridos em Urumqi, capital do Xinjiang, e noutras cidades daquela província – com similares ocorrências, pelo menos desde a década de oitenta – devem-se, mais do que a uma razão de ordem política, a um crescente descontentamento dos uigures, a minoria étnica mais representativa dessa região autónoma do Oeste da China, rica em petróleo e gás natural.

O movimento migratório de chineses da etnia han (maioritária no país) para o Xinjiang aumentou drasticamente nas últimas décadas. Em 1949 constituíam quatro cento da população; hoje ultrapassam os quarenta por cento, partilhando o espaço com oito milhões de uigures, que progressivamente se sentem estrangeiros na sua própria terra.

Mais do que a expressão de um movimento com aspirações autonomistas, a revolta dos uigures prende-se com o que classificam de atitudes discriminatórias e ataque à sua identidade cultural e religiosa.



A DECISÃO do governo de Pequim de demolir o centro histórico de Kashgar, cidade milenar da Rota da Seda – «o mais bem preservado exemplo de uma cidade islâmica da Ásia Central», nas palavras do arquitecto e historiador George Michell, citado pelo The New York Times – está a gerar uma onda de protestos com repercussões internacionais.

Novecentas famílias foram já deslocadas do centro histórico e, para evitar eventuais engulhos no processo, o canal televisivo regional transmite regularmente um apontamento de 15 minutos que nos mostra radiantes bailarinos e músicos de um grupo folclórico uigur em plena actuação, enquanto, em voz off, se tecem loas aos benefícios da vida em blocos de apartamentos e largas avenidas. Chegam a afirmar que «nunca houve evento tão importante na cidade».

Estratégia semelhante é utilizada quando grupos de jornalistas estrangeiros são convidados a ver e ouvir aquilo que as autoridades querem que vejam e ouçam. Conduzem-nos a uma aldeia modelo para falarem com pessoas previamente contactadas e com um discurso previsível, e servem-lhes deliciosas fatias de melão e melancia, à sombra das latadas da vinha, enquanto artistas contratados na cidade animam o ambiente.



CONTACTADO por nós, um chinês uigur residente em Cantão, visitante regular de Macau, que, por razões óbvias, prefere não ser identificado, afirma: «Há vinte anos, usaram uma alegada ausência de higiene como motivo para a destruição de um mercado ancestral situado no coração de Kashgar; hoje justificam uma barbárie ainda maior, pois toda a cidade islâmica está em risco, com a ameaça da possível ocorrência de um sismo. Francamente! Podiam usar um argumento mais válido, pois este é um insulto à nossa inteligência. Se a cidade aguentou, incólume, quase um milhar de anos, por que razão não há-de aguentar outros tantos?»

O discurso paternalista das autoridades chinesas corrobora as palavras de Amin – apelidemos assim o nosso interlocutor. Argumentam que nenhum governo digno desse nome se esquivaria a proteger os seus cidadãos de uma ameaça natural tão terrível como um sismo, sugerindo ainda que o povo uigur deveria estar eternamente grato aos han por estes lhe terem proporcionado os benefícios da civilização moderna. «Esquecem-se de dizer que a maioria dos edifícios que no ano passado ruíram em Sichuan, sepultando milhares de pessoas, eram de construção recente, alegadamente novos», ironiza Amin. Em finais dos anos oitenta, início dos anos noventa do século passado, além do mercado, outro tipo de património foi destruído.

O PLANO de realojamento da população é gigantesco e prevê a mudança de 65 mil famílias, cerca de 220 mil pessoas, para zonas residenciais construídas de raiz. A oferta de casas novas é tentadora e são muitos os uigures que apoiam a operação.

Até aqui, esta cidade de ruelas apertadas e labirínticas, ao estilo das medinas, ia sendo remodelada pelos próprios habitantes, à medida que conseguiam fundos para o fazer. Agora são forçados a abandoná-la, recebendo até 200 yuans (23 euros) por metro quadrado se o fizerem dentro de um prazo definido. Quem não aceitar estas condições, será desalojado sem qualquer indemnização.

Uma pequeníssima área da cidade será preservada, tendo em vista futuras visitas turísticas. Aconteceu exactamente o mesmo com os hutongs, os bairros tradicionais de Pequim, sacrificados em nome de uma moderna e asséptica anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2008. Apenas um desses bairros sobreviveu, para turista ver…

Prevê-se que os trabalhos de demolição – onde serão gastos 440 milhões de yuans – ocorram ao longo de três anos. Mas, na China estas coisas passam-se muito mais depressa e tudo indica que em menos de um ano a Kashgar que durante séculos a tudo resistiu, mesmo às investidas das hordas mongóis lideradas por Gengis Khan, não passe de uma simples recordação.

Abrindo as hostilidades, uma reputada escola corânica foi recentemente destruída, apesar de estar classificada como monumento histórico. Datava do século XVI e nela terá estudado o poeta e escritor Mahumud Al Kasagari, referência maior da intelectualidade uigur.

CURIOSAMENTE, quem agora chama mais a atenção para o irremediável desaparecimento de um património único, são os próprios chineses han. O Beijing Cultural Heritage Protection Center lançou recentemente um pungente apelo para salvar a cidade de Kashgar, considerando-a bem mais relevante que os bairros tradicionais da capital ou até de Lhasa, a cidade santa do Tibete.

A este respeito, Amin, pessimista, comenta: «Se eles próprios não conseguiram salvar o património da sua cidade, duvido que consigam fazê-lo aqui.» E, à semelhança dos muitos apaixonados por Kashgar, admira-se como é que é possível que uma cidade com tão grande importância histórica e arquitectónica não usufrua do estatuto de Património da Humanidade. Faz sentido, por isso, a pergunta que alguém está a fazer circular na internet: «Será que a imediata integração de Kashgar na lista do Património da Humanidade poderá impedir a sua destruição?» Também no ciberespaço, circula uma petição (www.PetitionOnline.com/silkroad) que será enviada ao ministro da Cultura da República Popular da China, Cai Wu, mas que até agora recolheu pouco mais de uma centena de assinaturas.

A causa dos uigures (e quem diz uigures diz cazaques, quirguizes, tajiques e outras etnias dessa imensa província, que engloba um sexto do território chinês) peca pela falta de mediatismo na arena mundial. «Temos um problema, que nos reduz a visibilidade», atira Amin. «Somos muçulmanos. E essa condição, sobretudo desde os atentados de 11 de Setembro, limita-nos a capacidade de cativarmos gente para a nossa causa junto da comunidade internacional.»

O próprio Wu´er Kaixi, dissidente uigur residente em Taiwan, que viu a sua entrada recusada em Macau por altura do vigésimo aniversário do massacre de Tiananmen (ele foi o mais mediático dos estudantes revoltosos), não faz qualquer menção a esta ameaça à identidade cultural e religiosa do seu povo, limitando-se a comentar os aspectos políticos da sempre melindrosa questão do Xinjiang.

Mas esta é uma luta de cuja importância os uigures estão cada vez mais conscientes. Nas imagens difundidas pelas televisões vemos um grupo de mulheres de lenços coloridos na cabeça a fazerem um pacífico sit in de protesto em frente aos carros blindados da polícia. Certamente ficará para a história a imagem de uma mulher idosa com muletas que avança, com dificuldade mas sem receio, fazendo-nos lembrar aquele anónimo de camisa branca e saco plástico na mão que, em 1989, fez parar uma coluna de tanques na Praça Celestial transformada então num inferno.



A revolta das mulheres

O facto de a rebelião ser, desta vez, protagonizada também por mulheres, é encarada por Amin como um sinal de mudança e não o deixa surpreendido, já que a mulher uigur é emancipada e goza de um estatuto privilegiado em relação à mulher do mundo islâmico – vantagens do sistema socialista chinês. É vê-las passar de bicicleta com a saia bem puxada para cima, ou então reparar no à-vontade com que comunicam com os estrangeiros. Contudo, algumas delas, oriundas das famílias mais conservadoras, usam purdha – um longo véu posto por cima da cabeça que lhes oculta o rosto. Mas o seu número, para profundo desagrado dos mais fundamentalistas, tem vindo a decrescer de ano para ano.


Testemunho

Conheci Kashgar nos finais da década de oitenta. Fascinado pela cultura local, decidi aprender o idioma uigur e viajei com uma trupe de músicos e dançarinos por todo o Xinjiang, então encerrado aos estrangeiros. Nos anos que se seguiram regressei ali um par de vezes, e já então fui testemunha de diversos atentados contra o património. Durante a demolição de uma parte significativa do Hotel Qinibagh, antigo consulado britânico, fui agredido porque tentei resgatar alguns dos livros da biblioteca que homens levavam em carros de mão para uma fogueira. Conheci o mercado de que nos fala o Amin desta reportagem. Um local cheio de tendinhas e lojas ocupadas por velhos de longas barbas e samarras de pele de ovelha. Comi aí, num pequeno boteco, o mais saboroso pulau (arroz com cenoura e uvas passas) da minha vida!


Um português há quatro séculos

Entre os ilustres visitantes do Turquestão chinês ao longo dos séculos, contam-se alguns aventureiros portugueses, sendo o leigo jesuíta Bento de Goes, dos Açores, o mais conhecido. Passou por Kashgar em 1604, na sua admirável jornada em busca do Cataio, e a caminho de Larcanda. Escreve o padre Fernão Guerreiro (que coligiu alguns apontamentos deixados pelo açoriano) que os habitantes locais ficaram surpreendidos por «um homem de tanta inteligência» não partilhar da sua fé. Por seu lado, Goes manifestou espanto pela quantidade de mesquitas e não se esqueceu de salientar a santidade das sextas-feiras e o apelo à oração feito do alto dos minaretes, que ainda hoje se faz sem microfones e, em certas ocasiões festivas, ao som de cornetas e tambores.


Fonte: este artigo foi publicado na revista NS, Notícias Sábado, do passado dia 18 de Julho

Para saber mais sobre os uigures:

http://www.uyghurnews.com/

http://www.uygur.org/

http://www.hunmagyar.org/turan/uygur/

http://uyguristan.blogspot.com/

http://www.unpo.org/