28.3.09

Utopias Piratas, de Peter Lamborn Wilson ( ou Hakim Bey), acaba de ser editado pela Deriva. Lançamento na livraria Gato Vadio (dia 2 de Abril, às 22h)

Peter Lamborn Wilson ( também conhecido por Hakim Bay)
e autor da conhecida obra TAZ (Zona Temporária Autónoma)

É já na próxima quinta-feira, dia 2 de Abril, às 22 horas, na Livraria Gato Vadio, na Rua do Rosário, 281, na cidade do Porto, que se realiza o lançamento e apresentação da tradução para português (em Portugal) do livro Utopias Piratas de Peter Lamborn Wilson (também conhecido por Hakim Bey).

Na ocasião haverá uma conversa com Miguel Mendonça, que traduziu e propôs à Deriva a publicação de Utopias Piratas de Peter Lamborn Wilson, e António Alves da Silva. Pretende-se com esta iniciativa proporcioar um debate informal sobre a pirataria moura do século XVII e o papel muito particular da República de Salé que, diga-se, está muito pouco estudada pela historiografia oficial.

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O autor, neste seu recente trabalho, foca a acção corsária da independente República pirata de Salé, durante o século XVII. Corsários, sufis, pederastas, mulheres mouras «irresistíveis», escravos, aventureiros, rebeldes irlandeses, judeus hereges, espiões britânicos, heróis populares da classe trabalhadora e até um pirata mouro em Nova Iorque, emprestam a este livro um ambiente livre constituído por comunidades insurrectas nunca verdadeiramente dominadas e portadoras de uma praxis de resistência social que abalou seriamente os estados europeus.

Peter Lamborn Wilson, nascido em 1945 e investigador e poeta norte-americano com vasta obra editada, escreveu «Sacred Drift: Essays on The Margins of Islam», na City Lights e «Scandal: in Islamic Heresy», Autonomedia

«O islamismo, no fim de contas, é o mais recente dos três monoteísmos ocidentais, e contém por isso a sua dose de crítica revolucionária do judaísmo e do cristianismo. A apostasia de um autoproclamado Messias ou de um pobre e anónimo marinheiro seria invariavelmente vista, nesta perspectiva, como um acto de revolta. O islão, em certa medida, foi a Internacional do século XVII – e Salé talvez o seu único e verdadeiro “Soviete”. À primeira vista, Salé aparenta ser um lugar ímpio, um ninho de piratas ateístas e violentos – mas assim que observamos e escutamos com mais atenção, quase podemos ouvir o eco das suas vozes distantes, recortadas em apaixonados debates e exaltadas oratórias. Os textos perderam-se ou talvez nunca tenham existido; era uma cultura oral, uma cultura auditiva… é difícil discernir os seus últimos murmúrios… mas não totalmente impossível!» Peter Lamborn Wilson



Um extracto do I Capítulo da obra «Utopias Piratas - Corsários Mouros e Renegados Europeus» de Peter Lamborn Wilson

Um Cristão “Tornado Turco”

“Os cristãos são tornados turcos e os turcos são filhos dos demónios.”
Novas do Mar, de Ward o Pirata (1609)

«Desde cerca de finais de 1500 até ao século XVIII, muitos milhares de europeus – homens e mulheres – converteram-se ao islão. Na sua grande parte viveram e trabalharam em Argel, Tunes, Tripoli, e na área de Rabat-Salé em Marrocos - os chamados Estados da Costa da Berberia. A maioria das mulheres tornava-se muçulmana ao casar com muçulmanos. Esta grande adesão é facilmente compreensível, ainda que seria fascinante se pudéssemos traçar as vidas de algumas delas em busca de uma Isabelle Eberhardt do século XVII. Mas e então os homens? O que os impelia, a eles, à conversão?
Os cristãos europeus tinham um termo especial para os designar: Renegados – ou seja, os apóstatas, os vira-casacas, os traidores. Havia uma certa razão em se pensar dessa forma, uma vez que a Europa cristã ainda estava em guerra com o islão. As cruzadas não tinham tido verdadeiramente um fim. O último reino mourisco em Espanha, Granada, não sucumbiu à Reconquista senão em 1492, e a última sublevação moura em Espanha teve lugar em 1610. O Império Otomano, vigoroso, brilhante, e armado até aos dentes (tal como a sua contemporânea Inglaterra isabelina/jacobina), orientou a sua ofensiva contra a Europa em duas frentes, por terra em direcção a Viena, e por mar em direcção ao Ocidente através do Mediterrâneo.
Nas línguas vernaculares europeias, ‘turco’ significava todo e qualquer muçulmano, incluindo os mouros do Norte de África. Dos renegados dizia-se que se tinham “tornado turcos” (do título de uma peça teatral, A christian turn’d turke de Robert Daborne, representada em Londres em 1612). O Turco Lascivo e o Soldado Cruel povoavam a literatura popular, e “muçulmano!” é ainda um insulto grave em Veneza. Se pensarmos na posição da imprensa americana durante a recente Guerra do Golfo, contra o Iraque, podemos compreender a ignorância e o preconceito europeus da época. A atitude da Europa face ao islão, desde o século XIX, tem vindo a complexificar-se cada vez mais, porque de facto a Europa do século XIX conquistou e colonizou uma boa parte do Dar al-Islam. Mas no século XVII não existia esse ponto de interpenetração de culturas, mesmo sendo de sentido único. Essencialmente, a Europa odiava e não compreendia o islão. E quanto a este, a palavra jihad, guerra santa, resume bem a sua atitude face ao cristianismo. A tolerância e a compreensão eram praticamente inexistentes em ambas as margens do fosso cultural.
Aos olhos da maioria dos europeus, os renegados assemelhavam-se a criaturas impregnadas de um mistério demoníaco. Não só tinham estas “traído Nosso Senhor”, como se tinham mesmo juntado à jihad. Quase todos os renegados se tinham tornado “Corsários da Berberia”. Dedicavam-se ao ataque e ao saque de navios europeus e capturavam os seus tripulantes cristãos, que depois de transportados até à Berberia eram libertados sob o pagamento de um resgate, ou vendidos como escravos. Claro que os “corsários” cristãos, incluindo os Cavaleiros de Malta, faziam exactamente o mesmo aos navios e equipagens muçulmanas. Mas eram muito poucos os cativos mouros que se “tornavam cristãos”. O fluxo de renegados transitava largamente num só sentido.
Os europeus assumiam que os apóstatas eram escumalha humana, e acreditavam que os motivos da sua conversão eram os piores imagináveis: ganância, ressentimento, vingança. Mas muitos deles já eram “piratas” antes de se converterem – e esses é óbvio que só procuravam uma desculpa para a continuação da sua vida de pirata. Seguramente que a outros, que eram capturados, lhes era oferecida a escolha entre a conversão ou escravatura, e que numa atitude cobarde escolhiam a apostasia e o crime. Os renegados eram assassinados em público em todos os países europeus, e queimados vivos em Espanha (pelo menos em teoria), mesmo que desejassem a reconversão. Neste sentido, o islão era entendido mais como uma espécie de praga moral, do que propriamente como uma simples ideologia inimiga.
No seio do mundo islâmico a atitude relativa à conversão pode ser descrita como sendo mais aberta. Os espanhóis forçavam os judeus e os muçulmanos a converter-se, mas mesmo assim expulsavam-nos. O islamismo, no entanto, conservava ainda uma visão de si mesmo enquanto nova religião, procurando expandir-se por todos os meios possíveis e sobretudo através da conversão. Os “Novos Muçulmanos” são ainda hoje considerados abençoados e mesmo “afortunados”, especialmente nas fronteiras do islão. Esta divergência de atitudes face ao acto da conversão ajuda a entender a vantagem no índice de cristãos convertidos ao islamismo em relação ao sentido inverso – mas a questão do “porquê” continua por responder. Talvez devamos começar por assumir que nenhuma interpretação dos renegados, ‘turca’ ou cristã, nos pode satisfazer a curiosidade. Podemos duvidar, por um lado, que estes homens fossem simplesmente a figura do demónio, e, por outro, que fossem anjinhos da jihad. Vamos assumir que as nossas respostas – se alguma se provar possível – se apresentarão bem mais complexas do que qualquer destas teorias do século XVII.
Curiosamente, são poucos os historiadores modernos que têm realmente tentado compreender os renegados. Por entre os historiadores europeus pesa ainda o estigma da “teoria demoníaca”, ainda que tenha sido racionalizada e elaborada e até mesmo invertida em hipóteses que soam plausíveis. As considerações frequentes rondam as seguintes: Como é que foi possível à grande e poderosa Europa não ter conseguido erradicar os corsários da Berberia durante três séculos inteiros? É sabido que a tecnologia naval e militar do islão era inferior à europeia. Os árabes, como todos sabemos, são maus marinheiros. Como explicar então este aparente enigma? A resposta é óbvia – os renegados. Foram eles, como europeus, que introduziram a tecnologia europeia aos muçulmanos, e que também lutaram por eles. Parece portanto, que a pirataria berberesca não passou de “une affaire des étrangers”, e que sem os renegados jamais poderia ter existido. [Coindreau, 1948] Eram traidores da pior espécie – mas brilhantes à sua própria maneira, na sua rudeza. A pirataria é desprezível – mas, apesar de tudo, tão romântica!
Quanto aos historiadores islâmicos, é natural que se ressintam com qualquer sugestão de inferioridade islâmica. As histórias locais de Rabat-Salé do século XIX, princípios do século XX, por exemplo, indicam claramente que os mouros, os berberes e os árabes do país, contribuíram bem mais, a longo prazo, para a história da “guerra sagrada sobre o mar” do que alguns milhares de convertidos. E quanto a estes, os seus descendentes continuam a viver em Rabat-Salé – tornaram-se marroquinos, independentemente das suas origens. A história dos corsários não é “um affaire de estrangeiros” mas parte da história do Magrebe, o FarWest do islão, e da então emergente nação marroquina. [Hesperis, 1971]
Nenhuma destas “explicações” sobre os renegados nos aproxima das motivações que os teriam levado a abraçar o islão, e a adoptar a vida de piratas berberescos. Traidores brilhantes ou heróis assimilados – nenhum dos dois estereótipos possui qualquer profundidade real. Ambos contêm elementos de verdade. Os piratas introduziram algumas técnicas e novidades estratégicas na Berberia, como iremos ver. E participaram no mundo islâmico em formas mais complexas do que como simples criminosos a soldo – ou como experts – como também veremos. Mas ainda não temos indícios do porquê do fenómeno em todo o seu conjunto. Devemos ter em conta que, apesar de alguns dos renegados terem sido letrados em numerosas línguas, nenhum deles era realmente literati. Não temos registos em primeira-mão, nenhum texto escrito pelos próprios. As suas origens sociais não lhes proporcionaram o hábito por uma escrita auto-analítica; um luxo que era ainda monopólio da aristocracia e de uma classe média emergente. A pluma da História está nas mãos dos seus inimigos. Os renegados, eles próprios, mantêm-se em silêncio.
É possível que nunca cheguemos realmente a descobrir as suas motivações. E talvez não nos seja possível fazer muito mais do que sugerir uma série de impressões e especulações complexas, e mesmo contraditórias. Mas mesmo assim, ainda podemos fazer melhor do que os historiadores neocolonialistas europeus, ou do que os nacionalistas marroquinos que, uns e outros, não conseguem observar o renegado sem deixar de o relacionar com os seus próprios preconceitos ideológicos.
(...)


Tradução de Miguel Mendonça