Viemos buscar o que é nosso.
Nestes dias de raiva, o espectáculo enquanto relação de poder, enquanto relação que confere memória aos objectos e aos corpos, confronta-se com um contra-poder difuso que desterritorializa as impressões, permitindo-lhes vaguear para longe da tirania da imagem e para o interior do campo dos sentidos. Os sentidos são sempre experimentados de forma antagonista (são sempre dirigidos contra qualquer coisa) – mas nas condições actuais dirigem-se para uma polarização cada vez mais aguda e radical.
Às caricaturas supostamente pacifistas dos meios de comunicação da burguesia («a violência é sempre inaceitável, onde quer que seja») apenas podemos contrapor gargalhadas: a sua dominação, a dominação dos espíritos tranquilos e do consenso, do diálogo e da harmonia, não é mais do que um bem calculado prazer pela bestialidade – a promessa de uma carnificina. O regime democrático, na sua fachada pacífica, não mata um Alexandros todos os dias, precisamente porque mata milhares de Ahmets, Fatimas, Jorjes, Jin Tiaos e Benajirs: porque assassina sistematicamente, estruturalmente e sem qualquer tipo de remorsos, a totalidade do terceiro mundo, ou seja, o proletariado global. Foi desta forma, através de um tranquilo massacre diário, que surgiu a ideia de liberdade: liberdade não como um pretenso bem universal, não como um direito natural de todos, mas como o grito dos amaldiçoados, como a premissa da guerra civil.
A história da ordem legal e da burguesia enquanto classe lava-nos o cérebro com uma imagem de progresso gradual e contínuo da humanidade, no interior do qual a violência representa uma lastimável excepção resultante do subdesenvolvimento económico, emocional e cultural. E no entanto todos nós, que fomos esmagados entre mesas de escola, atrás de secretárias e balcões, nas fábricas, sabemos demasiado bem que a história não é mais do que uma sucessão de actos de selvajaria instalados por um mórbido sistema de regras. Os cardeais da normalidade choram a lei violada pela bala do porco Korkoneas (o bófia assassino). Mas quem desconhece que a força da lei é apenas a força dos poderosos? Que é a própria lei que permite o uso da violência? A lei é o vazio do princípio ao fim; não contém qualquer significado, qualquer objectivo que não o poder codificado da imposição Simultaneamente, a dialética da Esquerda procura codificar o conflito, a batalha e a guerra, com a lógica da síntese de oposições. Desta maneira, constrói uma ordem, uma situação pacificada no interior da qual tudo encontra o seu devido lugar. E no entanto, o destino do conflito não é a síntese – tal como o destino da guerra não é a paz. Uma insurreição social é composta pela condensação e explosão de milhares de negações, mas não contém em qualquer momento ou em qualquer parte, a sua própria negação, o seu fim. Isto parece sempre certamente pesado e preocupante para as instituições de mediação e de normalização, para a Esquerda que promete o voto aos 16 anos, o desarmamento mas manutenção da polícia, um Estado social, etc. Para aqueles que, por outras palavras, desejam capitalizar politicamente as feridas dos outros. A doçura do seu comprometimento deita sangue.
A violência social não pode ser responsabilizada por aquilo que não assume: é destrutiva do início ao fim. Se as lutas da modernidade nos ensinaram alguma coisa não foi certamente a sua triste fixação num sujeito (a classe, o partido, o grupo), mas antes o seu processo sistematiamente antidialético: o acto de destruição não implica necessariamente uma dimensão de criação. Noutras palavras, a destruição do velho mundo e a criação de um novo implicam dois processos distintos, ainda que convergentes. A questão que se coloca é então que métodos de destruição do que existe podem ser desenvolvidos em diferentes pontos e momentos de uma insurreição. Que métodos permitem, não apenas preservar a profundidade e a extensão de uma insurreição mas também contribuem para o seu crescimento qualitativo. Os ataques a esquadras da bófia, os confrontos e cortes de estrada, as barricadas e luta de rua, constituem agora um fenómeno quotidiano e socializado nas metrópoles e para além delas. Tudo isso contribuiu para um abalo parcial do ciclo da produção e do consumo. E no entanto, constituem apenas uma identificação parcial do inimigo,directa e óbvia para todos, mas ainda encurralada apenas numa dimensão do ataque contra as relações sociais dominantes. Contudo, o próprio processo de produção e circulação de bens, noutras palavras, o Capital enquanto relação, foi apenas indirectamente abalado pelas mobilizações. Um espectro paira sobre a cidade em chamas: a greve geral selvagem por tempo indeterminado.
A crise capitalista global negou aos patrões a sua mais dinâmica e eficaz resposta à insurreição: “Oferecemos-vos tudo, para sempre, enquanto que eles apenas vos podem oferecer um presente de incerteza.” Com uma firma a colapsar a seguir à outra, o capitalismo e o Estado já não estão em condições de oferecer mais do que dias piores por vir, condições financeiras mais apertadas, despedimentos, suspensão de pensões, cortes nas despesas sociais, destruição do sistema de educação gratuita. Pelo contrário, em apenas sete dias, os insurrectos provaram na prática aquilo que podem fazer: tornando a cidade num campo de batalha, criando enclaves libertados espalhados pela malha urbana, abandonando o seu individualismo e a patética segurança que o acompanha, procurando a composição do seu poder colectivo e a completa destruição deste sistema assassino.
Na conjuntura histórica em que nos encontramos, de crise, raiva e bloqueio das instituições, a única coisa que pode converter o abalo do sistema em revolução social é a rejeição total do Trabalho.
Quando as lutas de rua tiverem como cenário ruas escuras devido à greve da Companhia de Eletricidade; quando os confrontos tiverem lugar por entre toneladas de lixo por recolher, quando os elétricos forem utilizados para fechar estradas e bloquear a polícia, quando o professor em greve acender o cocktail molotov do seu aluno revoltoso, então poderemos finalmente afirmar: «”Os dias desta sociedade estão contados; as suas justificações e os seus méritos foram pesados, e considerados ligeiros; os seus habitantes dividiram-se em dois partidos, dos quais um deseja que ela desapareça.” Esta afirmação deixou actualmente de ser uma mera fantasia para se converter numa real possibilidade nas mãos de qualquer um: a possibilidade de agira concretamente sobre o concreto. A possibilidade de tomar o céu de assalto.
Se tudo isto parece prematuro, nomeadamente a extensão do conflito à esfera da produção circulação, com sabotagens e greves selvagens, talvez seja apenas porque ainda mal nos apercebemos da velocidade com que o poder se decompõe, de quão rápido as práticas conflituais e as formas de organização não hierárquicas se difundem socialmente: desde estudantes do secundário que apedrejam esquadras da polícia, até trabalhadores municipais e moradores que ocupam os edifícios das Câmaras Municipais. A revolução não acontece através de rezas e súplicas pelas condições históricas mais favoráveis. Desenvolve-se pelo aproveitamento de cada oportunidade de insurreição em qualquer aspecto social, pela transformação de cada gesto relutante de condenação da polícia em ataque decidido contra os fundamentos do sistema.
14/12/2008. Documento redigido a partir da Faculdade de Economia Ocupada de Atenas.