20.12.08

Comuna da Luz (em Odemira) e a Comuna Clarão (em Sintra) foram as 1ªs comunidades portuguesas anarquistas-naturistas fundadas por A. Gonçalves Correia

Imagem de uma comunidade anarquista-naturista-vegetariana em França numa sessão de Esperanto

A Comuna da Luz ( situada na herdade das Fornalhas Velhas, em Vale de Santiago, concelho de Odemira, hoje com a designação de Monte da Comuna, mas que já pouco resta das antigas instalações) é considerada a primeira comunidade anarquista a ser criada em Portugal, tendo perdurado ao longo de dois anos (1917 e 1918).

O principal promotor foi o anarquista António Gonçalves Correia, inspirado pelas ideias de Tolstoi e do pedagogo libertário Francisco Ferrer.

Pelo que se sabe, a comunidade contava com cerca de quinze companheiros que se dedicavam à agricultura e ao fabrico de calçado, praticando o vegetarianismo e o naturismo (nudismo). Fazia parte do grupo uma professora, o que na época era allgo de extraordinário, e a sua presença é justificada pela orientação racionalista que o mentor e principal promotor da Comunidade atribuía à aplicação dos métodos pedagógicos racionalistas do grande intelectual e pedagogo espanhol Francisco Ferrer

Durante a sua curta duração, a comunidade anarquista foi alvo de preconceitos burgueses e da repressão policial, os quais acusaram constantemente que a mesma comuna tenha desencadeado e organizado o surto grevista dos trabalhadores rurais que varreu o Alentejo.

Com efeito à greve geral de Novembro de 1918 não foi estranho os ideais libertários que os membros da Comuna da Luz espalharam entre as populações locais de Vale de Santiago. Em 1918, a mesma foi extinta , quando se espalharam rumores de que a comunidade estava associada à morte de Sidónio Pais. Após o seu desmantelamento, António Gonçalves Correia foi preso.

De qualquer forma , António Gonçalves Correia não se dá por vencido. Após a sua saída da prisão, em meados de 1926, funda a Comuna Clarão localizada em Albarraque ( na freguesia de Rio de Mouro, concelho de Sintra)

Ambas as comunidades anarquistas tentaram aproximar-se do ideal libertário de Tolstoi - uma das maiores fontes de inspiração do anarquismo português protagonizado por António Gonçalves Correia.

A Comuna Clarão tinha como objectivo declarado pôr em prática um ideal de vida alternativo, dedicando-se à floricultura, à horticultura, e assumindo-se também, depois de 1926, como foco de resistência à ditadura, servindo mesmo de esconderijo a muitos perseguidos.

Também aqui as coisas nem sempre correram bem para Gonçalves Correia que entrou em desacordo com alguns companheiros, porventura menos honestos e menos coerentes com os ideais proclamados de fraternidade e tolerância, acabando por se extinguir.

Fonte: Wikipedia




Comunidade anarquista-naturista francesa - um exemplo dos célebres Milieux Libres



Quem foi António Gonçalves Correia

António Gonçalves Correia (1886 – 1967), natural da aldeia de S. Marcos da Ataboeira (Castro Verde), foi caixeiro viajante, vegetariano e tolstoiano, e é hoje ainda uma figura humana que perdura na memória de muitos alentejanos, na história da sua luta social, na imagem do “revolucionário” que percorria o Baixo Alentejo na difusão do ideal anarquista.

Nas palavras de Raul Brandão, que o descreve no seu livro «Os Operários», este homem «extraordinário, de grandes barbas tolstoianas e o cabelo caído pelas costas à nazareno» percorria o Alentejo, com a sua maleta de caixeiro-viajante cheia de sonhos. Gonçalves Correia era visto ainda como o homem que comprava pássaros para depois os soltar, no meio de vivas à liberdade.


Figura justamente celebrada, pelas edições do empolgante CD “No Paraíso Real” (ao qual Gonçalves Correia dava a capa e motivo de alguns dos testemunhos orais acerca da “revolta e utopia no sul de Portugal”) e sobretudo pela pequena biografia da autoria de Alberto Franco “A Revolução é a Minha Namorada. Memória de António Gonçalves Correia, anarquista alentejano” (da qual se remetem as citações que se seguem) a qual procura “fazer justiça ao movimento anarquista português de princípios do século, cuja memória foi meticulosamente apagada por 48 anos de ditadura, mas também por algumas forças de esquerda, ansiosas por monopolizar o combate ao Estado Novo”.

Homem culto, autodidacta, poeta social (que usa por vezes o pseudónimo de Pedro Monséni), adepto de Tolstoi, utiliza também a escrita como veículo de propaganda dos seus ideais. Colabora em vários jornais, como A Batalha, A Aurora, O Rebelde. Em 1916, por exemplo, funda o semanário A Questão Social, na vila de Cuba. Aí, publica uma série de artigos onde faz a apologia das suas ideias inovadoras – a defesa da liberdade e da emancipação da mulher, do naturismo, do respeito pelos animais, da ecologia, do amor livre e liberto das peias do casamento, da nãoviolência; a condenação do militarismo e do flagelo da guerra, e até da caça e do consumo do álcool.

Um ano depois, em 1917, publica um longo opúsculo, intitulado Estreia de um crente, que constitui, como diz justamente Alberto Franco, «um pequeno manual do pensamento libertário, temperado com o lirismo humanista do seu autor» (pág.35). Os capítulos da obra correspondem, aliás, a cartas dirigidas «a um anarquista», «a um tio rico», «a um republicano», «a um caçador», «a uma mulher», «a um advogado», «a um condenado», servindo cada uma delas como pretexto para o desenvolvimento dessas ideias. É precisamente na sua carta a um advoga- do que Gonçalves Correia escreve: «A revolução é a minha namorada».

Também num outro opúsculo, A Felicidade de todos os Seres na Sociedade Futura (1ª ed., 1923), Gonçalves Correia defende a colectivização da propriedade, a modernização da agricultura, manifestando a sua crença no pro- gresso e no contributo fundamental da máquina para a libertação do Homem.

A vida de Gonçalves Correia cruza-se pois com a história da primeira metade do século XX, política, económica e social. Cruza-se e funde-se com o emancipar das ideias anarquista, com as lutas anarco-sindicalistas das minas de Aljustrel, São Domingos ou Lousal, com as lutas dos camponeses do Alto ao Baixo Alentejo e com os vários grupos e jornais anarquistas de Portalegre e Évora, a Odemira ou Cercal do Alentejo, etc. Sobre os princípios de vida de Gonçalves Correia, a sua biografia chama a atenção para que quem hoje olhe para os “tópicos da cultura libertária de há 100 anos, não deixará de se surpreender com a actualidade de muitas das propostas. Com efeito, grande número dos princípios que enformam a nossa modernidade – a liberdade, a emancipação da mulher, a defesa do amor livre, a ecologia, o respeito pelos animais, o naturismo, certos estilos alternativos de vida – mergulham as suas raízes na velha moral anarquista”.

Certos do reconhecimento da autêntica sementeira e germinal de valores e princípios anarquistas na actual “modernidade”, pese o seu persistente escamoteamento, não chegamos porém a concluir, como Alberto Franco, que “um século depois, estão socialmente consagrados muitos dos postulados do pensamento libertário, fruto de um debate intelectual estimulante e, sob muitos aspectos, antecipador”. Os postulados anti-autoritários do pensamento libertário travam mais do que nunca uma luta pela sua vitória, e nesta luta a memória histórica do anarquismo agita-se hoje ainda, no debate, na prática, e nos novos desafios que colocados à velha moral anarquista não a condenam à velhice, antes a estimulam incorrigivelmente a prosseguir na “Felicidade de todos os seres na Sociedade Futura”, como já apelava o nosso anarquista de S. Marcos da Atabueira.

Gonçalves Correia perfilhava as ideias do anarquismo tolstoniano: pacifista, na condenação de todas as formas de violência; pela transformação do indivíduo através da bondade e da fraternidade. Um tom essencialmente moral, que contudo comunga no movimento libertário com correntes mais centradas na acção directa (seja ela violenta ou não) dos mesmos objectivos emancipadores do homem ao Estado e à autoridade.

A noção de socialismo de Gonçalves Correia ( segundo o opúsculo de 1917 “Estreia de um Crente”, a sua primeira obra, a que se seguirá em 1923 “A Felicidade de todos os Seres na Sociedade Futura”) é formulado nos seguintes termos:

“… bom, será definirmos o que é o socialismo, pois temos duas espécies: temos o socialismo parlamentar, nocivo, intervencionista (…) e temos o socialismo libertário, consciente, da acção directa, que só por si faz tremer os cómodos barões que desfrutam os benefícios do património comum. Esse sim. É o socialismo do futuro, sem deputados, sem eleições, sem o deprimente «carneiro com batatas», que corrompe consciências, que aniquila caracteres”.

Note-se o intento alter-globalizador “sentido que a humanidade só será feliz no dia em que der as mãos, alheia à fraternidade oficial, uma mentira repugnante, [pelo que Gonçalves Correia] declara-se anti-patriótico”, reivindicando a “abolição das fronteiras, separadoras de povos, de raças”.

Bibliografia:

FRANCO, Alberto (2000): "A revolução é a minha namorada - Memórias de António Gonçalves Correia, anarquista alentejano", ed. Câmara Municipal de Castro Verde; Destaque ainda para "No Paraíso Real: tradição, revolta e utopia no Sul de Portugal" (CD), ed. O Canto do Som, 2000.

“Naturismo e comunismo: uma aliança sagrada” foi o título da comunicação apresentada por Gonçalves Correia no 1.º Congresso Vegetariano Naturista da Península, realizado em Lisboa em Junho de 1919.

ROCHA, Francisco Canais, e LABAREDAS, Maria Rosalina (1982): "Os trabalhadores rurais do Alentejo e o sidonismo: ocupação de terras no Vale de Santiago", Lisboa, Edições Um de Outubro: pp. 168-69

Consultar:
http://goncalvescorreia.blogspot.com/




António Gonçalves Correia: acima de tudo, um anarquista
por J. M. Carvalho Ferreira


Alberto Franco fez um trabalho de investigação exemplar: conseguiu resgatar os traços essenciais da trajectória da vida de um homem que tentou viver a anarquia de uma forma muito sui generis. Embora já tivesse oportunidade de ler dois pequenos livros de António Gonçalves Correia - Estreia de um Crente (1917); A Felicidade de todos os Seres na Sociedade Futura (1921) -, Alberto Franco não somente soube extrair os elementos analíticos e ideológicos cruciais que configuraram o pensamento desse grande anarquista alentejano, como também contextualizou socio-historicamente a sua luta e sua vida nos parâmetros do imaginário colectivo e práticas do anarquismo durante o século XX em Portugal.

Os conteúdos e as formas do pensamento, assim como as experiências comunitárias, de António Gonçalves Correia, mais do que nunca, devem ser objecto de um exercício de interpretação e de compreensão por todos aqueles que se dizem libertários.
Na minha opinião, existem três razões plausíveis que me levam a fazer estas afirmações. Em primeiro lugar, o pensamento e as formas de intervenção social de António Gonçalves demonstram à saciedade que a anarquia, enquanto um ideal, uma filosofia, uma ética e uma estética, é sempre possível de ser interpretada, explicada e vivida consoante cada indivíduo ou grupo que aspira à construção de uma sociedade sem deuses e sem amos. A visão tolstoiniana que António Gonçalves Correia tem da anarquia leva-o a abraçar um tipo de anarquismo naturista e pacifista, numa época em que predominavam as teorias e as práticas do anarco-comunismo e do anarco-sindicalismo. Não admira assim que a sua intervenção social fosse marginal no contexto dos movimentos sociais e do anarquismo que tinham maior expressão nas primeiras décadas do século XX em Portugal.
Em segundo lugar, os exemplos comunitários de construção e de experimentação social anarquista no contexto das sociedades capitalistas, como foram os casos emblemáticos da Comuna da Luz, sediada em Vale de Santiago, entre 1917 e 1918, e a Comuna Clarão, sediada em Albarraque, entre finais da década de vinte e princípios da década de trinta do século XX, revelaram-se extraordinariamente importantes, na medida em que essas duas experiências se traduziram em modalidades práticas de utopias concretas. Essas experiências, ainda que tenham soçobrado e tenham sido atravessadas por uma série de contradições e conflitos, revelaram sobremaneira que não existe dissociação espácio-temporal entre reforma e revolução, entre teoria e prática, e sobretudo entre a utopia com um sentido histórico absoluto e a utopia com um sentido histórico relativo. Com esses tipos de experimentação social comunitária, António Gonçalves Correia e as outras pessoas que participaram nesse processo demonstraram quão difícil é traduzir na prática os princípios estruturantes da emancipação social: liberdade, fraternidade, amor e solidariedade.
Em terceiro lugar, os exemplos subjacentes aos princípios e práticas do anarco-naturismo e do anarco-pacifismo que atravessaram a vida quotidiana de António Gonçalves Correia revestem-se de uma grande actualidade. Na verdade, quando hoje à escala mundial assistimos à destruição progressiva da natureza, com especial incidência na evidência empírica que nos é transmitido pela poluição atmosférica, camada do ozono, morte dos rios, florestas e mares, a atitude de António Gonçalves Correia em relação às espécies animais e vegetais é de uma força simbólica inimaginável. Comprar passarinhos que estavam prisioneiros nas gaiolas aos comerciantes que os vendiam nas feiras do Alentejo para depois os libertar, ou desviar-se com a sua bicicleta dos caminhos percorridos pelas formigas para não as matar, são exemplos paradigmáticos de como nós devemos agir para se construir um equilíbrio ecossistémico entre todas as espécies animais e vegetais. São exemplos significativos que não basta lutar exclusivamente pelo fim da opressão e exploração entre os seres humanos, mas também contra a opressão e exploração destes sobre as outras espécies animais e vegetais.
Enfim, um livro para ler e aprender com a vida de um homem que não se vergou aos ditames do progresso e da razão, aos desígnios e estratégias do capital e do Estado.
Alberto Franco, A revolução é a minha namorada - Memórias de António Gonçalves Correia, anarquista alentejano. Ed. Câmara Municipal de Castro Verde, 2000.



Membros da Comunidade anarquista-tolstoniana de Whiteway, no Gloucestershire, Inglaterra, que perdurou entre 1922 a 1903