texto retirado de:
http://pt.mondediplo.com/spip.php?article155
Simone de Beauvoir, «uma mocinha de unhas pintadas»
(inédito)
por Sylvie Tissot
Mulher apaixonada e mulher infeliz, ao mesmo tempo autoritária e submissa, inteligente mas de sentidos à flor da pele, muito estilizada apesar do seu estranho penteado, devoradora de amantes e no entanto ligada para sempre a um único homem. De quem se trata? De Britney Spears, Rachida Dati, Carla Bruni? Não, este retrato é o que o semanário Le Nouvel Observateur [1] apresenta de uma mulher que foi filósofa, intelectual comprometida e militante, e que para muita gente, em França e no estrangeiro, encarna o feminismo: Simone de Beauvoir. Para esse retrato ser traçado foram mobilizados os mesmos meios que a imprensa sensacionalista emprega, não faltando sequer a fotografia «chocante», neste caso um nu em plena capa. O dossiê, publicado por ocasião do centenário do nascimento de Simone de Beauvoir, é eloquentíssimo no que diz respeito às condições graças às quais uma mulher pode dar entrada, em França, nos nossos dias, no Panteão dos Grandes Homens.
A primeira condição para ali penetrar é que esteja… acompanhada por um homem. Beauvoir está sempre acompanhada ao longo de todo o dossiê do Nouvel Observateur. Este começa com o relato da ligação que ela teve com Claude Lanzmann, prossegue com Jean-Paul Sartre e termina com o amante americano Nelson Algren. Os primeiros parágrafos mostram uma mulher que vive uma relação intensa e conjugal (as cartas a Lanzmann são assinadas «Tua mulher»), cheia de gratidão por aquele amor inesperado («ela que já se considerava demasiado velha para o amor, chora então de amor e felicidade», escrevem as jornalistas a propósito de uma mulher de… 44 anos). Ou, para citar as palavras de Lanzmann, «uma mulher autêntica, completa».
Lanzmann – e as jornalistas – estarão mesmo a falar de Simone de Beauvoir? Da autora de «não nascemos mulher, tornamo-nos mulher», da que mostrou que ser mulher não remetia para nenhuma «natureza» que o predeterminasse? Parece que sim, mas o tom revela-se-nos logo: a verdadeira mulher não é a feminista nem a militante que muitos conhecem, é a «grande apaixonada», explica Arielle Dombasle, a quem recorreu o Nouvel Observateur (talvez por também ela ser aquilo que Beauvoir lhe parece ser acima de tudo: «mulher de um filósofo»).
É pois como se a vida amorosa de uma mulher que não se casou, não teve filhos e parece ter tido um certo número de amantes de ambos os sexos, se houvesse unicamente manifestado sob a tutela dos homens (as suas relações homossexuais são apenas evocadas como expressão da sua personalidade «manipuladora»), à maneira da paixão trágica e sobre o pano de fundo duma reconciliação tardia com a conjugalidade monogâmica (foi sepultada «levando num dedo o anel de prata que Nelson Algren lhe oferecera»).
A fotografia publicada na capa, tal como a insistência na vida amorosa de Beauvoir, é seguramente chocante. Como se a filósofa tivesse sido obrigada, antes de aceder à honra das revistas e à glória da celebração nacional, não apenas a dar provas do seu amor pelos homens, mas também… a despir-se. A mulher só é «verdadeiramente» mulher na medida em que for um corpo, e um corpo que não se recuse ao olhar dos homens – nem ao dos publicitários.
Mas esta fotografia desnudada só adquire todo o sentido quando relacionada com o dossiê de Agathe Logeart e Aude Lancelin e com a oposição radical, maniqueísta, em que ele assenta – entre, por um lado, a vida sexual e afectiva de Simone de Beauvoir, e, por outro lado, a sua vida intelectual e militante. «A companheira de Sartre declarou guerra ao patriarcado, mas também foi vítima da paixão», explica-se na introdução. De um lado, a Beauvoir formada em filosofia, autora d’O Segundo Sexo e Prémio Goncourt, militante feminista e de esquerda; do outro lado, a Beauvoir mulher e amante, empolgada pelo desejo e pelas paixões, duas realidades pensadas como antagónicas – como se a vida amorosa de Beauvoir, o seu companheirismo intelectual e o seu casal não exclusivo com Sartre nada tivessem a ver com o seu questionamento das normas conjugais e familiares.
O que diz respeito ao «privado» da vida de Simone de Beauvoir nunca é pensado como «político»; fica-se sempre pela oposição muito «tradicional» – e reaccionária – entre o afecto e o intelecto, entre o corpo e a mente [2]. Esta oposição é sem dúvida um truque jornalístico, mas permite também reafirmar a distinção entre os âmbitos que seriam «naturalmente» ocupados pelos homens e pelas mulheres. Para os homens, a abstracção, para as mulheres, a paixão. De resto, a tentativa empreendida por Beauvoir de desconstruir nos seus livros, e de superar na sua vida, essa sacrossanta barreira é associada à intolerância, à secura e, finalmente, à infelicidade. Ainda no mesmo artigo, Beauvoir é apresentada como uma pessoa que «dá lições, fechada nas suas certezas»; é seguramente «sincera» no seu compromisso, mas «tão fria» que se torna a «Dama de Ferro sartriana».
Acentua essa oposição a ideia, implícita no dossiê, segundo a qual a «natureza» volta sempre ao de cima. Pois não foi sempre Beauvoir uma «jovenzinha fútil até à ponta das suas unhas pintadas»? Explicando Philippe Sollers que, com a sua voz, «empoleirada, desagradável, teimosa, didáctica, ela parecia negar a sua bela imagem». Está tudo dito: Beauvoir é mais encantadora no domínio da aparência, não no da linguagem articulada. Coisa que Arielle Dombasle confirma: «Escondida atrás de fatos grosseiros e turbantes austeros», ela era, mesmo assim, «uma mulher deslumbrante». Porque, naturalmente, seria impróprio que uma mulher célebre e francesa fosse feia e andasse vestida às três pancadas.
Depois, a profética audácia sollersiana enterra a Simone de Beauvoir intelectual e militante: «Ela ficará como uma grande epistológrafa». Decretando como superiores à sua obra teórica as obras-primas que são as suas cartas de amores, Sollers convida-nos a «(re)ler Beauvoir» a epistológrafa, a Beauvoir do segredo e do íntimo, dos sentimentos e das efusões: a Beauvoir, em suma, «sensual e divertida».
Deste modo, o dossiê em questão vem alimentar a temática favorita do backlash antifeminista [3]: a luta das mulheres endurece-as, isola-as, torna-as infelizes. Esta conclusão vai sendo progressivamente exposta através da ideia de que a luta de Beauvoir é violenta. A «guerra» que ela levou a cabo vê-se reduzida a umas quantas reivindicações rapidamente evocadas: a recusa do «futuro másculo», o carácter não misto dos grupos feministas, a defesa do direito das mulheres à violência, a supressão da família em prol da comunidade… Em relação a estas coisas seria de esperar que houvesse algumas explicações, mas os leitores têm de contentar-se com uma simples enumeração, a que logo se segue esta desconcertante questão: «Lida e escutada, celebrada em todo o mundo, seria ela feliz?».
A resposta tão esperada é-nos fornecida umas páginas mais à frente por (mais uma vez) Arielle Dombasle, que vai ao ponto de celebrar o malogro da busca beauvoiriana de uma «liberdade que estava acima das suas forças». Concluindo a actriz-cantora com uma comovente visão de Beauvoir, que «ia sentar-se num banquinho, só, junto ao túmulo de Sartre […] chorando o amor de toda a sua vida». Seria pois esse trágico destino que faria de Simone de Beauvoir uma mulher excepcional. E porquê? Devido ao seu carácter ponderado, de forma completamente tautológica, quase excepcional, e nunca em ligação com a sua obra e a sua acção. Deste ponto de vista, o título do dossiê («Uma mulher escandalosa») é revelador, porque, embora as jornalistas citem as reacções indignadas de Albert Camus ou de François Mauriac após a publicação d’O Segundo Sexo em 1949 [4], elas não consideram oportuno precisar quais são as teses que suscitaram a máscula indignação.
Beauvoir, em suma, entra no património nacional um pouco como Guy Môquet [5] deu entrada no panteão sarkozista: como uma personagem mitificada e despolitizada, desligada de qualquer contexto social e de todas as relações de dominação [6]. Os conflitos são apagados em proveito duma celebração do génio nacional, em que Beauvoir é graciosamente convidada a participar. É aliás sintomático que o artigo dedicado à actualidade de Beauvoir inclua uma série de depoimentos de personalidades feministas contemporâneas, apresentadas como individualidades e nunca como actuantes nas lutas colectivas. A contrario, o maior realce é dado, em destaques, a Philippe Sollers ou Arielle Dombasle, celebridades que falam tu cá tu lá com Beauvoir mas pouco conhecidas pela sua obra filosófica – ou pelo seu empenhamento feminista.
Segundo expôs Roland Barthes, a descrição dos escritores ausentes reforça a imagem de pessoas «à parte», celebradas enquanto tais e nunca pela singularidade da sua produção e do papel que desempenharam [7]. Não é pois surpreendente que o dossiê sobre Simone de Beauvoir termine com a homenagem do povo humilde e respeitoso, os criados de mesa do café parisiense La Coupole, que, «à passagem do cortejo fúnebre, formaram alas em sua honra».
Por SYLVIE TISSOT *
* Socióloga, membro do Colectivo das Feministas pela Igualdade (Collectif des féministes pour l’egalité).
Notas
[1] «Simone de Beauvoir. La scandaleuse», Le Nouvel Observateur, Paris, 3-9 de Janeiro de 2008.
[2] Michelle Le Doeuff, Le Sexe du savoir, Aubier-Montaigne, Paris, 1998.
[3] Susan Faludi, Backlash: la guerre froide contre les femmes, Des Femmes, Paris, 1993.
[4] Ler Sylvie Chaperon, «Le “Deuxième Sexe” en héritage», Le Monde diplomatique, Janeiro de 1999.
[5] Alusão ao jovem militante comunista de 17 anos que em 1941 foi fuzilado pelos ocupantes nazis, juntamente com outros vinte e seis reféns, e que se tornou um símbolo da resistência antifascista em França. Em 2007, durante a campanha eleitoral, o candidato Nicolas Sarkozy referiu a «Carta de Adeus» de Guy Môquet como um documento que deveria ser lido a todos os alunos franceses do secundário enquanto testemunho do «amor pela pátria», eliminando a identidade política do autor e o contexto da época. (N. do T.)
[6] Laurence De Cock-Pierrepont, «Des usages étatiques de la lettre de Guy Môquet», http://cvuh.free.fr/spip.php?article94.
[7] Roland Barthes, Mythologies, Seuil, Paris, 1992 [1957]. Edição portuguesa: Mitologias, Edições 70, Lisboa, 1984.
http://pt.mondediplo.com/spip.php?article155
Simone de Beauvoir, «uma mocinha de unhas pintadas»
(inédito)
por Sylvie Tissot
Mulher apaixonada e mulher infeliz, ao mesmo tempo autoritária e submissa, inteligente mas de sentidos à flor da pele, muito estilizada apesar do seu estranho penteado, devoradora de amantes e no entanto ligada para sempre a um único homem. De quem se trata? De Britney Spears, Rachida Dati, Carla Bruni? Não, este retrato é o que o semanário Le Nouvel Observateur [1] apresenta de uma mulher que foi filósofa, intelectual comprometida e militante, e que para muita gente, em França e no estrangeiro, encarna o feminismo: Simone de Beauvoir. Para esse retrato ser traçado foram mobilizados os mesmos meios que a imprensa sensacionalista emprega, não faltando sequer a fotografia «chocante», neste caso um nu em plena capa. O dossiê, publicado por ocasião do centenário do nascimento de Simone de Beauvoir, é eloquentíssimo no que diz respeito às condições graças às quais uma mulher pode dar entrada, em França, nos nossos dias, no Panteão dos Grandes Homens.
A primeira condição para ali penetrar é que esteja… acompanhada por um homem. Beauvoir está sempre acompanhada ao longo de todo o dossiê do Nouvel Observateur. Este começa com o relato da ligação que ela teve com Claude Lanzmann, prossegue com Jean-Paul Sartre e termina com o amante americano Nelson Algren. Os primeiros parágrafos mostram uma mulher que vive uma relação intensa e conjugal (as cartas a Lanzmann são assinadas «Tua mulher»), cheia de gratidão por aquele amor inesperado («ela que já se considerava demasiado velha para o amor, chora então de amor e felicidade», escrevem as jornalistas a propósito de uma mulher de… 44 anos). Ou, para citar as palavras de Lanzmann, «uma mulher autêntica, completa».
Lanzmann – e as jornalistas – estarão mesmo a falar de Simone de Beauvoir? Da autora de «não nascemos mulher, tornamo-nos mulher», da que mostrou que ser mulher não remetia para nenhuma «natureza» que o predeterminasse? Parece que sim, mas o tom revela-se-nos logo: a verdadeira mulher não é a feminista nem a militante que muitos conhecem, é a «grande apaixonada», explica Arielle Dombasle, a quem recorreu o Nouvel Observateur (talvez por também ela ser aquilo que Beauvoir lhe parece ser acima de tudo: «mulher de um filósofo»).
É pois como se a vida amorosa de uma mulher que não se casou, não teve filhos e parece ter tido um certo número de amantes de ambos os sexos, se houvesse unicamente manifestado sob a tutela dos homens (as suas relações homossexuais são apenas evocadas como expressão da sua personalidade «manipuladora»), à maneira da paixão trágica e sobre o pano de fundo duma reconciliação tardia com a conjugalidade monogâmica (foi sepultada «levando num dedo o anel de prata que Nelson Algren lhe oferecera»).
A fotografia publicada na capa, tal como a insistência na vida amorosa de Beauvoir, é seguramente chocante. Como se a filósofa tivesse sido obrigada, antes de aceder à honra das revistas e à glória da celebração nacional, não apenas a dar provas do seu amor pelos homens, mas também… a despir-se. A mulher só é «verdadeiramente» mulher na medida em que for um corpo, e um corpo que não se recuse ao olhar dos homens – nem ao dos publicitários.
Mas esta fotografia desnudada só adquire todo o sentido quando relacionada com o dossiê de Agathe Logeart e Aude Lancelin e com a oposição radical, maniqueísta, em que ele assenta – entre, por um lado, a vida sexual e afectiva de Simone de Beauvoir, e, por outro lado, a sua vida intelectual e militante. «A companheira de Sartre declarou guerra ao patriarcado, mas também foi vítima da paixão», explica-se na introdução. De um lado, a Beauvoir formada em filosofia, autora d’O Segundo Sexo e Prémio Goncourt, militante feminista e de esquerda; do outro lado, a Beauvoir mulher e amante, empolgada pelo desejo e pelas paixões, duas realidades pensadas como antagónicas – como se a vida amorosa de Beauvoir, o seu companheirismo intelectual e o seu casal não exclusivo com Sartre nada tivessem a ver com o seu questionamento das normas conjugais e familiares.
O que diz respeito ao «privado» da vida de Simone de Beauvoir nunca é pensado como «político»; fica-se sempre pela oposição muito «tradicional» – e reaccionária – entre o afecto e o intelecto, entre o corpo e a mente [2]. Esta oposição é sem dúvida um truque jornalístico, mas permite também reafirmar a distinção entre os âmbitos que seriam «naturalmente» ocupados pelos homens e pelas mulheres. Para os homens, a abstracção, para as mulheres, a paixão. De resto, a tentativa empreendida por Beauvoir de desconstruir nos seus livros, e de superar na sua vida, essa sacrossanta barreira é associada à intolerância, à secura e, finalmente, à infelicidade. Ainda no mesmo artigo, Beauvoir é apresentada como uma pessoa que «dá lições, fechada nas suas certezas»; é seguramente «sincera» no seu compromisso, mas «tão fria» que se torna a «Dama de Ferro sartriana».
Acentua essa oposição a ideia, implícita no dossiê, segundo a qual a «natureza» volta sempre ao de cima. Pois não foi sempre Beauvoir uma «jovenzinha fútil até à ponta das suas unhas pintadas»? Explicando Philippe Sollers que, com a sua voz, «empoleirada, desagradável, teimosa, didáctica, ela parecia negar a sua bela imagem». Está tudo dito: Beauvoir é mais encantadora no domínio da aparência, não no da linguagem articulada. Coisa que Arielle Dombasle confirma: «Escondida atrás de fatos grosseiros e turbantes austeros», ela era, mesmo assim, «uma mulher deslumbrante». Porque, naturalmente, seria impróprio que uma mulher célebre e francesa fosse feia e andasse vestida às três pancadas.
Depois, a profética audácia sollersiana enterra a Simone de Beauvoir intelectual e militante: «Ela ficará como uma grande epistológrafa». Decretando como superiores à sua obra teórica as obras-primas que são as suas cartas de amores, Sollers convida-nos a «(re)ler Beauvoir» a epistológrafa, a Beauvoir do segredo e do íntimo, dos sentimentos e das efusões: a Beauvoir, em suma, «sensual e divertida».
Deste modo, o dossiê em questão vem alimentar a temática favorita do backlash antifeminista [3]: a luta das mulheres endurece-as, isola-as, torna-as infelizes. Esta conclusão vai sendo progressivamente exposta através da ideia de que a luta de Beauvoir é violenta. A «guerra» que ela levou a cabo vê-se reduzida a umas quantas reivindicações rapidamente evocadas: a recusa do «futuro másculo», o carácter não misto dos grupos feministas, a defesa do direito das mulheres à violência, a supressão da família em prol da comunidade… Em relação a estas coisas seria de esperar que houvesse algumas explicações, mas os leitores têm de contentar-se com uma simples enumeração, a que logo se segue esta desconcertante questão: «Lida e escutada, celebrada em todo o mundo, seria ela feliz?».
A resposta tão esperada é-nos fornecida umas páginas mais à frente por (mais uma vez) Arielle Dombasle, que vai ao ponto de celebrar o malogro da busca beauvoiriana de uma «liberdade que estava acima das suas forças». Concluindo a actriz-cantora com uma comovente visão de Beauvoir, que «ia sentar-se num banquinho, só, junto ao túmulo de Sartre […] chorando o amor de toda a sua vida». Seria pois esse trágico destino que faria de Simone de Beauvoir uma mulher excepcional. E porquê? Devido ao seu carácter ponderado, de forma completamente tautológica, quase excepcional, e nunca em ligação com a sua obra e a sua acção. Deste ponto de vista, o título do dossiê («Uma mulher escandalosa») é revelador, porque, embora as jornalistas citem as reacções indignadas de Albert Camus ou de François Mauriac após a publicação d’O Segundo Sexo em 1949 [4], elas não consideram oportuno precisar quais são as teses que suscitaram a máscula indignação.
Beauvoir, em suma, entra no património nacional um pouco como Guy Môquet [5] deu entrada no panteão sarkozista: como uma personagem mitificada e despolitizada, desligada de qualquer contexto social e de todas as relações de dominação [6]. Os conflitos são apagados em proveito duma celebração do génio nacional, em que Beauvoir é graciosamente convidada a participar. É aliás sintomático que o artigo dedicado à actualidade de Beauvoir inclua uma série de depoimentos de personalidades feministas contemporâneas, apresentadas como individualidades e nunca como actuantes nas lutas colectivas. A contrario, o maior realce é dado, em destaques, a Philippe Sollers ou Arielle Dombasle, celebridades que falam tu cá tu lá com Beauvoir mas pouco conhecidas pela sua obra filosófica – ou pelo seu empenhamento feminista.
Segundo expôs Roland Barthes, a descrição dos escritores ausentes reforça a imagem de pessoas «à parte», celebradas enquanto tais e nunca pela singularidade da sua produção e do papel que desempenharam [7]. Não é pois surpreendente que o dossiê sobre Simone de Beauvoir termine com a homenagem do povo humilde e respeitoso, os criados de mesa do café parisiense La Coupole, que, «à passagem do cortejo fúnebre, formaram alas em sua honra».
Por SYLVIE TISSOT *
* Socióloga, membro do Colectivo das Feministas pela Igualdade (Collectif des féministes pour l’egalité).
Notas
[1] «Simone de Beauvoir. La scandaleuse», Le Nouvel Observateur, Paris, 3-9 de Janeiro de 2008.
[2] Michelle Le Doeuff, Le Sexe du savoir, Aubier-Montaigne, Paris, 1998.
[3] Susan Faludi, Backlash: la guerre froide contre les femmes, Des Femmes, Paris, 1993.
[4] Ler Sylvie Chaperon, «Le “Deuxième Sexe” en héritage», Le Monde diplomatique, Janeiro de 1999.
[5] Alusão ao jovem militante comunista de 17 anos que em 1941 foi fuzilado pelos ocupantes nazis, juntamente com outros vinte e seis reféns, e que se tornou um símbolo da resistência antifascista em França. Em 2007, durante a campanha eleitoral, o candidato Nicolas Sarkozy referiu a «Carta de Adeus» de Guy Môquet como um documento que deveria ser lido a todos os alunos franceses do secundário enquanto testemunho do «amor pela pátria», eliminando a identidade política do autor e o contexto da época. (N. do T.)
[6] Laurence De Cock-Pierrepont, «Des usages étatiques de la lettre de Guy Môquet», http://cvuh.free.fr/spip.php?article94.
[7] Roland Barthes, Mythologies, Seuil, Paris, 1992 [1957]. Edição portuguesa: Mitologias, Edições 70, Lisboa, 1984.