11.9.07

Repensar o saber para reformar a escola ( entrevista com Edgar Morin)

Sem querer suprimir a escola, como defendia Ivan Illich, o sociólogo e o pensador francês Edgar Morin propõe-se, no entanto, romper com o actual esquema tradicional constituído pelas várias disciplinas que fixa, rigidifica e burocratiza o conhecimento.

A luta por uma pedagogia da mudança


Pergunta – Em que contexto emergiu o pensamento de Ivan Illich que pretendia romper com a instituição escolar?
Resposta de Edgar Morin – Aparece no fim dos anos 60 ao mesmo tempo que as primeiras preocupações de carácter ecológico. Mas os escritos de Illich nunca convenceram os espíritos. O livro «Uma sociedade sem escola» foi lido, mas esta obra incendiária foi imediatamente rejeitada poruqe atacava as bases profundas da nossa civilização.

P – O que é que ele pretendia dizer quando falava do perigo do saber ficar confinado à escola?
R – Tomemos um exemplo. Reparei que os jovens ameríndios do norte do Canada compreendiam os fenómenos humanos ou naturais das suas relações mútuas. Abordavam assim a água ou a floresta colocando em relação uma erva esmagada, um excremento animal ou um ruído para figurarem a passagem de um pequeno mamífero. Ora desde a chegada da escola eles ficaram desamparados por efeito dos cortes disciplinares operados por uma instituição que forma e que adapta os espíritos às normas da racionalidade dominante. Illich mostra bem como o saber, tal como a medecina, ficou periigosamente especializado, emparcelado e parcializado.

P – Qual é a alternativa proposta?
R – A sai ideia é a de instituir aquilo que ele chama «redes de saber», a partir de uma oficina de coordenação que forneceria professores conforma os pedidos de cada aluno. Por exemplo, se alguém tivesse vontade de aprender chinês, era-lhe atribuído um professor de chinês. A escola assim descolarizada libertar-se-ia do esquema disciplinar das diversas disciplinas.

P – Acha que essas «redes de saber» possam ainda hoje ser actuais?
R - Sem chegar aí, é indispensável aproveitar esta crítica para pensar numa reforma educatica. Essa fragmentação do conhecimento, de que Illich deplorava, faz com que se evite questionar a civilização, transformando esta num soma de problemas individuais. Não se reflecte globalmente sobre nós mesmos, pois a cada problema é tratado por este ou aquele especialista, e torna-se independente dos outros. O ensino deve recentrar-se sobre o que permitiria defrontarmos com os nossos problemas vitais, como pessoas, cidadãos e seres humanos.

P – Como é que isso se traduziria no concreto?
R – Poder-se-ia, por exemplo, colocar o acento desde a primária na compreensão do outro, e mostrar à criança que, em vez de procurar saber sempre quem começou uma disputa, quem tem ou não razão, ela deveria antes considerar o círculo vicioso de uma incompreensão galopante do outro. Seria necessário que as crianças aprendessem desde muito cedo a reflectir sobre elas próprios. Acontece-lhes de se enganar, de ser vítimas de ilusões. Em vez de coleccionar verdades, a escola devia mostrar porque é que elas se enganam, o que já seria uma forma de conhecimento pertinente. Os saberes fundamentais, que hoje estão desintegrados nas compartimentações disciplinares, deveriam ser estudados durante uma ano propedêutico obrigatório antes do ensino universitário. Sou também a favor da criação de um instituto onde se ensinasse saberes transdisciplinares. Esta pedagogia da complexidade substituiria assim o saber em migalhas.

P – Como se poderia ensinar esse pensamento da complexidade?
R – Inspirando-nos na maiêutica socrática, o discípulo descobriria nele uma verdade que ignorava. A escola não tem mais o monopólio de um conhecimento a transmitir, já que o seu papel será antes o de ajudar os alunos a descobrirem um saber ao qual eles aspiram e que corresponde às suas curiosidades naturais. O desafio não é tanto o de ensinar todos os saberes, mas de mostrar como todos eles se inscrevem num mesmo projecto de conhecimento fundamental e vital. Os objectos disciplinares são por definição cortados; ora a natureza, e mesmo a natureza humana, não está organizada dessa forma disciplinar.

P – Isso significaria suprimir as disciplinas?
R – Bem pelo contrário. É verdade que a especialização fechada impede a cultura. Mas a especialização aberta alimenta o contexto e nutre-se do contexto. Renovadas, as disciplinas poderiam satisfazer as necessidades de conhecimento. É sobretudo necessário sair do esquema autoritário e parcelar do ensino sem troca, como é denunciado por Ivan Illich. Claro está que isso levanta um problema demográfico, porque com 40 alunos por classe não é difícil ver a verdadeira torça pedagógica não se faz senão com dois ou três eleitos.

P – Será então preciso acabar com a instituição escolar, como desejava Illich?
R – Não creio. No fundo não há razão nenhuma para suprimir as escolas quantos os quartéis. Eu diria que a escola deve ser preservada como local de encontro e de amizade. Um antigo colega meu enviou-me há pouco tempo uma fotografia tirado nos tempos do liceu que frequentei. E essa recordação levou-mea pensar que era bom partilhar momentos de companheirismo e de fraternidade. Será necessário reformar profundamente a escola, e o pensamento de Illich pode-nos ajudar a lutar contra um pensamento fixista, burocratizado, e libertar as aspirações à descoberta.

Entrevista concedida por Edgar Morin ao Le Monde de l’Éducation nº 360, Julho/Agosto 2007