30.7.07

O Condomínio da Terra - um livro de Paulo Magalhães

Foi recentemente editado um livro de leitura quase que obrigatória para todos os interessados nestes assuntos ( da ecologia ao direito ao ambiente) : O condomínio da Terra, das alterações climáticas a uma nova concepção jurídica do planeta, de Paulo Magalhães, jurista que trabalhou com a Quercus.

Consultar:
http://www.earth-condominium.com/intro.html

Organizar a Vizinhança Global

A nossa época é a época das alterações climáticas. É a época em que a humanidade se defronta com uma colisão massiva e sem precedentes, entre a nossa civilização e o planeta que habitamos. E no jogo entre probabilidades, incertezas e eventuais certezas, entre a pedagogia da catástrofe e o cepticismo, parece que nos resta apenas a convicção que nos enganámos completamente em relação ao ambiente. As alterações climáticas trouxeram consigo a definitiva certeza de que a estratégia de “ver para crer”, de “provar para validar”, falhou na rede de complexidade da natureza.

Só quando os efeitos do aquecimento global se exercem já de forma concreta, e tornam as eventuais medidas de correcção incertas e de limitada eficácia, é que se toma consciência de que este é um processo que está fora das nossas jurisdições. Lidamos com um sistema complexo, cumulativo e intricadamente interdependente. Sabemos hoje que globalização, interdependência e complexidade sempre existiram na natureza, e que esta não esperou que o homem as decifrasse para interagir como um único corpo vivo. O que se discute hoje já não é se o planeta está ou não a aquecer, mas sim se as águas vão subir um ou cinco metros, em dez ou cinquenta anos, por hipótese. Parece que o que é relevante é a que velocidade e a forma como aquece, e não o facto, já aceite de estar a aquecer. Mais uma vez, a mesma lógica de domínio e controlo do tempo e da realidade parece sobrepor-se ao único trabalho que podemos realmente fazer, que é organizar a nossa vizinhança e interdependência global, e conferir sustentabilidade organizacional a um futuro que exige a prossecução de interesses comuns.

Se é necessária uma outra revolução industrial, que passa obrigatoriamente pela descarbonização da economia, parece-nos que os ajustes tecnológicos sem mais, não resolvem um problema de base. A partir do momento em que sabemos que entre o espaço físico da crusta terrestre, o mar, a atmosfera e os seres vivos existem essas profícuas e intricadas interligações que sustentam a vida e que fazem o planeta funcionar como um único organismo vivo, tal facto transforma o nosso ultrapassado conceito de vizinhança fronteiriça numa vizinhança verdadeiramente global. Todos somos funcionalmente dependentes de bens que circulam de forma algo peregrina a nível planetário, e em que nenhum cidadão ou estado se pode excluir do seu consumo, e todos nós os podemos afectar de forma positiva ou negativa.

A “tarefa monumental” que séc. XXI nos impõe será de a conseguirmos definir o interesse comum, definir quem o defenderá, sob que autoridade e com que meios. Esta mútua interdependência funcional de bens globais requer uma inevitável administração comum.

O CONDOMÍNIO DA TERRA tem como objectivo conciliar uma primária necessidade humana de existência de um espaço vital, a territorialidade, com a unidade interdependente do planeta que os homens habitam, possibilitando a coexistência de soberanias autónomas num espaço colectivo, ou seja, um poder político, supremo e independente, relativo à fracção territorial de cada estado, e partilhado, no que concerne as partes insusceptíveis de divisão e que por isso são inevitavelmente comuns.



Do prefácio de autoria de Viriato Soromenho-Marques:

Fazer do perigo o que salva, tal é o famoso lema imortalizado num grande poema de Hölderlin. É a aceitação desse repto o que encontramos nesta obra do jurista e ambientalista Paulo Magalhães, sob a forma de um duplo desafio.
Desafio para o pensamento, na medida em que o autor nos propõe um olhar renovado sobre o sistema internacional, sobre a relação entre Estados e sistemas políticos, face ao desafio da crise global do ambiente.

Desafio para a acção, pois este livro não nos ilude quanto à urgência das tarefas políticas, jurídicas e económicas que temos de levar a cabo, se quisermos evitar o colapso de uma civilização que tarda em compreender que o único modelo para as sociedades humanas se relacionarem duradouramente com os ecossistemas não é o da dominação, mas sim o da habitação.

As alterações climáticas são o factor catalisador da crise global do ambiente, simultaneamente da sua centralidade e da sua visibilidade para o cidadão comum, que a entrada em cena da tecnociência como principal acelerador da história moderna transformou na realidade incontornável, na questão axial do nosso tempo, na causa definitiva da nossa época.

Paulo Magalhães explora, com ousadia intelectual, um caminho de analogia teórica. E se pensássemos a Terra como um imenso condomínio? Se em vez de uma crepuscular “soberania absoluta”, que apenas sobrevive ainda nas páginas envelhecidas de Jean Bodin e Hugo Grotius, colocássemos a possibilidade de uma “soberania complexa”? Se em vez duma ordem jurídica e política que fecha os olhos perante a autofagia da nossa morada planetária por uma economia predadora e ruinosa, erguêssemos os alicerces de uma economia de simbiose e solidariedade? Se em alternativa a uma visão territorial de justiça, fôssemos capazes de nela integrar a responsabilidade pelo tempo e pelas gerações futuras?

Partindo da inspiração de grandes pensadores, clássicos e contemporâneos, mas avançando sempre no fio articulado de uma reflexão amadurecida e comprometida pelo seu próprio percurso de vida e pensamento, Paulo Magalhães abre, neste ensaio, uma janela de luz e esperança para todos aqueles que não se resignaram à condição de sermos a primeira geração, à escala global, a quem o futuro ameaça ser roubado.
Viriato Soromenho-Marques




Os 10 Princípios do Condomínio da Terra:

1 – Temos de encarar a crise ambiental mundial, não como um problema do ambiente, mas como um problema da Comunidade dos Homens.

2- Para resolver a crise ambiental mundial, temos de resolver o problema jurídico da coordenação duma multitude de soberanias (Estados) exercidas sobre um bem materialmente indiviso (Terra), conformado por componentes insusceptíveis de divisão jurídica, mas dos quais todas as soberanias são funcionalmente dependentes.

3 – Só na definição e prossecução do interesse comum (Terra), será possível continuar a garantir, a cada Estado, os seus direitos - sob pena de estes brevemente deixarem de ter objecto.

4 – Um projecto “Condomínio da Terra” tem que distinguir as fracções estaduais das partes comuns: cada condómino é soberano dentro do seu território e, ao mesmo tempo, detentor de uma soberania partilhada das partes comuns do planeta.

5 – As partes comuns são constituídas pelas partes que, de um ponto de vista ambiental, são: a) necessariamente comuns (a Atmosfera e Hidrosfera), e b) presumidamente comuns (a Biodiversidade).

6 - Existirá um regulamento do Condomínio da Terra que disciplina o uso, fruição e conservação das partes comuns, e uma Administração que será eleita em Assembleia de Condóminos (Estados).

7 - Existe um direito/dever igual per capita no uso/conservação dos bens comuns; logo a votação relativa de cada condómino deverá ser aferida em função do número de habitantes de cada soberania.

8 - Cada condómino comparticipará nas despesas necessárias à conservação ou fruição das partes comuns, de forma equitativa, em função do número de habitantes ou do uso efectivamente realizado de partes comuns, quando este for determinável, no sentido de garantir a coincidência entre o óptimo social e o óptimo ecológico.

9 - Competirá ao Administrador do Condomínio receber todas as verbas provenientes dos Condóminos e promover projectos de conservação e melhoramento das partes comuns, bem como, compensar todos os condóminos que no seio dos seus estados contribuam para a sua manutenção e melhoramento.

10 – Compete ao Condomínio da Terra descobrir formas de compatibilizar os sistemas jurídico e económico com o Sistema Natural Terrestre.




Qual é o problema Jurídico?

O sistema de organização dos povos retalhou o planeta em soberanias e respectivos domínios delimitados por fronteiras, zonas económicas exclusivas e espaços aéreos (que as poluições atravessam, independentemente das linhas que traçamos nos mapas). Estas delimitações, às quais atribuímos uma dimensão jurídica, não deixam por isso de serem válidas apenas entre nós, e esquecem toda a realidade física e biológica do planeta.

Não é que as abstracções jurídicas territoriais não sejam necessárias para a organização interna dos grupos humanos, o problema surge quando confundimos as nossas abstracções com uma realidade que é a biosfera, regida por leis que já existiam antes de nós existirmos e continuarão a existir depois de deixarmos de existir 1 e que, em grande parte, desconhecemos.

Os vários direitos de soberania têm servido de álibi socialmente legitimado para perpetuar a devastação estrutural de todo o futuro da vida que nela possa irromper. Todos os estados estão em contacto directo com partes que são insusceptíveis de divisão e apropriação jurídica, e que circulam por todo o planeta: a atmosfera e hidrosfera. O problema não está no funcionamento dos sistemas naturais, o problema está no homem e numa deficiente adaptação das sociedades humanas às circunstâncias impostas pelo planeta que habitam, o qual é dominado por profundas e intricadas interrelações naturais.

Por outro lado, a nossa proposta de conexão entre a complexidade objectiva da natureza e a nossa capacidade subjectiva de a representar, no nosso sistema social, não pode nunca desvalorizar as funções primordiais da territorialidade como conceito angular da paz social.

Chegamos, portanto, a uma situação de impasse e teremos mesmo que saber lidar com o chamado paradoxo da racionalidade:

1. Por um lado, é racional a manutenção das divisões internas da sociosfera, uma vez que os equilíbrios geopolíticos entre os vários grupos humanos são precários e foram fruto de um aturado processo de afirmações e reconhecimentos. A posse de um território bem definido, é reconhecida pela psicologia ambiental como uma necessidade biológica básica de qualquer indivíduo ou comunidade. Neste sentido, será insustentável pretender tornar comunitário um sistema em que a sua própria segurança depende destas divisões internas.

2. Por outro lado, dado o carácter complexo da profunda imbricação dos efeitos combinados e das suas implicações globais e duradouras na biosfera, é irracional pensar que poderemos continuar a sobrepor a lógica destes equilíbrios internos da sociosfera à necessária gestão comum da biosfera como um Bem Comum Universal.
Será possível resolver este paradoxo?

Analisemos esta pergunta sob o ponto de vista jurídico e coloquemos a questão central: Qual o problema jurídico de base que continua por resolver?

É um problema de gestão, coordenação e conciliação de uma multitude de domínios humanos, exercidos sobre um bem materialmente indivisível e, por isso, requer uma administração comum. Mais, se a hipotética separação jurídica destes diferentes domínios é possível sobre um dos elementos constitutivos deste bem, fisicamente inseparável, a Crusta Terrestre, relativamente aos elementos Água e Ar, dado seu carácter peregrino a nível planetário, até mesmo a sua hipotética separação jurídica é inviável, uma vez que a utilização destes bens, por parte de um estado ou indivíduo, pode provocar efeitos imediatos ou mediatos em todos os outros estados e em todos os outros indivíduos, e nenhum está em posição de se auto-excluir do seu consumo.

Ora, o problema da conciliação dos diferentes e aparentemente opostos interesses em questão, não é a primeira vez que se coloca às ciências jurídicas, e foi resolvido através de uma figura “ definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa, ou com estrutura unitária, pertence a vários contitulares mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial sobre fracções determinadas (…) sendo ainda comproprietários das partes do edifício que constituem a sua estrutura comum”. Esta figura jurídica dá pelo nome de “Condómino”.

Se no direito internacional do ambiente nos parece ser este o problema de base, tentemos então adaptar este conceito, que está internacionalmente experimentado e validado à escala planetária, ao nosso edifício comum que é o Planeta Terra. E como o faremos? Criando um sistema que divide o que poderá ser objecto de uma divisão jurídica e que constituem as soberanias estaduais (litosfera) e que mantêm comum e que não se pode reduzir à dimensão da organização estatal (atmosfera e hidrosfera).



Economia de Simbiose

Se o documentário de Al Gore, “Verdade Inconveniente”, promoveu a entrada da problemática das alterações climáticas em toda a sociedade, no dia 21 de Outubro de 2006, o economista Nicholas Stern, ao apresentar os resultados do estudo encomendado pelo governo britânico sobre a Economia das Alterações Climáticas, tocaria no argumento mais eficaz, e promovia assim a entrada deste assunto na Real Politic. O relatório não será mais do que o momento em que se apresenta a factura. Os resultados são desoladores: uma quebra de 5% do PIB mundial que pode atingir os 20%, se não forem tomadas medidas drásticas e praticamente imediatas.

Interessa agora questionar como foi anteriormente possível analisar a economia global, ou formular alguma teoria económica sem ter em conta o cenário em que essa economia se desenrola. Se a própria palavra eco (Casa)+nomos (lei de gestão), significa a gestão da casa, então o que hoje existe será uma economia, no sentido semântico da palavra, ou será antes um sistema financeiro completamente desconectado da casa? Não sabemos todos nós que o uso e a manutenção de uma casa têm custos? Aquilo que fizermos à casa-planeta vai, ou não, inevitavelmente repercutir-se no sistema financeiro? Aquilo que fizemos à nossa habitação individual, reflecte-se ou não na economia familiar de cada um de nós?

O que existe actualmente a nível planetário é uma gestão em que os custos do “uso casa” não são assumidos.

Se antes se poderia justificar uma “economia sem casa” pelo desconhecimento das interligações globais cumulativas e duradouras e pela dificuldade de valorar e incorporar os custos ambientais no processo produtivo, será hoje possível continuar a considerar como inexistente o que por enquanto ainda é de difícil mensuração e contabilização?

Como poderemos continuar a admitir que uma floresta como a Amazónia, por mero exemplo, só tenha valor económico quando as árvores são cortadas? As relações que a crise ambiental nos revelou, tornaram as relações entre sociosfera e biosfera obrigatórias e íntimas, e não apenas relações de cooperação que poderão ser mutuamente vantajosas. Cada estado está funcionalmente dependente do uso de áreas comuns como a atmosfera e hidrosfera, e que estão ao serviço de todos os outros estados, e essa é uma condição obrigatória à qual nenhum se pode excluir.

A poluição, no seu sentido mais amplo, revela-se como uma das mais importantes manifestações da relação entre a actividade económica produtiva e a Biosfera. Será precisamente a propósito da poluição, que os economistas se apercebem, pela primeira vez, que em todo o cálculo económico há uma série de efeitos “externos” ao sistema interno da Sociosfera, mas “internos” do supra-sistema Biosfera, da qual aquela depende. “Quer dizer, uma actividade económica não se processa em laboratório, protegida por paredes artificiais do mundo que a rodeia, dos outros seres humanos e do outro mundo em que ela se insere, e o raciocínio económico abstracto que referi, que é do sujeito racional, esquece, minimiza, sobretudo, despreza o lado externo da actividade económica e esse lado externo existe quase sempre.” (1)

Estas externalidades negativas em economia, usualmente chamadas de “disfunções ambientais”, são na realidade “disfunções económicas”, uma vez que o problema encontra-se na deficiente adaptação da economia à realidade biológica do planeta. São os efeitos da desarticulação entre os sistemas jurídicos e económicos humanos e o sistema natural terrestre. E a sociosfera não encontrou ainda um sistema organizacional que incorpore a necessária unidade interdependente e cumulativamente global da biosfera, e em que o uso e cuidado dos bens globais seja valorado no sistema de trocas humanas.

Em biologia, quando os organismos agem activamente em conjunto para proveito mútuo, o que pode acarretar especializações funcionais de cada espécie envolvida, diz-se que existe uma relação simbiótica. A simbiose implica uma inter-relação de tal forma íntima entre os organismos envolvidos que se torna obrigatória, quando não existe obrigatoriedade na relação, dever-se-á falar apenas de protocooperação. A intricada interdependência global, depois de descoberta e vivida, tem de ser valorizada jurídica e economicamente.

Isto é, as inter-relações globais impostas pelo Sistema Natural Terrestre ao sistema económico e ao sistema jurídico, são obrigatórias, íntimas e interdependentes. Então uma economia de simbiose será aquela que aceita esta obrigatoriedade íntima, e que valora no sistema financeiro humano o custo do uso do Sistema Natural Terrestre. Nada de novo do que é já preconizado na economia ambiental, só que, desta feita, estruturada com um sistema jurídico de condomínio que garante a existência de uma “instituição de troca onde o sujeito que afecta positivamente outro(s) receba uma compensação por isso ou o sujeito que afecta negativamente outro(s) suporte o respectivo custo”.(2)

A Economia de simbiose será aquela que assume estas interdependências globais, e em articulação com um sistema jurídico de condomínio, contabiliza e organiza o uso de destes bens comuns universais, através de uma instituição de troca que recebe de quem usa os bens comuns para lá dos limites equitativos, e compensa quem os afecta de forma positiva. Essas serão uma das funções essenciais da Administração do Condomínio.

(1) FRANCO, A.S. (1994) – Ambiente e Economia – Centro de Estudos Judiciários, Textos, Actividade económica e Direito do Ambiente – http://www.diramb.gov.pt/ , Texto 7525.
(2) DIAS SOARES, C. A. (2001) , O Imposto ecológico – Contributo para o estudo dos instrumentos económicos de defesa do ambiente, Coimbra, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora,p.81 – sublinhado nosso.

Durante as nossas acções de divulgação do projecto CONDOMÍNIO DA TERRA, oferecemos simbolicamente frascos com as partes comuns do nosso planeta. A hidroesfera e a atmosfera, e com os seguintes textos:


Atmosfera

Respiramos atmosfera 25 vezes por minuto. A atmosfera é um bem comum, pois ninguém pode ser excluído do seu consumo: os seus danos ou benefícios afectam todos a nível global. O Administrador do Condomínio receberá de quem usa a atmosfera para lá dos limites equitativos e compensará quem cuide deste bem comum.


Hidrosfera

Uma molécula de água permanece em média 2500 anos no oceano e 10 dias na atmosfera - é elemento vital em todas as formas de vida. É um bem comum, pois ninguém pode ser excluído do seu consumo: os seus danos ou benefícios afectam todos a nível global. O Administrador do Condomínio receberá de quem usa a hidrosfera para lá dos limites equitativos e compensará quem cuide deste bem comum.

http://www.earth-condominium.com/intro.html