21.4.07

Pedagogia Libertária versus Pedagogia Autoritária

Autor do texto: José Maria Carvalho Ferreira


1.Questões de índole metodológica e epistemológica no discurso narrativo dos especialistas da pedagogia, na generalidade dos casos, esta aparece quase sempre associada a uma visão circunscrita à utilização de um conjunto de métodos e técnicas relacionadas com o sistema educacional. É interpretada e aplicada como meio de aperfeiçoamento do comportamento humano, nos domínios físico e cognitivo, de forma a potenciar a sua capacidade de assimilação do conhecimento. Inscrita num modelo educacional racional-instrumental, a pedagogia serve fundamentalmente para melhorar os processos de aprendizagem cultural e socializar os indivíduos e grupos que vivem nas instituições escolares.

Hoje, no entanto, a pedagogia tornou-se num fim em si mesmo. Como conjunto de técnicas e métodos de acção e intervenção sobre o comportamento humano, revela-se, cada vez mais, uma disciplina com um objecto científico e um objecto de observação autónoma e específica. Esta evolução leva a que os pedagogos e especialistas afins transformem a pedagogia num objecto de compra e venda, com conceitos e metodologias próprias. Embora mantenha laços de indissolubilidade com o ser humano e a sociedade, tende a funcionar como um mero instrumento de adaptação racional dos seres humanos aos desígnios das instituições escolares, do Estado e do mercado.

Estamos, sem dúvida, em presença de um fenómeno complexo, cujos contornos científicos e metodológicos, por vezes, é difícil determinar. Em primeiro lugar, porque temos dificuldade em discernir com exactidão as fronteiras e autonomia específica do objecto científico e do objecto de observação da pedagogia. Em segundo lugar, porque enquanto conjunto de técnicas e métodos aplicados ao comportamento humano, é difícil circunscrever a sua função exclusivamente no indivíduo, prescindindo de a relacionar com toda a envolvência cultural, política, social e económica. Desse modo, não podemos restringir a análise à unidade focal professor/aluno, sem analisarmos a instituição escolar no seu todo. Mas, ao fazê-lo, somos constrangidos a perceber a instituição escolar como um sistema aberto e, logicamente, como uma realidade interdependente e em interacção com a sociedade global. Em terceiro lugar, essas relações entre a instituição escolar e a sociedade global obrigam-nos a pensar e analisar a racionalidade que está subjacente à pedagogia vigente, tendo presente os conteúdos e as formas da assunção estruturante que releva do instituinte e do instituído. Finalmente, contemporaneamente, persiste uma grande dificuldade em descortinar o sentido e a lógica de uma pedagogia que se ideologiza como espontânea, criativa e livre, quando, na maioria dos casos, ela não é mais do que um fenómeno de castração do ser humano ao serviço da racionalidade instrumental do mercado e do Estado.


O facto de estarmos em presença de um fenómeno complexo, de forma alguma devemos inibir-nos perante o mesmo. Ao tentar confrontar a essência das teorias e experiências pedagógicas de características libertárias com a pedagogia vigente de natureza autoritária, conseguimos clarificar esse dilema. Por serem duas pedagogias contrastantes, ao analisar o conteúdo e as formas mais representativas da pedagogia libertária que procuraram e/ou procuram superar a natureza negativa da pedagogia autoritária capitalista, isso permitir-me-á percebê-la e analisá-la de forma dicotómica: de um lado, a individualidade, a liberdade, a espontaneidade e a criatividade do indivíduo a constituir-se num projecto de vida integrado, do outro, a instrumentalidade da racionalidade do mercado, do Estado, do poder e da autoridade a agirem e a intervirem sobre o comportamento do indivíduo de forma tutelar e separada .


Para evitar cair em generalizações fáceis e abusivas, vejo-me constrangido a restringir o meu objecto de análise ao contexto geográfico da Europa ocidental, onde o capitalismo atingiu maior desenvolvimento. Se bem que o modelo pedagógico de características autoritárias esteja disseminado à escala mundial, não é possível visualizá-lo de forma padronizada e consistente, já que temos que ter presente o carácter discrepante dos níveis de desenvolvimento económico, político, cultural e social dos diferentes países. Pela homogeneidade civilizacional e grau de estruturação histórica da instituição escolar e da pedagogia, parece-nos mais aconselhável essa opção metodológica.


Da mesma forma que delimitámos a amplitude geográfica do objecto de análise, somos também obrigados a reduzir a sua dimensão histórica. O fenómeno pedagógico, nesse sentido, não será analisado desde os primórdios históricos da humanidade, mas a partir do momento a que se assiste a uma correlação estreita entre o advento histórico do processo de laicização, industrialização e urbanização das sociedades da Europa ocidental e a institucionalização do ensino enquanto actividade autónoma separada dos meios tradicionais que o ministravam: família, igreja e corporação .


Uma vez estabelecido o quadro epistemológico e metodológico do texto, importa, agora, referir que numa primeira fase abordarei sumariamente os conteúdos e formas mais representativas das teorias e experiências pedagógicas de características autoritária e libertária que emergiram desde a 1ª revolução industrial. De seguida, tentarei formular as tendências contemporâneas do fenómeno pedagógico que se observam no quadro das sociedades capitalistas mais desenvolvidas da Europa ocidental. Finalmente, como conclusão, procurarei construir um conjunto de hipóteses virtuais e reais que se apresentam à pedagogia libertária.

2. Pressupostos da pedagogia autoritária capitalista

Fénelon (1) personifica com alguma expressividade as características da pedagogia autoritária que prevalecia na Europa ocidental no período histórico da reforma e do renascentismo. O seu Tratado da Educação das Meninas permite-nos não só compreender o peso histórico da influência da religião cristã no processo de aculturação das crianças e dos adultos, como, ainda, perceber a função de uma pedagogia autoritária baseada na discricionaridade da autoridade do clero e dos perceptores sobre as crianças. As técnicas e métodos pedagógicos utilizados para ensinar as crianças não só permitiam a utilização de violências físicas (vergastadas, réguadas, castigos corporais e psíquicos diferenciados, etc.,), como também funcionavam no sentido da omissão e a castração da intelectualidade e sexualidade da criança através da redução da pedagogia aos desígnios de uma ordem social fundamentada nos condicionalismos do poder divino.

Para Fénelon "todas as crianças gostam de histórias. É necessário tirar partido dessas disposições naturais. Mas que se tenha cuidado em só lhes contar histórias instrutivas. As da Biblia são as melhores, porque a par do interesse que despertam, formam as bases da religião (.). O ensino religioso, mas histórico, deve começar pela distinção entre a alma e o corpo e o conhecimento dum Deus todo-poderoso, criador e conservador do Universo (.). Por esse meio preparam-se as crianças para a leitura do Evangelo e da palavra de Deus" (2). É uma pedagogia autoritária no sentido em que a razão, a liberdade e a espontaneidade criativa das crianças são coarctadas desde a infância. Por outro lado, as tipologias relacionais da transmissão de conhecimentos polarizavam-se em formas de autoridade e dominação arbitrárias do clero, pais e perceptores sobre as crianças e até sobre os adultos.

Quando em meados do século XVIII irrompe o processo de industrialização e de urbanização das sociedades situadas na Europa ocidental, o ensino e, logicamente, a pedagogia são objecto de uma reestruturação progressiva. Os múltiplos saberes - saber fazer, saber viver e saber ser – são constrangidos a um processo de adaptação funcional sob efeito da laicização e do individualismo fomentados pelo progresso e a razão. O incremento das funções e tarefas ligados à gestão e governação do Estado e dos grandes aglomerados urbanos, a proliferação de actividades socio-económicas relacionadas com os sectores industrial, comercial, agricola, assim como os transportes e as comunicações, desenvolveram de forma gigantesca as necessidades de qualificação da mão-de-obra dos diferentes grupos sócio-profissionais. Dessa realidade emerge uma nova racionalidade instrumental baseada num novo tipo de ensino e pedagogia.

Tratava-se, desde de então, de deixar o ensino escolástico e livresco sem articulações com a razão, a ciência, a tecnologia e o mundo do trabalho. Os processos de aprendizagem dos múltiplos saberes passaram a ser determinados progressivamente pelos ditames da racionalidade empresarial e estatal . O mundo da produção, consumo e distribuição de mercadorias exigia um tipo de conhecimentos que não se adequava mais a um saber contemplativo da ordem divina.

Rousseau ao escrever a seu livro Emílio (3) enunciava já algumas das premissas que a educação e a pedagogia devia assumir no sentido de uma adaptação da actividade espiritual e intelectual dos seres humanos às experiências da vida e aos diferentes ofícios.

Para ele, a pedagogia e a educação deveria transformar as crianças em adultos a partir de um processo de aculturação naturalista e científico. As diferentes fases evolutivas da criança até atingir a idade adulta passavam, previamente, por um conhecimento das virtualidades físicas do corpo humano, de seguida, por um conhecimento baseado na razão, para, finalmente, instrumentalizar-se na aquisição de conhecimentos ligados às exigências de execução de tarefas e funções correlacionados com a actividade económica de então.

Com Durkheim (4), a educação e a pedagogia assumiam fundamentalmente uma função de cientificidade. A aprendizagem de um conhecimento científico e laico deveria estar em consonância perfeita com as exigências da divisão do trabalho social das sociedades industrializadas e urbanizadas. As implicações da organização científica das empresas, das novas tecnologias, dos novos materiais e energias potenciaram não só exigências de conhecimentos humanos ao nível dos procedimentos operatórios das tarefas e funções, como inclusivé traduziu-se em novas exigências de conhecimentos no plano da adaptação física e ergonómica dos seres humanos em relação ao mundo do trabalho. Acresce a esses factos, a crescente complexidade do tecido sócio-cultural e político das sociedades de então em termos da pressão demográfica, migrações populacionais, anomia social, gestão e governação dos grandes aglomerados urbanos e do Estado. A socialização desta realidade levou a um processo de institucionalização e organização das relações sociais baseados num sistema de representatividade formal. Por esta via, a socialização do comportamento humano traduziu-se também na proliferação da exigência de novos conhecimentos.

Desde os finais do século XIX assistiu-se a um desenvolvimento progressivo desse tipo de conhecimentos em paralelo com a criação de outros que, entretanto, emergiram. Depreende-se desse contexto histórico, a assunção da evolução das características da educação e da pedagogia de tipo autoritário capitalista. Se no tempo de Rousseau (1712-1778) o advento da laicização e do individualismo tinham permitido que a educação e a pedagogia evoluissem no sentido naturalista e racional, no tempo de Durkheim (1858-1917), a industrialização e urbanização das sociedades capitalistas desenvolvidas da Europa ocidental deram origem à transformação da educação e da pedagogia autoritária num sentido racional-instrumental e laico. O Estado passa a assumir uma função de legitimidade científica para ministrar os diferentes graus de ensino (básico, secundário e universitário) e simultaneamente tutela a sua institucionalização pelas diferentes instituições e organizações de carácter privado e público.

A institucionalização progressiva da escolarização do sistema social, nos diferentes graus de ensino de forma a corresponder às novas necessidades do conhecimento humano, introduziu uma série de dilemas aos sistema educacional e pedagógico autoritário.

Em primeiro lugar, o tipo de educação e pedagogia ministrada pela Igreja, família e corporação não consegue satisfazer a procura agregada de conhecimentos de carácter científico e técnico que as novas qualificações do factor trabalho e o desenvolvimento cultural do ser humano exigiam(5). O ensino de massa, conforme a exigência dos valores da cidadania nos parâmetros da democracia burguesa, conjugados com a descodificação de linguagens complexas de carácter tecnológico e científico não se coadunavam mais com os conhecimentos humanos ministrados pela Igreja, a família e as corporações.

Por esses motivos, as relações polares entre pais/filhos na família, teólogos/leigos na Igreja e mestres/aprendizes nas corporações, que serviam de suporte a todo o sistema educacional e pedagógico tradicional, vão ser objecto de uma desintegração progressiva.

O carácter secular e público da instituição escolar ao evoluir para uma crescente dependência do Estado e do mercado, obrigou a uma reestruturação dos fenómenos educacional e pedagógico de características autoritárias. A partir de então tratava-se não de instruir e socializar a criança de forma a transformá-la num adulto e de a identificar com a ordem social vigente e o poder divino subjacente, mas de desenvolver sobretudo um tipo de ensino que possibilitasse transformar radicalmente as virtualidades físicas e cognitivas do ser humano numa função de produção e de consumo de bens e serviços de natureza mercantil capitalista. É esta racionalidade instrumental e utilitarista baseada no interesse e na competitividade pela apropriação de riqueza que as expectativas racionais dos indivíduos vão ser objecto de uma estruturação ontológica específica.
No domínio da pedagogia desenvolvem-se métodos e técnicas que potenciem a percepção do conhecimento num sentido competitivo e hierárquico. A relação entre professor/aluno pressupõe uma autoridade desigual relativamente às virtualidades de criatividade e liberdade de acesso ao conhecimento. O processo de aprendizagem de conhecimentos passa, desse modo, por formas de dominação nas relações estabelecidas entre professor/aluno. A essência ontológica dos alunos, nos planos cognitivo, psíquico e físico, é reduzida a uma função de passividade e subalternidade criativa, na medida em que a dinamização da criatividade e da espontaneidade relacionados com os múltiplos saberes é determinada hierarquicamente por aqueles que têm o poder e a autoridade sobre as questôes pedagógicas: Estado, instituições escolares, professores e diferentes especialistas da pedagogia. Doravante o corpo, o espírito e a mente dos alunos e dos professores são objecto de experiências laboratoriais, de aprendizagens sócio-cognitivas e formação científica no sentido de um aperfeiçoamento crescente das suas virtualidades, de forma a potenciarem relações hierárquicas de dominação do professor sobre os alunos no processo de aprendizagem de conhecimentos.

Esta pedagogia passa a estar articulada com uma educação que obedece a uma lógica de estratificação e de mobilidade social confinada aos ditames do Estado e do mercado. No quadro da sociedade capitalista, o rendimento, a propriedade, o "status", o poder, etc., não são usufruidos e apropriados de igual modo pelos diferentes grupos e classes sociais que constituem essa sociedade. Pela dominação e hierarquização que essa realidade encerra, os diferentes grupos sociais e classes sociais passam a dispôr de capacidades e possibilidades pedagógicas e educacionais reguladas pela competividade e concorrência do mercado, pela legitimidade institucional imposta pelo Estado e o constrangimento das relações sociais de produção capitalistas.

Neste quadro, os estratos sociais desfavorecidos, em função das suas capacidades e possibilidades económicas, sociais, políticas e culturais, tendem a reproduzir a sua condição-função, o que leva a serem preteridos no acesso ao desenvolvimento educacional e pedagógico de características autoritárias. Em última instância, o modelo educacional e pedagógico autoritário que se desenvolve durante o século XX serve fundamentalmente para reproduzir a estratificação social e a mobilidade social baseada na desigualdade económica, social, política e cultural (6).

No âmbito das teorias autoritárias há, no entanto, uma outra perspectiva que tende a analisar os indivíduos como função de racionalidade a optimizar no mercado (7). Nesta assunção, os constrangimentos estruturais e institucionais do Estado e do mercado capitalista nunca poderão inviabilizar, em absoluto, as expectativas racionais dos indivíduos no campo educacional e pedagógico.

Integrados numa lógica de acção social pautada pela percepção da análise de custo-benefício, os indivíduos são capazes, por si só, de desenvolver o seu potencial físico e cognitivo de forma a melhorarem as suas "perfomances" no quadro da mobilidade e da estratificação social . A ideologia burguesa da plena cidadania e a função positiva da democracia representativa optimizam-se plenamente, já que, nesta perspectiva, pode-se passar de burguês a operário, de ministro a sacerdote, etc., e "vice-versa", bastando somente que os indivíduos maximizem as suas expectativas racionais nos sistemas educacional e pedagógico vigentes.

No fundo, todas as experiências e as teorias identificadas com as características da educação e pedagogia autoritária capitalista apontam para uma condição-função homológica do ser humano em termos das suas capacidades e possibilidades sócio-cognitivas e físicas. Baseiam-se numa educação e pedagogia que procura formar, treinar, domesticar, desenvolver e aperfeiçoar o indivíduo desde o seu nascimento até à morte (8), permitindo-lhe funcionar como objecto de aperfeiçoamento sistemático no acesso ao conhecimento, mas constrangindo-o sempre a assumir um carácter competitivo, concorrencial, hierárquico e castrador. Obedece a uma racionalidade instrumental que é bem visível nas interdependências e complementaridades que as instituições escolares mantêm com o Estado ,o mercado e os múltiplos locais de trabalho e vida quotidiana em geral. Ou seja, o indivíduo forma e treina o seu físico e a sua mente nas instituições escolares de maneira a evoluirem posteriormente como padrão de comportamento tipificado de papéis e profissões que a sociedade e o mercado lhes permitem exercer. ~

Todo o periodo histórico do século XIX até à década de sessenta do século XX fundamentou-se na difusão de uma racionalidade instrumental do ser humano, enquanto "homo educandus," integrado e funcionalizado prioritariamente nos parâmetros da ordem económica burguesa autoritária. No entanto, não podemos deixar de observar e analisar as tipologias de saber fazer, de saber viver e saber ser que se reportam aos sistemas cultural. político e social. Nestes domínios, a educação e a pedagogia limitaram-se a socializar e a modelar as funções cognitivas e físicas dos indivíduos de forma a codificarem e descodificarem as linguagens que emergem nas instituições escolares em termos das relações entre grupos sociais e relações interpessoais confinadas aos processos de socialização dos indivíduos, aos conflitos de poder e aprendizagem de conhecimentos.

Em síntese, a educação e pedagogia autoritária capitalista assumem formas e conteúdos, cuja homologia espacio-temporal é muito representativa nos "modus vivendi" das instituições escolares, da família, do Estado, dos locais de lazer, da fábrica , do campo, do escritório e da praça pública, etc. Trata-se sobretudo de relações e de interacções sociais orientadas e presididas sempre por bases desiguais e hierárquicas, onde predomina, por um lado, a dominação, a exploração do homem pelo homem e, por outro, a mutilação da liberdade, da espontaneidade, da responsabilidade e criatividade dos indivíduos. Uma relação e uma interacção social estruturada entre os que sabem e os que não sabem (professor/aluno); entre os que decidem e os que acatam as decisões sobre as questões educacionais e pedagógicas (funcionários/professores/alunos); entre os que detém o poder de emitir ordens, controlar e punir e os que obedecem, são controlados e punidos sobre questões relacionadas com a espontaneidade e liberdade criativa do corpo e da mente dos indivíduos (professores/funcionários/alunos); entre os que orientam e institucionalizam valores, ideias, ideologias e crenças e os que são coagidos a assumi-los (sociedade/Estado; organizações/instituições; professores/funcionários/alunos); e, enfim, entre os grupos sociais dominantes que detém o poder, o prestígio e a riqueza e os grupos sociais dominados que deles são desprovidos (classes e grupos sociais /professores/funcionários/alunos).

Toda a educação autoritária se baseia na difusão de um conhecimento cuja eficiência e eficácia se mede por dar corpo e forma a essa realidade social estratificada desigualmente. Toda a pedagogia autoritária tem por objectivo nuclear desenvolver e aplicar um conjunto de técnicas e de métodos capazes de aperfeiçoar, treinar e formar as virtualidades sócio-cognitivas e físicas do ser humano como função de produção e de reprodução da sociedade vigente. A pedagogia autoritária é, desse modo, uma função de adaptação dos indivíduos que se enquadra no processo de aculturação dos indivíduos em relação à assimilação dos múltiplos saberes que relevam dos imperativos educacionais da evolução da sociedade capitalista no contexto geográfico da Europa ocidental e no resto do mundo.

3. Pressupostos da pedagogia libertária Como fenómeno de reacção às contradições e limitações do modelo autoritário capitalista, no período histórico em análise, desenvolveram-se na Europa ocidental experiências e teorias libertárias no campo educacional e pedagógico.

Essas experiências e teorias, embora tenham uma abrangência geográfica e social muito reduzidas, demonstram, no entanto, um conjunto de virtualidades potenciadoras de uma educação e de uma pedagogia que pretende ser, em princípio, a negação do modelo precedentemente analisado. Importa, pois, compreender e explicitar a pedagogia e a educação de caraccterísticas libertárias enquadradas em práticas sociais e humanas presididas pelos valores da solidariedadade, da liberdade, da autogestão, da espontaneidade e da criatividade integradas num todo social harmónico. Estes são os denominadores comuns das experiências e teorias mais representativas que se enquadram na educação e pedagogia libertária.

Os fundamentos desta perspectiva, em primeiro lugar, radicam no facto de que as experiências e as teorias mais representativas não separam arbitrariamente a educação e a pedagogia do todo social em que se integram. Subsiste entre a pedagogia, a educação e a sociedade uma relação de interdependência e de complementaridade sistemática, o que implica correlacionar as funções de adaptação e de integração entre as partes (pedagogia e educação) e o todo (a sociedade).
Em segundo lugar, essas experiências e teorias emergiram enquanto fenómenos de crítica radical da sociedade vigente e visualizavam a implementação de um modelo de sociedade libertária, na qual a educação e a pedagogia subentendiam relações sociais e práticas humanas identitárias entre indivíduos e grupos que interagem nas instituições escolares. Os objectivos são a extinção das relações de dominação e de exploração que subsistem entre professores, alunos e funcionários e que trabalham e vivem nas instituições escolares, de forma a permitir que a espontaneidade, a liberdade, a criatividade e a responsabilidade natural dos indivíduos pudessem emergir para configurações sociais integradas num modelo autogestionário de características libertárias. A educação e a pedagogia não se separam da vida no sentido estrito do termo e dessa forma o acesso aos processos de aprendizagem de conhecimentos não tinham limites de qualquer espécie, quer aqueles relacionados com o organismo humano nas suas múltiplas dimensões, quer aqueles relacionados com o conhecimento da natureza e da sociedade.
Na Europa ocidental, as experiências históricas e as teorias que emergiram desde os finais do século XVIII até aos nossos dias foram várias. Por questões de síntese no âmbito deste texto, limitar-me-ei a enunciar os postulados teóricos centrais que foram comuns à maioria dos autores anarquistas - William Godwin (1756-1836), Max Stirner (1800-1856), Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), Miguel Bakounine (1814-1876), Paul Robin (1837-1912), Pedro Kropotkine (1842-1921), Sebastien Faure (1859-1909) (9) - e a sumariar as experiências históricas mais representativas que ocorreram nesse período até aos nossos dias.

A questão da liberdade como expressão genuina da criatividade e de espontaneidade dos indivíduos no processo de aprendizagem dos conhecimentos sempre teve e tem uma grande relevância para a maioria dos autores anarquistas. William Godwin ao escrever Investigações sobre a Justiça Política em 1793 e o Investigador em 1797 dá-nos uma visão crucial para compreender a essência de uma pedagogia e de uma educação alicerçada na liberdade dos indivíduos. Para Godwin o problema central da pedagogia e da educação não se confina à transformação do aluno num adulto sujeito aos desígnios autoritários do Estado e do professor. A liberdade do indivíduo não deve ser sujeita a nenhuma restrição, salvo aquelas que vão no sentido da mutilação da criatividade e espontaneidade natural dos indivíduos. A experiência da vida nas suas múltiplas manifestações comportamentais deverá servir como base essencial para um desenvolvimento livre e espontâneo dos indivíduos no processo de aprendizagem cultural (10). Nenhum Estado ou outro tipo de autoridade moral (professor, Deus, etc.,) poderia pedagogicamente sobrepôr-se aos desígnios soberanos do aluno como ser essencialmente livre e criador. Para conquistar essa liberdade e felicidade criadora é preciso que o ser humano, desde criança, ganhe o hábito e o método de aprender por si mesmo, sem depender de quaisquer tutela moral, política ou religiosa.

Para Godwin, qualquer projecto de educação nacional revelava-se contraproducente. A escola pública (tão cara a muitos socialistas e republicanos laicos) sob tutela de um governo nacional e do Estado encarregar-se-ia, em todas as circunstâncias, de difundir um tipo de ensino e de pedagogia que cerceava inevitavelmente a liberdade e a criatividade dos indivíduos e reforçava, simultaneamente, o poder do Estado e das suas instituições.

Max Stirner, embora não tivesse uma visão tão globalista e integrada como Godwin, pensou a educação e a pedagogia como um hino de criatividade e liberdade circunscritos à soberania absoluta do indivíduo face a todos os poderes ou autoridades exteriores ao mesmo (11). Nesta assunção, o indivíduo, ao assumir-se como uma função de soberania relativamente ao outro ou aos outros instituidos em instituições de diferentes tipos e no Estado, só assume a criatividade e espontaneidade plena nos planos educacional e pedagógico, quando usufrui do máximo de liberdade e de individualidade. A figura do pedagogo, do professor e/ou do funcionário administrativo das instituições escolares revelam-se, por tais motivos, instrumentos de negação da liberdade e da individualidade dos seres humanos. A existência de um processo de aprendizagem de conhecimentos de incidência social , nestes termos, só poderia estruturar-se numa sintese única e indivísível: a emergência de uma sociedade hipoteticamente anarquista. Só o ser humano, enquanto entidade ontológica única,poderia evoluir para uma soberania de indivíduos livres que construiam e desenvolviam pedagogias e educações múltiplas, mas simultaneamente passíveis de se integrarem numa mesma síntese societária anarquista.

Um dos outros elementos centrais das teorias anarquistas reporta-se à perspectiva
autogestionária e integrada da pedagogia e da educação. Por um lado, o fenómeno da educação e da pedagogia só é passível de entendimento se o contextualizarmos no âmbito da sociedade global, por outro, só através do desenvolvimento de uma sociabilidade e socialização de carácter fraternal e solidário permitir-nos-ia falar verdadeiramente de uma educação e de uma pedagogia libertária. A auto-organização e auto-responsabilização dos indivíduos no processo de aprendizagem de conhecimentos não somente deveria enquadrar-se numa acção social criativa e espontânea, mas também tendo presente os valores e as finalidades últimas da emancipação dos indivíduos numa perspectiva autogestionária e integrada.

Proudhon foi um dos autores que maior preocupação teve relativamente a esta questão central. Esse facto deriva, em parte, das suas análises sobre o federalismo, o mutualismo, o sindicalismo revolucionário e a autogestão. A ordem social e económica que defendia num sentido de uma sociedade libertária construia-se basicamente a partir do trabalho e dos trabalhadores livres e emancipados. A educação e a pedagogia inscrevia-se nesta orientação primacial e funcionavam como o motor de aprendizagem dos conhecimentos necessários a toda actividade económica, profissões, ofícios e vida cultural e social em geral. Este carácter integrado da educação passava por um processo de socialização fundamentado na autogestão. A partir dos múltiplos locais de trabalho, das escolas de diferentes tipos e graus de ensino, etc., os indivíduos deveriam auto-organizar-se de forma a que o processo de aprendizagem de conhecimentos estivesse correlacionado com a sua vida quotidiana e estivesse identificado com os processos de decisão e transmissão de conhecimentos baseados em relações sociais fraternas e solidárias .

Para Proudhon, o ensino ministrado pelo sistema de educação burguês limitava-se a reproduzir um tipo de conhecimentos que embrutecia e desenvolvia atavismos comportamentais nos trabalhadores, transformando-os em máquinas obedientes e escravas da lógica exploradora e opressiva do Estado e da burguesia. Na medida em que considerava o trabalho como fonte criadora da ordem social e económica da sociedade futura, o seu projecto educacional e pedagógico está muito ligado ao mundo do trabalho. Para libertar o trabalho do jugo da opressão e da exploração capitalista e estatal, numa sociedade libertária, a instrução e a educação dos trabalhadores assumia uma importância capital.

Na perspectiva de Proudhon, as diferentes escolas públicas e privadas não deveriam estar desligadas da experiência, do raciocínio científico, dos locais de trabalho e da vida quotidiana em geral (12). A integração do ensino intelectual e manual numa síntese criativa humana permitiria a sua inserção espacio-temporal em todas as actividades sociais, económicas, políticas e culturais. Para a consecução desse objectivo, haveria três modalidades para ministrar a instrução e a educação: pelos pais nas suas famílias e domicílios, pelas escolas privadas em obediência aos seus particularismos, profissionais, ideológicos e geográficos e, ainda, as escolas públicas com uma abrangência social alargada e baseada em pressupostos federalistas.

As relações entre professores e alunos inscreviam-se num quadro estrutural autogestionário, mutualista e federativo. A auto-organização da educação e da pedagogia baseava-se em pressupostos de solidariedade e fraternidade o que, em princípio, inviabilizaria todo o tipo de relações hierárquicas traduzidas em tipos de autoritarismo e de dominação entre professores e alunos. Os professores dependiam das comunas ou federações distribuidas por departamentos e provincias. A escola pública, nas suas múltiplas funções de instrução e de educação, enquadrava-se organicamente numa sociedade global descentralizada e federalista, opondo-se, dessa forma, às concepções centralistas e monopolistas do ensino tutelado pelo Estado. Pedagogicamente, a escola modelo para Proudhon é a "escola-oficina" que permitia um processo de aprendizagem de conhecimentos politécnicos. A politecnia era uma pedagogia que permitia um acesso ao conhecimento dos diferentes ofícios, através da experiência e da racionalidade científica e simultaneamente de relações sociais espontâneas e simples, sem hierarquias e autoridades morais exteriores ao indivíduo e ao colectivo a que pertencia.

Bakounine não foi de forma alguma um autor profícuo na análise do fenómeno educacional. A razão fundamental dessa assunção radica na expressividade da sua luta pela transformação radical da sociedade capitalista e, ainda, devido ao facto de analisar a questão da educação e da pedagogia no quadro da sociedade libertária futura. Neste sentido, a sua visão colectivista do anarquismo embora estivesse pautada pela liberdade, a criatividade e espontaneidade dos indivíduos, a sua inserção nos parâmetros da sociabilidade e socialização humana transcritas em tipologias interactivas e relacionais de características solidárias e fraternas, leva-nos a interpretar o fenómeno educacional e pedagógico como algo que se integra e adapta aos desígnios de emancipação social, económica, política e cultural da sociedade libertária. Assim sendo, a criatividade e espontaneidade dos indivíduos como a sua liberdade e responsabilidade transcende o quadro de aprendizagem de conhecimentos na qual se inscreve o fenómeno pedagógico e educacional (13). Mais do que privilegiar a análise das relações polares professor/aluno, para Bakounine haveria que abolir o Estado e as relações sociais capitalistas a nível de toda a sociedade e, logicamente, o tipo de autoridade hierárquica e dominação que emerge na instituição escolar,. Neste amplo sentido, a tipologia das relações sociais anarquistas encarregar-se-iam de estruturar de uma forma livre, espontânea, responsável e criativa a inserção dos indivíduos na sociedade e nas suas unidades constituintes.

A educação, tal como a pedagogia, inscrevia-se neste quadro típico relacional e interactivo dos indivíduos, daí que em termos de processo de aculturação sócio-cognitivo e físico dos indivíduos não pudesse ser objecto de uma aprendizagem de conhecimentos diferente daquela que ocorria em toda a sociedade libertária.

Kropotkine sempre viu o fenómeno educacional e pedagógico como uma função crucial na formação dos jovens, como também o conceptualizou no sentido da emancipação dos trabalhadores (14). O conhecimento da vida, da natureza e da sociedade esteve sempre no centro das suas preocupações . Esse conhecimento permitiria destruir os factores que condicionavam a inteligência humana de percepcionar e interpretar científica e racionalmente os fenómenos que observava, mas também permitiria ao ser humano construir-se como ser individual e ser social emancipado de poderes e autoridades exteriores à sua identidade intrínseca.

A educação e a pedagogia libertária, nesse sentido, diferentemente da pedagogia e educação burguesa, deveria actuar de forma a que subsistisse sempre uma identidade entre tudo aquilo que se aprende e os requisitos inquestionáveis da emancipação individual e social: isto é, a aprendizagem de um conhecimento traduzido na potenciação da liberdade, da criatividade, da espontaneidade, da fraternidade e solidariedade humana .

Assim, tal como era importante formar jovens de forma a torná-los responsáveis e activos enquanto agentes de transformação radical da sociedade capitalista, para Kropotkine , a pedagogia e a educação libertária deveria desenvolver-se em sintonia com a assimilação de um conhecimento compatível com as necessidades de produção, de distribuição e consumo de bens e serviços inerentes ao funcionamento de uma sociedade libertária. A aprendizagem desse conhecimento deveria basear-se na realidade experimental dos múltiplos aspectos da vida quotidiana e do trabalho e fundamentar-se num equilíbrio ecológico de características identitárias com a natureza e seus elementos constitutivos. Nestes parâmetros, as comunidades pedagógicas e educacionais de Kropotkine enquadravam-se numa perspectiva de relações sociais fraternas e solidárias entre professores e alunos, eliminando-se os fenómenos relacionais interpessoais presididos pela dominação e exploração do homem pelo homem.

As experiências pedagógicas e educacionais libertárias que consideramos mais representativas, e que passamos de seguida a descrever, não devem ser vistas como qualquer prova de desvalorização em relação a todas as outras que omito. Esta omissão decorre, em primeiro lugar de opções metodológicas e epistemológicas, como enunciei logo de início neste texto e também porque há que referenciar aquelas que assumiram maior força simbolica no quadro da perspectiva libertária.

No campo das experiências libertárias, aquela que foi realizada por Paul Robin no orfanato de Cempuis (França), entre 1880 e 1894, foi dinamizada no sentido de dar uma formação integral às crianças nos domínios psíquico, físico e mental (15). Esta experiência, embora estivessse enquadrada institucionalmente no sistema escolar público da França, fundamentou-se numa perspectiva educacional e pedagógica libertária que Paul Robin protagonizou durante toda sua vida de professor. Os constrangimentos estruturais e institucionais impostos pelo meio ambiente dessa experiência não impediu que o orfanato de Cempuis reorientasse a educação e a pedagogia no sentido das crianças viverem o espaço-tempo da escola num clima de liberdade, de criatividade e de espontaneidade. A educação física, intelectual e moral constituiam as bases de formação das crianças, desde a infância até à adolescência. O corpo era sujeito e objecto de uma aprendizagem baseada em conhecimentos naturais e espontâneos e eram conjugados com jogos lúdicos.

A alimentação fundamentava-se em práticas naturalistas e actividades de lazer acompanhados de um diálogo de aproximação e de identidade com a natureza. A educação intelectual estava intimamente relacionada com a vida quotidiana dos alunos e professores, evitando-se o abuso de um ensino livresco e escolástico. No plano da educação moral estimulava-se, no aluno, a defesa de valores que se orientavam por princípios humanistas e emancipalistas, procurando-se incutir no espírito das crianças o sentido lógico da liberdade e da fraternidade entre os indivíduos. A relação entre professores e alunos inseria-se num esquema pedagógico de igualdade na discussão e explicação de todos os fenómenos estudados. A coeducação e a relação de liberdade e de igualdade entre rapazes e raparigas foi também estimulada. A experiência educacional e pedagógica de Paul Robin, em Cempuis, teve o seu epílogo em 1894, porque, em última instância, era demasiada radical para a época e punha em perigo a essência da educação e pedagogia burguesa de carácter autoritário. Não admira, portanto, que tivesse soçobrado perante os ataques difamatórios que sofreu da Igreja e do sistema escolar vigente.

Sebastien Faure pode ser enquadrado no campo das experiências educacionais e pedagógicas mais representativas no meio libertário, pese embora a sua obra e vida estar muito ligada aos meios anarquistas mais como intelectual e militante de grande envergadura. Na sua perspectiva de luta por uma sociedade anarquista, a educação e a pedagogia assumiam uma função estruturante de crucial importância para a emancipação das massas trabalhadoras. O projecto educacional e pedagógico de Sebastien Faure, por esse motivo, não podia circunscrever-se nos parâmetros e condicionalismos da educação e pedagogia burguesa, mas integrar-se plenamente nos objectivos e estratégias da revolução social (16). Embora seguindo, em grande parte, os passos de uma educação integral preconizada por Paul Robin nos planos intelectual, moral e físico, diferentemente deste, no entanto, fundamentou a construção de uma escola libertária apoiada em princípios e práticas autogestionárias, sem depender da tutela institucional e pedagógica estatal.

Nestes termos, em 1904, sob auspícios de Sebastien Faure é criada uma escola denominada A Colmeia, em Rambouillet (França). Em Rambouillet, não só foi dinamizado uma aprendizagem de conhecimentos manuais e intelectuais numa perspectiva integrada, como, ainda, todo esse conhecimento estava harmonicamente correlacionado com as necessidades de produção, de consumo e de educação da cooperativa integral A Colmeia. Na medida em que persistia uma interligação entre produção, consumo e educação, os aspectos organizacionais e pedagógicos eram estabelecidos mediante decisões e relações sociais de características autogestionárias e libertárias.

A criatividade, liberdade e espontaneidade dos alunos e professores permitia-lhes uma auto-organização e uma auto-responsabilização no processo de aprendizagem dos múltiplos saberes que estavam intimamente associados e, simultaneamente, orientavam o comportamento dos diferentes cooperantes no sentido da aprendizagem de conhecimentos integrados, opondo-se à separação entre trabalho manual e intelectual e à descontinuidade espacio-temporal entre os momentos de aprender e os de trabalhar.

Para os anarquistas e sindicalistas revolucionários que aspiravam libertar as massas trabalhadoras da exploração e a opressão exercida pelo Estado e a burguesia, ao criarem uma cooperativa estruturada em princípios e práticas autogestionárias e libertárias, significava criar as condições básicas para educá-las, de forma a extinguir essa realidade negativa e desenvolveram a sua luta no sentido da revolução social. Estava-se, portanto, a desenvolver uma experiência autogestionária em que as massas trabalhadoras tinham um espaço de manobra estratégica para dinamizarem um projecto educacional e pedagógico de características populares.

A liberdade, a criatividade e a espontaneidade existentes entre alunos, professores e restantes cooperantes ao permitirem uma aprendizagem de conhecimentos numa perspectiva integral, desenvolviam profecientemente o intelecto, o físico e a moral das crianças. Em termos pedagógicos acentuava-se a autonomia e a liberdade das crianças, privilegiava-se o estudo das diferentes ciências numa perspectiva racionalista e prescindia-se da classificação dos alunos em moldes hierarquizados. A cooeducação fundamentava-se numa base igualitária nas relações sociais estabelecidas entre rapazes e raparigas. Na medida em que esta experiência decorria, em grande parte, das capacidades e possibilidades humanas e financeiras de Sebastien Faure e do sindicalismo revolucionário francês da época, com a crise social e económica proveniente das mazelas da primeira guerra mundial, A Colmeia teve que fechar as suas portas em princípios de 1917.

Francisco Ferrer foi sem dúvida alguma uma figura proeminente no domínio da luta por uma educação e pedagogia de essência libertária. Através da sua acção persistente criou um modelo de Escola Moderna que teve grandes repercussões históricas na Espanha e, em menor grau, noutras partes do mundo: Brasil, Portugal, Suissa, Holanda, etc. Com intenções explícitas de lutar contra a ignorância e o analfabetismo endémico que perpassava a Espanha, Francisco Ferrer ao desenvolver a sua perspectiva racionalista e laica de ensino, depressa encontrou grandes resistências e oposição por parte da Igreja Católica que tinha uma influência clerical hegemónica sobre o sistema educacional e pedagógico espanhol.

Propriamente dito, a experiência da Escola Moderna teve o seu início, em Barcelona, no ano de 1904, e generalizou-se de seguida em outros locais na Espanha. Para além de seguir alguns dos passos educacionais e pedagógicos que Paul Robin tinha já desenvolvido em Cempuis, a estratégia e os objectivos da Escola Moderna enquadravam-se num regime de coeducação de crianças,com rapazes e raparigas em situação de igualdade , e na alfabetização de adultos.
Sem pôr em causa a sua essência libertária, o que singularizava, porém, a força da acção da Escola Moderna era o seu carácter laico e racional (17). Em uma sociedade, como era o caso da Espanha de então, modelada espiritual e físicamente pelo poder despótico do ensino clerical da Igreja Católica, criar e dinamizar um projecto educacional e pedagógico libertário por todas as regiões de Espanha, revelava-se, no mínimo, um perigo e uma afronta para todos os poderes instituídos: Estado, burguesia e Igreja. No fundo, era um tipo de escola que procurava fazer da educação e da pedagogia um instrumento de desenvolvimento humano das crianças e dos adultos numa perspectiva racionalista e ateia e simultaneamente criar as bases emancipalistas das classes trabalhadoras e do povo em geral.

Pelos constrangimentos em que decorria, a integração da educação moral e física não atingiram o mesmo nível de desenvolvimento das experências que ocorreram em Cempuis e Rambouillet. Deverá, ainda, sublinhar-se que os seus objectivos de educação popular foram custeados pelos pais dos alunos e/ou pelos próprios alunos adultos, mas sempre em função das suas capacidades financeiras específicas.

Com o fusilamento de Francisco Ferrer em 1909, em Barcelona, sob as ordens de Afonso XIII, a experiência libertária da Escola Moderna sofreu um rude golpe nas suas aspirações de expansão. Após esse acontecimento trágico, o projecto de Francisco Ferrer foi-se desintegrando progressivamente. Porém, isso não impediu que a sua força simbólica no campo das experiências pedagógicas e educacionais libertárias deixasse rastos para sempre no imaginário colectivo anarquista, quer em Espanha, quer no resto do Mundo.

A revolução espanhola, de 1936-1939, revelou-se uma experiência no campo pedagógico e educacional libertário que não podemos desprezar. Em primeiro lugar, porque ela foi realizada no quadro das contingências de uma transformação radical da sociedade capitalista espanhola. Em segundo lugar, porque os constrangimentos e os condicionalismos da sociedade global em relação ao funcionamento interno das instituições escolares eram menos relevantes.
O projecto educacional e pedagógico apresentado pela CNT (Confederação Nacional do Trabalho) no Congresso de Saragoza, em Maio de 1936, é bastante elucidativo a esse respeito. É certo que o projecto educacional e pedagógico consubstanciado na Escola Nova Unificada só foi implementado após o início da revolução espanhola, em Julho de 1936, e, em grande medida, não teve os efeitos práticos que o Congreso de Saragossa pretendia. Isso, porém, não invalida que, na região da Catalunha e outras regiões onde a CNT tinha uma certa influência, fosse implementado um processo de aprendizagem de conhecimentos pautado pela força estruturante da liberdade, da criatividade e espontaneidade dos alunos, professores e restantes pessoas que estavam integrados no projecto autogestionário de educação e pedagogia libertária (18).

O insucesso relativo desta experiência, em grande medida, deve-se ao epílogo da revolução espanhola em 1939 e também porque o funcionamento quotidiano da Escola Nova Unificada foi perpassado por um conjunto de contradições e conflitos resultantes das alianças realizadas pela CNT com os diferentes sindicatos que estavam sob tutela dos partidos socialista, comunista e republicano.

Mesmo sabendo que existiram e existem um conjunto de experiências libertárias no campo da educação e da pedagogia, pelas diferentes partes do planeta, não gostaria porém de fazer uma pequena referência a alguns exemplos que se enquadram, de certo modo, nas suas virtualidades. Refiro-me, concretamente, às experiências de Alexander Sutherland Neil, iniciada em 1921, Summerhill (Inglaterra) (19), às Comunidades Escolares de Hamburgo (20), iniciadas em 1919 na Alemanha, durante a vigência da Republica de Weimar e, finalmente, ao projecto educacional e pedagógico desenvolvido pelo Colectivo Paideia em Mérida (Espanha) desde há vários anos (21).

Não obstante saber das diferenças subsitentes entre essas experiências que foram objecto de análise, todas elas, no entanto, procuraram e procuram extinguir ou superar os factores que estão na base dos constrangimentos e na negação da emergência de um projecto educacional e pedagógico fundamentado na liberdade, espontaneidade, criatividade e responsabilidade dos indivíduos, sem que para tal haja necessidade de amos ou senhores ou de qualquer poder ou autoridade exteriores a esse projecto.

4. Actualidade da pedagogia autoritária e hipóteses históricas para a pedagogia libertária

Como enunciei no início do texto, a pedagogia e a educação são impossíveis de separar mecanicamente do contexto global de que fazem parte e onde ocorrem: a sociedade global. Este carácter de interdependência e de complementaridade sistemática entre as diferentes realidades permite-nos compreender e interpretar, com maior rigor e verdade, os conteúdos e formas que a pedagogia e a educação autoritária capitalista assume, nos nossos dias, na Europa ocidental. Se fizermos da instituição escolar o nosso objecto de observação científico, somos constrangidos, inevitavelmente, a analisar três aspectos essenciais: 1) que tipo de ensino é ministrado pelas instituições escolares?; 2) que relações sociais e tipologias interactivas emergem no quadro do funcionamento interno das instituições escolares?; 3) que tipos de articulações e adaptações existem entre a instituição escolar, o Estado, o mercado, empresas e outras instituições que fazem parte da sociedade?

Assim quando, hoje, tentamos descortinar o tipo de ensino que é ministrado pelas diferentes instituições escolares, torna-se, quase impossível, analisá-lo exclusivamente como expressão genuina dos interesses e necessidades dos indivíduos e grupos que o asssimilam, nem conseguimos vivê-lo e pensá-lo como algo neutral ou abstracto. Na generalidade dos casos, o tipo de ensino ministrado reflecte as necessidades de desenvolvimento cultural dos indivíduos que compõem uma dada sociedade e, por outro lado, serve de padrão de instrução e de veiculação de saberes múltiplos que se adequam à produção e reprodução da sociedade em que o mesmo se insere. Em face desta realidade, existe um tipo de educação que tem por função o desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos e, por outro lado, a função de aprendizagem sócio-cultural, polí;tica e económica no quadro de uma sociedade específica.

No entanto, quando nos reportamos à esssência racional e instrumental da educação relacionada com um tipo de ensino que é ministrado nas escolas, liceus e universidades dos países capitalistas desenvolvidos da Europa ocidental, depressa nos apercebemos que estamos a referenciar uma educação bem específica. Nesta óptica, o que persiste como modelo educacional está basicamente identificado como o desenvolvimento dos indivíduos nos domínios sócio-profissional, do poder, do "status", da propriedade e da apropriação e usufruto de bens e serviços sob as mais variadas formas. O ensino nos seus diferentes graus hierarquiza e legitima institucionalmente todos os indivíduos que se integrarão numa função de saber em determinado grupo sócio-profissional, ao mesmo tempo que isso lhes possibilita uma contrapartida do exercício desse saber corporizado num sistema de recompensas políticas, sociais, económicas e culturais. Por essa via podem mobilizar-se e integrar-se na escala hierárquica da estratificação social da sociedade .

Esta identidade racional-instrumental, que existe entre o tipo de ensino ministrado x=saber do indíduo x=profissão x= lugar na escala da estratificação social x, está, no entanto, a sofrer uma grande transformação. Nem o tipo de ensino coincide exactamente com as necessidades funcionais e de regulação do mercado, do Estado e da sociedade em geral, como inclusivé o que se aprende nas escolas, liceus e universidades não se identifica com a maioria das expectativas racionais e instrumentais dos indivíduos nos múltiplos domínios da sua articulação com vida de todos os dias na sociedade. Não funcionando plenamente este tipo de ensino racional-instrumental, assiste-se ao desenvolvimento de fenómenos que originam a desintegração social .

A desedequacção persiste com cerca de 30 milhões de desempregados na Comunidade Económica Europeia que, entretanto, tinham sido alfabetizados pelo sistema escolar mas não encontraram aplicabilidade prática no mundo do mercado do trabalho .

Esta tendência do modelo educacional autoritário capitalista demonstra-nos que nem o Estado, nem o mercado, nem a sociedade capitalista conseguem socializar e regular com a eficácia requerida o tipo de ensino que é dinamizado pelas diferentes instituições escolares públicas e privadas. Estas, em contrapartida, são, cada vez mais, meros reservatórios para estruturar a integração social de indivíduos marginalizados e desocupados. Mais do que ministrar um tipo de ensino para promover e desenvolver culturalmente os indivíduos, trata-se antes de socializar e controlar indivíduos em espaços fechados, durante um certo número de horas, de forma a impedir que se tornam agentes de marginalidade e de desintegração social.


Para agravar a disfuncionalidade da racionalidade instrumental da educação autoritária capitalista, com a emergência de novos desafios ao sistema educacional vigente impostos pelas novas tecnologias, a crise ambiental, a pressão demográfica, a marginalidade social e a desintegração social, etc., assiste-se à exigência de novos conhecimentos cujas linguagens complexas e sofisticadas são muito difíceis de descodificar. Os múltiplos saberes que estão correlacionados com essas novas exigências de conhecimento humano são, no entanto, paradoxais para o sistema educacional autoritário capitalista. Isso ocorre porque, em grande medida, muitas das manifestações críticas que a sociedade capitalista atravessa são o resultado lógico da aplicabilidade concreta da educacção racional-instrumental subsistente. Nas circunstâncias, dinamizar novos conhecimentos ao ser humano de forma a superar a actual crise corporizada no ambiente, marginalidade social, desintegração social e pressão demográfica, etc., revela-se paradoxal, já que foi o processo de aculturação racional-instrumental dos indivíduos que está na base dessa crise.

A partir do momento que nos situamos na análise da educação e da pedagogia, estamos, quase sempre, a compreender e interpretar as instituições escolares na lógica do seu funcionamento interno. Em termos sócio-culturais e políticos, essa realidade interna é fundamentalmente um espaço de interacção social e de significados simbólicos para os professores, alunos e funcionários. É uma realidade atravessada por uma intervenção social de significados simbólicos que se consubstancia em tipologias interactivas e relações sociais padronizadas que põem em acção, jogos e formas de poder, atitudes, valores e conflitos diferenciados.


Desse contexto emergem relações sociais padronizadas que são legitimadas institucionalmente pela sociedade e o Estado em que as instituições escolares operam. Os valores e as ideologias da sociedade traduzem-se, por outro lado, em normas e regras prescritivas que orientam e sancionam um comportamento humano padronizado de todos aqueles que integram as instituições escolares. Desse modo, toda a pedagogia e a educação é objecto de uma socialização traduzida em papéis e funções específicas do professor, do aluno e do funcionário que foram, na ocorrência, legitimados e formalizados previamente pelas instituições tutelares do Estado e da sociedade. Há, portanto, níveis hierárquicos de autoridade formal que determinam à partida quem pode e deve exercer o poder dentro da instituição escolar. As tarefas e funções do professor, a partir do momento que obedecem a uma lógica normativa e prescritiva, leva a que o seu papel se traduza numa função de discricionaridade pedagógica e educacional de tipo autoritário nas relações que têm com oa alunos. Embora inscritos num outro plano relacional, o mesmo poderemos afirmar em relação aos papéis que decorrem da autoridade formal dos quadros administrativos superiores, os professores e os funcionários subalternos das instituições escolares. Mesmo sendo relações sociais vinculadas por diferenças de estatutio sócio-profissional, entre os vários grupos subsistem modalidades de acção e de intervenção mediatizadas pela autoridade hierárquica formal legitimada pela instituição escolar.

As relações sociais entre alunos e funcionários também passam por mecanismos relacionais de poder. É no poder de decisão burocrático-administrativo que se observa expressivamente o poder dos funcionários sobre os alunos e, muitas vezes, sobre os próprios professores. As relações de poder entre professores, alunos e funcionários, na medida em que são atravessados por fenómenos de dominação, geram um conjunto de conflitos quando os processos comunicacionais e de decisão relacionados com a aprendizagem de conhecimentos ocorrem nas instituições escolares. É evidente que o exercício do poder formal legitima um tipo de autoridade que se manifesta na aplicação de uma pedagogia autoritária. A codificação e a descodificação das linguagens inerentes aos múltiplos saberes veiculados pelos professores, e que são objecto de percepção por parte dos alunos, não permitem que as potencialidades cognitivas e físicas dos alunos se exprimam num clima de liberdade, criatividade, espontaneidade e responsabilidade. Por outro lado, a emergência de fenómenos de contestação e de avaliação do conteúdo e formas das mensagens transmitidas pelo professor dificilmente ocorrerão porque não lhes é permitido reequacionar ou sequer reformular erros ou distorsões durante o processo de aprendizagem de conhecimentos.

A força constrangedora da autoridade formal do professor observa-se também nas atitudes e valores que veiculam. Nestes aspectos, a função do professor resume-se a ministrar uma educação que decorre e é prescrita por um conjunto de ideias, crenças e valores institucionalizados pelo Estado e a sociedade. Os múltiplos saberes veiculados pelo sistema educacional são orientados por um conjunto de ideologias e valores dominantes que se traduzem em atitudes inquestionáveis e intransigentes por parte do professor em relação a qualquer constestação ou interrogação dos alunos sobre o conteúdo e as formas como as matérias são ministradas.

Os fenómenos de reacção contra esta pedagogia autoritária capitalista implicou a emergência de conflitos intragrupais e intergrupais e, logicamente, o aparecimento de grupos informais nas instituições escolares. Esses grupos embora não sejam legitimados pela estrutura da autoridade formal das escolas, vão, no entanto, buscar a sua razão de ser a opções de acção colectiva confinadas a interesses especificos e a reivindicações junto daqueles que detêm a autoridade e o poder formal. Professores, alunos e funcionários podem, desse modo, interagir num sentido de exercício de uma autoridade e poder que é legitimado pela forma como se estabelecem as relações de poder entre as estruturas formais e informais e a força estruturante das relações sociais de tipo informal em relação às relações sociais de tipo formal nas instituições escolares.


Depreendemos as razões da emergência de conflitos e de relações sociais de tipo informal como formas de reacção e de adaptação ao funcionamento interno das instituições escolares baseadas numa pedagogia e educação autoritária. Pelo facto de nunca questionarem essa realidade negativa em profundidade, não admira que ao longo da história, e mais recentemente, tenham surgido um conjunto de pedagogias com a finalidade de superar as contradições da pedagogia autoritária capitalista. A antipedagogia, a pedagogia institucional, a pedagogia terapêutica e a dinâmica de grupo, entre outras, como pedagogias inovadoras, até agora, mais não têm feito do que tentar aperfeiçoar essa pedagogia e essa educação, sem todavia pôrem em causa a sua essência autoritária e opressiva e a própria sociedade e Estado que lhes dão corpo e forma (22).

Em presença das diferentes tendências que estruturam as sociedades capitalistas desenvolvidas da Europa ocidental, denota-se que o processo de aculturação dos indivíduos, com a emergência histórica das novas tecnologias no campo da informática, electrónica, rádio, televisão, rádio e imprensa, foi drasticamente modificado. A aprendizagem de conhecimentos e da cultura em geral pulverizou-se e estrutura-se numa polivalência funcional que não é mais passível de organizar e institucionalizar nos estritos limites e fronteiras das instituições escolares clássicas.

As capacidades e possibilidades de transmitir informação é gigantesca e os processos de inovação no que toca a aprendizagem de conhecimentos modificou-se substancialmente. O processo de aculturação dos indivíduos num sentido mais global, por esta via, vai também ser objecto de grandes mudanças, na medida em que o conteúdo e as formas de codificação e descodificação das linguagens deixam de ser personificados por linguagens corporizadas em observações e comunicações humanas directas e passam a ser mediatizadas por artefactos tecnológicos sofisticados, o que subverte os processos cognitivos de aprendizagem de conhecimentos nos planos educacional e pedagógico.


A mediação funcional dos novos meios de comunicação que podem ser objecto de utilização no acesso à informação e ao conhecimento relacionado com os múltiplos saberes potenciou e transformou as capacidades e possibilidades relacionais dos indivíduos a todos níveis: gestão e controlo das mensagens recebidas e emitidas; velocidade e distâncias espacio-temporais e seus significados simbólicos através das mensagens recebidas e emitidas; heterogeneidade e sínteses sócio-culturais das mensagens transmitidas; mudanças no processo de percepção cognitiva e adaptações diferenciadas do corpo e da mente humana, etc.


Em função destas tendências, o processo de aculturação dos indivíduos ultrapassou as fronteiras do quadro institucional e funcional das instituições escolares clássicas e transformam as próprias funções de controlo e de regulação do Estado e do mercado em relação ao fenómeno pedagógico e educacional. As tendências actuais constrangem ao aparecimento de novas instituições e organizações, cuja função crucial consiste em protagonizar uma difusão importante do conhecimento racional-instrumental autoritário capitalista: televisão, imprensa, rádio, empresas de formação, instituições e organizações de produção e difusão cultural, de lazer, etc. Este facto, leva a que as relações e as interacções sociais ligadas aos fenómenos educacional e pedagógico reestruturem o poder e a autoridade daqueles que ensinam e daqueles que são ensinados. As relações clássicas polares professor/aluno, embora ainda sejam importantes, vão sendo progressivamente substituidas por relações multipolares inscritas em códigos de linguagens com significados diferenciados e múltiplas qualificações sócio-profissionais.

Em presença deste quadro tendencial da pedagogia e educação autoritária capitalista, as hipóteses históricas de uma perspectiva libertária são sempre passíveis de equacionar a duas dimensões:

1)como função integrada numa sociedade hipoteticamente anarquista e;
2) como hipótese de desenvolvimento de experiências radicais no próprio contexto da evolução da sociedade capitalista. Pela sua natureza tendencial e virtualidades reais, interessa-nos mais construir as alternativas mais credíveis a partir da segunda dimensão.

Nestes termos, em primeiro lugar, as virtualidades da pedagogia e da educação libertária têm um valor simbólico no imaginário colectivo dos seres humanos que em si próprio, é inquestionável em qualquer tipo de sociedade. Como escolha radical, ao alicerçar uma sociedade baseada num processo de aculturação dos indivíduos, tendo como base os pressupostos da liberdade, espontaneidade, criatividade e responsabilidade humana, sempre houve e haverá pessoas que vão integrar acções individuais e colectivas que se inscreverão numa luta pela emancipação social e individual em termos integrados e autogestionários.


Em segundo lugar, as próprias contradições e condicionalismos da pedagogia e educação autoritária capitalista tendem a evoluir para uma desintegração social, cuja crise assumirá proporções inauditas. As contingências e constrangimentos dessa crise levarão a uma necessidade de encontrar soluções credíveis para a sua superação. Em confronto com as múltiplas alternativas pedagógicas e educacionais de características autoritárias e mesmo daquelas que se inscrevam em pressupostos de não-directividade e na dinâmica de grupo, a pedagogia e a educação libertária tem grandes possibilidades, porque as outras têm extrema dificuldade em superar a crise do modelo educacional e pedagógico vigente. Ora, neste domínio, pela originalidade que personifica nos domínios da auto-reflexão e da auto-organização, a perspectiva libertária pode ser estruturada com viabilidade em contextos autogestionários e cooperativos, desde que tenha em atenção os fenómenos de adaptação e de reacção impostos pelas outras realidades institucionais e organizacionais escolares e pela própria sociedade global.

Finalmente, o projecto educacional e pedagógico libertário pode ser visto como uma base de alternativa mais ampla face à realidade de anomia e de desintegração social que subsiste na articulação das comunidades locais e regionais com os sistemas de representatividade formal corporizadas na centralização e burocratização do Estado, nos grandes aglomerados urbanos e na própria sociedade. Enquanto projecto de vida autogestionário e comunitário integrado, a possibilidade de construir projectos educacionais e pedagógicos numa perspectiva libertária nos espaços comunidades locais e regionais, seria sem dúvida um bom antídoto para começar a superar as contradições e antagonismos que persistem no modelo educacional e pedagógia autoritário capitalista.

* José Maria Carvalho Ferreira Professor do ISEG-Universidade Técnica de Lisboa
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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(5) FOUREZ, Gerard, Eduquer - école, éthique, sociétés, Bruxelles, De Boeek Université, 1991.
(6) BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean-Claude, La reproduction, Paris, Minuit, 1970.
(7) BOUDON Raymond, L'inégalité des chanches - la mobilité sociale dans les sociétés industrielles, Paris, Armand Colin, 1973.
(8) SPRINTHALL, Norman e SPRINTHALL, Richard, Psicologia educacional - uma abordagem desenvolvimentista, Lisboa, McGraw-Hill, 1993.
(9) PREPOSIET, Jean, Histoire de l'anarchisme, Paris, Tallandier, 1993.
(10) "Wlliam Godwin - philosophe de la justice et de la liberté", in Les Cahiers Pensée et Action, nº 1, Août-Septembre, Paris, 1953.
(11) STIRNER, Max, L'unique et sa propriété, Paris, Stock, 1899.
(12) PROUDHON, Joseph-Pierre, De la justice dans la révolution et dans l'église, Paris, Librairie de Granier Frères, 1858.
(13) BAKUNIN, Miguel, Obras completas (5 tomos), Madrid, La Piqueta, 1979.
(14) KROPOTKINE, Pierre, Champs, usines et ateliers, Paris, Stock, 1910; e À gente nova, Lisboa, Delfos, 1974.
(15) RAYNAUD, J. e AMBAUVES, G., L'éducation libertaire, Paris, Spartacus, 1978.
(16) FAURE, Sebastien, La verdadera revolución social, Barcelona, Biblioteca "Rojo e Negro", 1934.
(17) RAYNAUD, J. e AMBAUVE, G., ob. cit.,
(18) LEVAL, Gaston, Espagne libertaire, Paris, Ed. du Cercle/Ed. de la Tête de Feilles, 1971.
(19) SKIDELSKY, Robert, La escuela progressiva, Barcelona, A.Redondo-Editor, 1972.
(20) SKIDELSKY, Robert, ob. cit.,
(21) LUENGO, Josefa Martin, "Colectivo Paideia - experiências en torno de um ensino novo e antiautoritário" in Antítese, nº8, Fevereiro-Maio, Almada, 1988.
(22) RESWEBER, Jean-Paul, Pedagogias novas, Lisboa, Teorema, 1988.