21.4.07

Os táxis da tortura

Novo livro:
A verdadeira história dos voos da CIA – Os táxis da tortura" , por Trevor Paglen e A. C. Thompson, editado pela Campo das Letras, Porto, 2007



Uma cidade chamada Smithfield

A pequena cidade de Smithfield fica a meia hora de distância de Raleigh, na Carolina do Norte. A cidade fica aninhada entre inúmeros hectares de pinheiros altos e esguios e as correntes lânguidas e lamacentas do rio Neuse. Aqui, a empresa Aero Contractors opera às claras. A Aero faz trabalhos para a CIA e muitos dos seus funcionários vivem na cidade. Pode-se dizer que Smithfield é uma cidade da empresa e estamos interessados em a observar de perto.

À medida que avançamos em direcção à cidade, com cerca de doze mil habitantes, localizada no condado rural de Johnston, as placas que ilustram um certo etos regional começam a acumular-se, umas atrás das outras. Um bar chamado The Last Resort, situado nos arredores da cidade, está adornado com bandeiras confederadas. Vêem-se memoriais de guerra por todo o lado. O tribunal do condado, fechado nesta Sexta-feira Santa, está adornado com cinco destes memoriais e, adicionalmente, com placas que comemoram duas batalhas diferentes da Guerra Civil. Do outro lado da rua, a Riverside Coffee Company exibe uma carta emoldurada de agradecimento dos elementos de uma companhia do Exército estacionada em Fort Bragg, nas proximidades. À medida que nos embrenhamos na cidade, vemos cartazes e placas de néon que proclamam, uma e outra vez, que Jesus é o Senhor, que Ele salva, e que a condenação eterna está sempre a alguns passos de distância. Vêem-se igrejas por todo o lado.

Mas as coisas por vezes correm mal na Terra do Senhor: os romances e os filmes de terror estão cheios de lugares-comuns sobre cidades pequenas. Nessas histórias, as cidades pequenas muitas vezes escondem um segredo profundo e aterrador. E, apesar de aquilo que acontece no aeroporto do Condado de Johnston não ser o mesmo que no filme de terror Children of the Corn, não está muito longe disso. Smithfield, tal como muitas cidades pequenas, alberga algumas coisas sobre as quais é melhor não falar.

Estamos interessados no que se passa no aeroporto local. O aeroporto do Condado de Johnston é um pequeno aeroporto regional, nos arredores de Smithfield. É pouco mais do que uma pista ao lado de um pequeno conjunto de hangares, caravanas e barracas. A maior parte dos aviões aqui estacionados são pequenos aviões a hélice Cessna pilotados por entusiastas locais da aviação. Mas a Aero Contractors, Ltd., também opera fora do aeroporto. Dirige as suas operações a partir de uma reduzida área situada a sul da pista, ao fundo de uma rua lateral chamada Charlie Day Memorial Drive. (O nome da rua sugere o negócio da Aero Contractors: Charlie Day era um mecânico da empresa de fachada da CIA, Air America.) Enquanto algumas empresas de fachada, como a Premier Executive Transport Services, são efectivamente proprietárias dos táxis da tortura da CIA, a Aero Contractors é uma das empresas que os controla e os põe a voar.

E, portanto, este pequeno aeroporto rural no coração do Condado Johnston é a última paragem de inúmeros voos de entrega de prisioneiros da CIA. Um dos mais infames aviões de tortura, o Gulfstream V, conhecido como o Expresso da Baía de Guantánamo, teve como base principal este aeroporto ao longo de cinco anos. Uma pequena frota de aviões com turbopropulsores, de fabrico espanhol, da marca Casa, e que foram vistos em todo o mundo, também aqui estão estacionados. Um Twin Otter, com o número de cauda N6161Q e operado pela Aero, efectua voos regulares até aos campos de treino da CIA, em Camp Peary. A Aero Contractors opera igualmente o infame Boeing Business Jet 737 a partir de um aeroporto próximo, situado em Kinston, na Carolina do Norte.



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Walt e Allyson Caison são das poucas pessoas que vivem no Condado de Johnston que se disponibilizam para falar sobre as operações da CIA no aeroporto local. Mostram-se extremamente loquazes relativamente a este tema e são muito críticos. Na medida em que são cristãos profundamente empenhados, os Caison sentiram-se bastante perturbados quando, em Maio de 2005, o programa noticioso 60 Minutes apresentou uma reportagem sobre o caso de Khaled El-Masri. El-Masri é um cidadão alemão que foi raptado enquanto passava férias na Macedónia; acabaria por ser transportado para uma prisão secreta da CIA no Afeganistão e torturado. O programa 60 Minutes implicara a Aero Contractors e o aeroporto do Condado de Johnston no seu desaparecimento e posterior tortura. Apesar de os pilotos e pessoal da Aero que viviam na comunidade dos Caison provavelmente não terem raptado terroristas suspeitos na rua, e provavelmente também não terem sido eles a aplicar qualquer tipo de tortura, tinham, conforme sabemos, tripulado os aviões de transporte. E Walt e Allyson sabiam que os pais dos amigos dos seus filhos tinham transportado prisioneiros encapuçados, drogados e algemados para algumas das prisões mais secretas da guerra contra o terrorismo. Mais ainda, estes voos regressavam sempre a Smithfield; a base principal dos táxis da tortura situava-se nas traseiras da casa dos Caison.

Walt, um psicólogo de meia-idade, com um bigode farfalhudo e olhos gentis, há muito que tinha conhecimento daquilo que se passava no aeroporto. Ouvira falar pela primeira vez sobre a Aero Contractors enquanto escuteiro numa saída em que fora acampar com o filho. Certa noite, já muito tarde, em torno da fogueira, um dos outros pais tinha abordado a questão da "operação dirigida pela CIA no aeroporto". Walt não insistira no assunto, receando ofender o conservadorismo arreigado do outro indivíduo. A presença da CIA em Smithfield era um segredo conhecido de todos, disse Walt: "Todas as pessoas na cidade sabiam há anos que havia ali uma companhia de aviação que realizava operações para a CIA". [1]

"Analiso esta situação a partir de uma perspectiva baseada na fé, o que está certo, está certo", disse-nos Allyson. [2] Os Caison entendiam que a sua fé continha uma mensagem de justiça, uma obrigação de fazer frente à injustiça e de tratar as outras pessoas com decência, independentemente do que elas tivessem feito. Era difícil imaginar algo mais anticristão do que fazer desaparecer e torturar pessoas, pensavam eles. Mas a presença da Aero no condado, já para não falar do trabalho em que a empresa estava envolvida, não era um tema de discussão pública, disseram-nos. As poucas conversas que se verificavam entre os vizinhos dos Caison e a congregação da igreja revolviam em torno de saber se a Bíblia autorizava a tortura. Várias pessoas na igreja dos Caison tinham absoluta certeza que sim. Para tal, indicavam que, no Livro da Revelação, Deus ordenara aos enxames de gafanhotos que torturassem os descrentes.

Para Walt e Allyson Caison, falar sobre desaparecimentos e tortura no Condado de Johnston é menos abstracto do que nas páginas do Washington Post ou do The New York Times, Falar contra a tortura em Smithfield é falar, literalmente, contra as acções dos vizinhos. Todas as pessoas em Smithfield se conhecem, conhecem os vizinhos e os vizinhos dos seus vizinhos. E a Aero é o maior empregador da região. Para os Caison, falar connosco sobre tortura era semelhante a acusar as pessoas da sua cidade de participarem numa conspiração satânica. Além disso, havia fortes razões para evitar qualquer tipo de divergência. Disseram-nos que o conselho de administração da Aero é composto pelos líderes religiosos e empresariais da cidade, advogados e outros elementos proeminentes da pequena comunidade. O sacerdote da igreja dos Caison fazia parte do conselho, tal como muitos dos "membros mais respeitados da comunidade" de Smithfield, disse Allyson.



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O gestor adjunto da Aero Contractors, que dirige efectivamente a empresa, é um indivíduo chamado Bob Blowers. E, tal como muitas das pessoas envolvidas no programa de entrega extraordinária de prisioneiros, tem afirmado que a Aero Contractors não tem absolutamente ligação nenhuma com a CIA, muito menos com torturas e desaparecimentos. Quando a imprensa local começou a colocar questões sobre a Aero, Blowers insistiu que a empresa era uma companhia de aviação de voos charter genéricos e que não tinha qualquer ligação com o transporte de suspeitos de terrorismo por todo o mundo. "Operamos aqueles aviões internamente", disse ele ao Smithfield Herald. "Nenhum dos nossos funcionários foi ao estrangeiro… na verdade não sei por que motivo se verifica toda esta agitação". [3] No entanto, quando o The New York Times deu seguimento jornalístico à peça do programa 60 Minutes, Blowers reconheceu uma ligação ao governo: "Temos vindo a fazer negócios com o governo desde há muito tempo, e uma das razões para isso é o facto de não falarmos sobre o assunto". [4] Em 2006, Blowers deixou de falar com os meios de comunicação social. "Já se agitaram o suficiente as águas", disse Lamar Armstrong, o advogado da empresa, declinando os nossos pedidos de uma entrevista.

Mas a repetida insistência de Blowers quando afirma que a empresa é uma empresa de aviação de voos charter perfeitamente normal é fortemente contrariada pelos registos da empresa na Administração Federal de Aviação, e pelas histórias contadas por ex-pilotos. Por exemplo, numa carta de 30 de Novembro de 2001 do registo da FAA sobre o Boeing Business Jet 737 (o avião que transportou Khalid El-Masri, Binyam Mohammed e inúmeros outros prisioneiros para a rede de câmaras de tortura da CIA e outras prisões secretas) Blowers escreveu à Administração Federal de Aviação solicitando que fosse atribuído um número de registo à Premier Executive Transport Services.

Os documentos de manutenção do Expresso da Baía de Guantánamo também têm as marcas de Blowers: numa carta de Janeiro de 2005 para a FAA, Blowers escreveu que "o número de registo no G-V que operamos mudou para N44982" (acrescentámos o itálico). Outras cartas e documentos nos ficheiros da FAA reiteram o facto de a Aero operar vários aviões da CIA. [5] E as informações descobertas nos ficheiros da FAA são corroboradas, tal como muitas outras provas, pelos registos de voo dos aviões. Quer o Expresso da Baía de Guantánamo tenha transportado algum infeliz prisioneiro até Cabul ou dignitários de serviços secretos estrangeiros a reuniões em Washington, os registos de voo mostram sempre que os táxis da tortura regressaram a Smithfield.

O problema das tentativas de Bob Blowers de "negação plausível" é que a sua versão da "negação" simplesmente não é plausível.



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A Aero Contractors é apenas uma das mais recentes encarnações da história das linhas aéreas secretas da CIA. Na verdade, a agência controla aviões praticamente desde que existe. Começou com uma empresa chamada Civil Air Transport (CAT), constituída em 1946 por Claire Chennault, Whiting Willauer e Thomas G. Corcoran. A intenção deles era usar a companhia para apoiarem os nacionalistas chineses, já que se iniciava a guerra civil na China. Chennault era um general americano reformado com uma longa história na China; liderara os Flying Tigers (pilotos voluntários americanos que lutavam em defesa dos chineses contra os japoneses) e a Décima Quarta Esquadra da Força Aérea durante a Segunda Guerra Mundial. A CAT ganhava dinheiro principalmente no apoio prestado às operações paramilitares dos nacionalistas chineses. Nos seus primeiros anos, a CAT transportou militares, abastecimentos, diplomatas e executou outras missões em nome das forças em retirada de Chiang Kai-shek. No entanto, em 1949, a CAT começara a implodir, empurrada de um lado pelas fortunas cada vez menores dos nacionalistas e, do outro, pela inflação esmagadora da economia chinesa. Para sustentar a empresa, Chennault propôs ao Departamento de Estado que começasse a apoiar as forças nacionalistas no sul da China e a fornecer assistência aos guerrilheiros chineses. Chennault calculava que a entrada de dólares norte-americanos ajudaria à sobrevivência da empresa. Mas quando o Departamento de Estado recusou o plano de Chennault, o seu sócio, Thomas Corcoran, colocou-o em contacto com a Secção de Coordenação de Política da CIA, cuja designação deliberadamente vaga permitia esconder a sua função como ramo das acções secretas da CIA. Frustrada por ter de depender da força aérea militar americana e britânica para as suas operações, a CIA apercebeu-se do enorme potencial que teria se controlasse os seus próprios bens aéreos e, a 1 de Novembro de 1949, Corcoran assinou um acordo com a agência. A CAT recebeu quinhentos mil dólares para financiar uma nova base na Tailândia e para mudar a sede para Hong Kong; recebeu igualmente um adiantamento de duzentos mil dólares para conceder acesso prioritário à CIA nas operações da companhia aérea. A entrada do dinheiro da CIA, no entanto, não resolveu os problemas financeiros da CAT e, depois de recorrer sucessivamente à agência para obter fundos adicionais, a empresa acabaria por ser absorvida pela CIA. [6]

Ao longo da década seguinte, o crescente ramo paramilitar da CIA serviu-se de aviões e pilotos da CAT para expandir as suas guerras secretas: primeiro na China, depois na Coreia, depois no Vietname, em Dien Bien Phu. Em meados da década de 1950, as operações da CAT tinham começado a disseminar-se por todo o mundo, em paralelo com o alcance cada vez mais global da CIA. Na América Central, o co-fundador da CAT, Thomas Corcoran, ajudou a convencer a CIA a levar a cabo uma guerra secreta contra o líder eleito da Guatemala, Arbenz Guzmán. Além do seu papel na CAT, Corcoran era também funcionário de um gigante da agricultura, a United Fruit, uma empresa com sede nos EUA e com uma forte intervenção sobre as exportações agrícolas da América Central. Quando Guzmán ameaçou nacionalizar as plantações da United Fruit, a CIA interveio para pôr fim ao "comunismo" de Guzmán e, em seu lugar, instalou uma série de ditadores brutais. [7]

À medida que crescia o programa de acções secretas, também acontecia o mesmo à dimensão da sua frota de aviões "civis". Em finais da década de 1950 e no início da década de 1960, a agência remodelou a CAT, transformando-a na actualmente famosa Air America. A Air America acabaria por operar uma das maiores frotas de aviões civis do mundo, com 167 aviões, oito mil funcionários e muitas outras empresas subsidiárias dedicadas integralmente à manutenção da frota da Air America. [8]

Outras empresas controladas pela CIA seguiram os passos da Air America: a agência comprou uma empresa chamada Southern Air Transport passando a operá-la a partir da Florida, [9] e criou uma outra companhia aérea, a Intermountain Aviation, em Marana, no Arizona. [10] Os nomes destas empresas tornar-se-iam sinónimos de guerras secretas em todo o mundo: o nome da Intermountain Aviation ficou ligado ao assassinato de Patrice Lumumba e à ascensão do arquiditador Mobutu Sese Seko no Congo; o nome da Air America era quase sinónimo das vastas e semi-secretas guerras no Laos. E, décadas mais tarde, uma Southern Air Transport reconfigurada tornar-se-ia representativa do apoio ilegal da administração Reagan aos Sandinistas, do escândalo Irão-Contras e dos boatos persistentes de operações de contrabando de droga efectuadas pela CIA. [11]

As companhias de aviação da CIA foram praticamente encerradas na década de 1970. Depois de investigações do Congresso lideradas pelo Senador Frank Church e pelo membro da Câmara dos Representantes Otis Pike terem revelado que a CIA estivera envolvida em inúmeras actividades ilegais, incluindo a espionagem de cidadãos americanos, a tentativa de assassinato de líderes mundiais e o apoio à entrada ilegal nos escritórios do Partido Democrata no Watergate Hotel, a agência recebeu ordens de, entre outras coisas, vender os aviões da Air America um por um e, adicionalmente, de vender toda a Southern Air Transport. [12]

Mas a capacidade aérea da agência não seria anulada durante muito tempo. Em vez de a CIA deter empresas proprietárias, como a Air America, mudou de táctica, conseguindo alcançar o poderio aéreo através do recrutamento de uma rede de companhias de aviação charter independentes que mantinham contratos de exclusividade com a agência. A Aero Contractors, juntamente com outras empresas, como a Summit Aviation, a Corporate Air Services, a St. Lucia Airways e a Tepper Aviaton, são as empresas da geração seguinte, que preencheram o vazio deixado pelo desaparecimento da Air America. [13]



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Para lançar a Aero Contractors, a CIA recorreu a um antigo piloto da Air America chamado Jim Rhyne, uma figura conhecida nos círculos da espionagem e que passara as décadas de 1960 e 1970 a pilotar aviões para a agência, transportando sem alarido homens e materiais de e para o sudeste asiático durante a guerra do Vietname. Rhyne actuara como responsável máximo pelas operações da Air America no Laos, onde perdera uma perna durante um tiroteio. Pelas suas contribuições para o esforço de guerra, os Boinas Verdes tinham concedido a Rhyne uma boina honorária, e a CIA concedera a Rhyne a Intelligence Star e a Intelligence Cross, duas das suas mais importantes medalhas. [14]

Depois de ter conseguido atrair com sucesso Rhyne para iniciar a Aero Contractors em 1979, a CIA deu-lhe instruções para que encontrasse um aeroporto discreto, a não mais de três horas de distância de voo de Washington D. C. e que pudesse servir como base de operações. Segundo um antigo piloto da Aero, que pediu para não ser identificado, após a dissolução da Air America, os responsáveis da CIA disseram a Rhyne que "Precisamos de pôr novamente esta coisa em acção. Procura um local para nós". Na procura desse local, "Jim andava simplesmente de um lado para o outro em busca de aeroportos e instalações, tentando encontrar um local que permitisse apoiar as nossas necessidades", recordou o antigo piloto. Rhyne era do Sul, da Geórgia, e tencionava instalar a base da nova empresa algures abaixo da linha Mason-Dixon. Smithfield cumpria os requisitos estipulados por Rhyne: situava-se no Sul e era razoavelmente próxima de Washington. Além disso, o aeroporto era especialmente atractivo porque não tinha qualquer torre de controlo, o que significava que as operações da companhia não estariam vulneráveis aos olhares de soslaio do pessoal do aeroporto. [15]

E, na verdade, até há pouco tempo, a empresa conduziu os seus negócios com poucas investigações dos cidadãos de Smithfield. "Ninguém investigou muito profundamente", disse-nos o antigo piloto. "É apenas uma pequena cidade adormecida. Pareceu-me extremamente retrógrada".

Grande parte do trabalho que o piloto desenvolveu para a Aero era de rotina: "Noventa e nove por cento dos voos serviram apenas para transportar pessoas de um lado para o outro. Eram efectivamente coisas bastante mundanas... principalmente na Ásia Central e na América do Sul. Dedicávamo-nos aos transportes, ao aspecto logístico", explicou ele. [16]

Mas a história da Aero Contractors, tal como a de outras companhias de aviação controladas pela agência, é uma história de operações confidenciais e guerras secretas. Durante o tempo que passou na companhia, o piloto com quem falámos ajudou a CIA a efectuar ataques surpresa contra narcotraficantes na América Latina, normalmente aos comandos de bimotores com turbopropulsores. Também voou de e para o Tajiquistão, na década de 1990, transportando operacionais da agência encarregados de recuperar mísseis Stinger aos senhores da guerra afegãos. (Depois de a União Soviética se ter retirado do Afeganistão, a CIA tentou recuperar todos os mísseis Stinger, armas de alta tecnologia que são disparadas por um homem com um dispositivo colocado sobre o ombro, e que os EUA tinham distribuído aos mujahedin durante a ocupação soviética.)

Após o 11 de Setembro, a nossa fonte disse-nos que a Aero Contractors duplicou imediatamente de dimensão: "A companhia ligou-se simplesmente a uma espécie de oleoduto de dinheiro. Passaram de treze pilotos para vinte e cinco ou trinta, de um dia para o outro... Transportavam pessoas de e para Guantánamo". [17] Com esta entrada de dinheiro, a Aero expandiu a sua frota de aviões. A companhia assumiu o controlo de vários aviões de carga CASA, fabricados em Espanha e com turbopropulsores, que foram registados numa empresa de fachada denominada Devon Holding na Leasing, Inc. Passou ainda a controlar o Boeing Business Jet 737. A Aero já controlava aquele que se tornaria o Gulfstream V, Expresso da Baía de Guantánamo, antes do 11 de Setembro. [18]

Quando tomou posse do Boeing Business Jet 737, a Aero viu-se forçada a expandir a sua localização para além do Condado de Johnston, porque o seu aeroporto base era demasiado pequeno para receber o 737. A Aero rapidamente iniciou a construção de um hangar com cerca de dois mil metros quadrados no Kinston Jetport, no vizinho Condado de Wayne, onde o Business Jet viria a ficar normalmente instalado. [19]



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As revelações sobre o envolvimento da Aero no programa de entrega extraordinária de prisioneiros atraíram muitas atenções indesejadas para o condado ("levantaram poeira", nas palavras do advogado da Aero), mas seria exagerado afirmar que as revelações sobre a participação da Aero provocaram uma profunda crise espiritual no Condado de Johnston. É difícil saber se o silêncio de Smithfield sobre as actividades da Aero Contractors é resultado do medo, do conformismo ou de uma genuína apatia.

Quando alguns activistas da região do Triângulo da Carolina do Norte começaram a protestar em Smithfield, Allyson e Walt Caison foram dos poucos residentes locais que se juntaram aos manifestantes. Mas a decisão de Allyson de assumir uma atitude activa implicou ramificações mais imediatas no que diz respeito à posição que ocupa na comunidade fortemente unida do que para os manifestantes de fora da cidade. "Parece-me que estou realmente a arriscar mais porque sou agente imobiliária", disse-nos ela. O seu sustento depende da reputação que tiver entre os vizinhos, muitos dos quais trabalham para a Aero. Desde que decidiu assumir uma posição contra a Aero, ela e Walt já estiveram presentes em piquetes no aeroporto e manifestaram a sua raiva a executivos e membros do conselho de administração. Durante uma Peregrinação pela Paz e pela Justiça na Semana Santa, uma marcha que durou vários dias e percorreu vários condados, os manifestantes levaram consigo cruzes de madeira e pararam no aeroporto para rezar pelas vítimas da tortura patrocinada pela CIA, assim como pelas almas dos próprios indivíduos que praticavam os actos de tortura. Allyson foi a única residente no condado a participar. Levava consigo um cartaz em que afirmava, "aero, fora do condado de johnston". [20]

Enquanto saíamos da cidade, ficámos impressionados pela forma estranha como é possível aproximarmo-nos tanto dos voos de entrega de prisioneiros. Smithfield não é seguramente nada difícil de encontrar. E o que aqui acontece não é certamente um grande segredo: conforme descobrimos, estava escondido à vista de todos.

Notas
1- Entrevista com Allyson e Walt Caison, Smithfield, Carolina do Norte, 13 de Abril de 2006.
2- Ibid.
3- Entrevista com Jordan Cooke, 14 de Abril de 2006. Ver também Jordan Cook, "Aero Denies CIA Flight", The Herald (Smithfield – Clayton – Cleveland), 11 de Março de 2005.
4- Scott Shane, Stephen Grey e Margot Williams, "CIA Expanding Terror Battle Under Guise of Charter Flights", New York Times, 31 de Maio de 2005.
5- Ver ficheiros da Administração Federal de Aviação sobre o Boeing Business Jet N4476S, número de série 33010; e ficheiros da FAA para o N4476S, Gulfstream V, número de série 581.
6- Ver John Prados, President's Secret Wars (Chicago: Ivan R. Dee, 1996), pp. 62-64. Ver também William Leary, Perilous Missions (University: University of Alabama Press, 1984).
7- Ver John Prados, President's Secret Wars, pp. 98-106. Ver também Nick Cullather, Secret History: The CIA's Classified Account of its Operations in Guatemala 1952-1954 (Stanford: Stanford University Press, 1999).
8- Prados, p. 231.
9- Ibid., p. 184.
10- Kevin O'Brien, "Interfering with Civil Society: CIA and KGB Covert Political Action during the Cold War", International Journal of Intelligence and Counterintelligence, 1995, Vol. 8, Edição 4.
11- Ver, por exemplo, Peter Dale Scott e Jonathan Marshall, Cocaine Politics (Berkeley: University of California Press, 1998), p. 18.
12- Prados, pp. 324-325.
13- Ver Prados, pp. 374-375. Ver também Lawrence E. Walsh Firewall (Nova Iorque: Norton, 1997), pp. 74-75. Para a Tepper Aviation, ver Ted Gup, The Book of Honor (Nova Iorque: Doubleday, 2000), p. 330.
14- Para uma breve história sobre a carreira de Jim Rhyne na Air America, ver Ted Gup, The Book of Honor, pp. 245-246.
15- Entrevista com antigo piloto da Aero Contractors.
16- Ibid.
17-- Ibid.
18- Registos na FAA e de segurança de voo para o N168D, N4476S e outros aparelhos.
19- Sam Atkins, "Global TransPark Board Approves Operating Budget", Goldsboro News-Argus, 23 de Junho de 2004.
20- Ibid. Ver também Monica Chen, "Protest Ends in Arrests", The Herald (Smithfield – Clayton – Cleveland), 22 de Novembro de 2005.

[*] Autores de "A verdadeira história dos voos da CIA – Os táxis da tortura" , Campo das Letras, Porto, 2007, 184 pgs., ISBN: 978-989-625-150-5. O presente texto é o Capítulo 2 do livro.