Transcrevemos o texto de Beja Santos, conhecido estudioso da sociedade de consumo, sobre a influência de Braudillard no seu percurso pessoal mas também no olhar que lançámos hoje sobre o consumismo e os media.
A recente morte de Baudrillard impõe um texto mais analítico que contamos apresentar brevemente já que considerámos tratar-se de uma figura importante no estudo do sistema cultural contemporãneo, independentemente de perfilharmos ou não muitas suas teses. O facto das suas ideias serem estimulantes bastaria já toda a nossa atenção.
Por agora, ficamos com o texto de Beja Santos retirado do Notícias da Amadora.
A recente morte de Baudrillard impõe um texto mais analítico que contamos apresentar brevemente já que considerámos tratar-se de uma figura importante no estudo do sistema cultural contemporãneo, independentemente de perfilharmos ou não muitas suas teses. O facto das suas ideias serem estimulantes bastaria já toda a nossa atenção.
Por agora, ficamos com o texto de Beja Santos retirado do Notícias da Amadora.
Saudades de mestre Jean Baudrillard
Foi graças a Jean Baudrillard (1929-2007) e às suas obras dos anos 60 e 70 que o estudo do consumo se tornou tão estimulante na minha vida. Conceitos como o sistema dos objectos, o consumo como modo activo de relação, o objecto signo, a associação entre a cultura de massas, o espectáculo e a sedução tornaram-se-me óbvios, compreensíveis para o olhar a contemporaneidade e o peso simbólico que prevalece no nosso quotidiano preenchido com múltiplas solicitações.
Baudrillard foi um pensador inclassificável, já que investigou em domínios como a Sociologia, a Filosofia, Antropologia, Estética, Comunicação e Fotografia. Deu visibilidade absoluta aos estudos sobre a sociedade de consumo e à interactividade das suas parcelas. Nunca aceitou ter sido o inspirador da trilogia Matrix, recusou o rótulo de pós-moderno, denunciou a banalidade na arte e a rendição dos artistas aos imperativos da realidade tecnológica. Depois do 11 de Setembro, nunca deixou de alertar para este acto fundador do novo século em torno do admirável novo mundo do terrorismo.
Conheci-o e estudei-o deslumbrado em “O Sistema dos Objectos”, obra publicada ainda nos anos 60. O que ele aí escreve é já leitura clássica: “O consumo é o modo activo da relação, o modo de actividade sistemática e uma resposta global sobre a qual se funde o nosso sistema cultural. Consumo é a organização das substâncias, imagens e mensagens com matéria significante. A partir de um signo tece-se uma classificação e hierarquização que promove diferenças socioculturais entre consumidores. À semelhança de um fauna ou de uma flora, a imensa vegetação de objectos é classificável”. E Baudrillard dava exemplos através do imobiliário, distinguindo os objectos da aristocracia ou da burguesia dos rurais, recordando o significado da cor na cultura automóvel, a brancura da cozinha ou da casa de banho (o branco é o domínio dos sectores orgânicos), os fundamentos do objecto antigo, o espírito da colecção, o facto do estatuto do objecto estar dominado pela oposição modelo/série. O que ele escreveu sobre publicidade continua a ser relevante e incontornável: “A publicidade é discurso sobre o objecto e ela própria é o objecto. É consumível como objecto cultural. Assenta-lhe todo o processo de análise ao nível dos objectos: sistema de personalização, de diferenciação forçada e de proliferação inessencial, de degradação da ordem técnica numa ordem de progressão e consumo, de disfunções e de funções secundárias... A persuasão publicitária não é a lógica do enunciado e da prova mas a lógica da fábula: sem se crer no produto, crê-se no que a publicidade quer nos fazer crer. É a lógica do Pai Natal”.
A “Sociedade de Consumo” é de 1970 e ele escreve: “O consumo, na qualidade de novo mito tribal, transformou-se na moral do mundo contemporâneo.” É nesta obra que Baudrillard começa a analisar a realidade e a hiper-realidade. O consumidor move-se por indiferença e curiosidade, incapaz de apreender a multiplicação dos objectos, disposto a tirar partido dos utensílios simplificadores, fazendo shopping (o centro comercial é o local de síntese das actividades dos consumidores, onde se misturam trabalho, lazer e cultura). Ele refere apropriadamente a industrialização do espírito, noção criada por Edgar Morin. A partir de agora a cultura de massas é o espectáculo permanente e também a sociedade se verga ao desperdício já que a sociedade de consumo precisa dos seus objectos para existir e sente sobretudo necessidade de os destruir.O leitor interessado em conhecer o pensamento de Jean Baudrillard tem sobretudo obras em três editoras à sua disposição: Edições 70, Antropos e Campo das Letras. Para quem se quer iniciar e conhecer a amplitude da sua aventura intelectual recomenda-se a síntese “Palavras de Ordem” (Campo das Letras, 2001). É aqui que alguns conceitos fazem avultar a poderosa cultura deste intelectual sincrético. Ele escreve a propósito do objecto: “Nos anos 60, a passagem do primado da produção ao do consumo colocou os objectos em primeiro plano. Porém, o que verdadeiramente me interessou não foi tanto o objecto fabricado em si, mas o que os objectos diziam uns aos outros, o sistema de sinais e a sintaxe que elaboravam”. Quanto a valor: “Ao lado do valor mercantil existem os valores morais ou estéticos que funcionam em termos de oposição regulada entre o bem e o mal, o belo e o feio. O estudo do valor é complexo: quanto mais o valor mercantil é apreensível, mais o valor do signo é fugidio”. E sobre o obsceno: “Na obscenidade, os corpos, os órgãos sexuais, o acto sexual são de imediato dados a ver, ou seja, a devorar-se, porque são absorvidos e reabsorvidos ao mesmo tempo. No nosso mundo de imagem e espectáculo, a palavra promiscuidade existe imediatamente, sem distanciamento e sem encanto”. Ou quanto à sedução: “O universo da sedução é o que se inscreve radicalmente contra o da produção. Não se trata já de fazer surgir as coisas, fabricá-las, produzi-las num mundo do valor, mas de as seduzir, ou seja, desviá-la desse valor, da sua identidade e da sua realidade, para as entregar ao jogo das aparências”.
Baudrillard foi em todos os momentos um pioneiro, ao introduzir a reflexão sobre objectos e a sua ordenação, a economia do signo, a complexidade cultural da sociedade de consumo, a sociedade de simulacros e simulação o próprio conceito de troca simbólica de onde se partiu para a verdade dos factos de que hoje vivemos num mundo onde o simbólico é tão importante no consumo como o funcional. Ficámos sem Baudrillard mas o seu pensamento já está cristalizado no olhar profundo com que olhou para nós e para o nosso tempo onde as coisas não acontecem se não forem vistas pelos media.
Beja Santos