Não se deve confundir a necessidade (mobilidade) com os meios para satisfazê-la (transporte ou trânsito*). O conceito do lema "transporte gratuito para todos" é obter acesso igual à mobilidade, mas também tentar introduzir o debate para reduzir o impacto negativo produzido pelos transportes.
As consequências do transporte automóvel saltam à vista, nós conhecemo-las muito bem. Sem dúvida, atrás disto se ocultam problemas de alcance mundial e que estão relacionados com os estragos originados pelo capitalismo, e em especial pela nossa forma de abordar a energia e a velocidade. A gratuidade, longe de ser a solução milagrosa para todos nossos problemas, é uma condição insustentável para os transportes equitativos e limpos. Esta deve ir acompanhada de uma melhoria significativa da qualidade nos transportes colectivos.
Transportes, ferramentas do apartheid social
O urbanismo cumpre uma função de crucial importância com respeito ao crescimento de nossa necessidade de mobilidade. Os transportes pagos permitem assegurar uma característica urbana: a estratificação das cidades por populações relativamente homogéneas. Proibir mediante uma repressão cada vez maior o acesso ao transporte é justificar a criação de guetos no território. Solucionar o problema da pobreza tornando-a menos visível, deslocando os pobres dos bairros chamados "sensíveis" é um velho projecto liberal carente de justiça social. O discurso sobre a segurança actual aponta para que nós acreditemos que se está desenvolvendo violência gratuitamente. Quando o inspector faz descer do autocarro ou do comboio uma pessoa não se fala de violência. Esta violência social é invisível porque está integrada no capitalismo (sem dinheiro, não têm direito). A falta de resposta ofensiva do corpo social, este apartheid social avança.
Reduzir a velocidade do transporte dos poderosos
Os transportes questionam a equidade frente à mobilidade. A velocidade sem controle é cara. Cada vez é menos factível para a maioria. Todo aumento de velocidade de um veículo incrementa o custo de propulsão, os preços das vias de circulação necessárias e a necessidade de espaço que o seu movimento devora. Quando os viajantes mais velozes superam o limite de consumo de energia, cria-se a nível mundial uma estrutura de classe de capitalistas da velocidade. Limitar a velocidade dos transportes mais poderosos é defender a equidade. Sem dúvida, que limitar a velocidade não basta para reduzir as desigualdades: as diferenciações no seio da sociedade podem dar-se no nível de comodidade nos meios de transporte. Por exemplo, a gratuidade é uma condição indispensável e complementaria para reduzir a velocidade para ter igual acesso a mobilidade.
Desintoxicação ou metabolismo prolongado?
Vai ser necessário eleger entre desintoxicação (libertar-se de nossa dependência do consumo excessivo de energia) e a busca metabólica (conservar o nosso nível de consumo e encontrar energias limpas). Não se trata de substituir simplesmente as nossas actuais fontes de energia por outras mais limpas, senão mudar o regime energético. É conveniente recuperar a consciência sobre as vantagens aparentes ao uso da força muscular. Para mudar o regime energético, esta sociedade deve encontrar os meios para limitar o consumo dos cidadãos mais poderosos e de forma paralela, o fantasma daqueles que não o são. No âmbito dos transportes, o estabelecimento de relações sociais fundadas na participação igualitária só é possível se se limitar a velocidade. De forma caricatural, entre os seres livres, as relações sociais vão à velocidade de uma bicicleta, não mais rápido!
Visando uma mobilidade lenta?
O transporte automotor se assegura do monopólio dos deslocamentos e dessa forma impede que as pessoas utilizem a sua energia metabólica. Este monopólio observa-se principalmente nas deslocações dentro dos serviços, como cinemas, hospitais ou grandes superfícies nas periferias das cidades, fazendo mais difícil o seu acesso a uma parte da população, salvo que recorra a um transporte motorizado. Ao brindar infra-estruturas para ir longe e rápido, os transportes converteram em inoperante a mobilidade natural. Uma política de transportes num meio urbano não pode ser unimodal: o metro, o comboio ou o autocarro não seriam a única solução. É necessário que se combine com outros: a bicicleta ou caminhar. O pedestre e o ciclista devem voltar a encontrar um espaço na cidade...
RATP [Rede pela Abolição dos Transportes Pagos - Paris, França]
(*): É necessário diferenciar transporte de trânsito. A circulação de bens e de pessoas pode ser associada a outras categorias segundo a fonte de energia utilizada: o trânsito que utiliza energia metabólica do ser humano (caminhar, bicicleta) e o transporte que utiliza os motores (seja sua fonte animal, nuclear ou fóssil). Se a função de ambas as categorias é a mesma (transportar pessoas e objectos) suas consequências ambientais e sociais não serão iguais.
Colaborou na tradução Juvei