Tradução para português de um texto introdutório ao nº 11 da revista Réfractions dedicado ao tema da criatividade e da poiêsis, sob o título de
Criatividade, inventividade, poiêsis
«O Homem é um trabalhador, isto é, criador e poeta»
(L´homme est un travailleur, c’est-à-dire créateur et poète)
Proudhon
«A poesia deve ser feita por todos»
(La poesie doit être faite par tous)
Lautréamont
O nosso propósito não é fazer uma crítica da arte e dos artistas, até porque outros, antes de nós, já o fizeram (os dadaístas, surrealistas, situacionistas,etc).
Procuramos simplesmente re-colocar o «fazer» dos artistas no campo geral da criatividade e da inventividade sociais, enfim, no «fazer» ( a poiêsis) que é própria de cada indivíduo.
Afirmamos que todo o ser humano traz em si um pensamento inventivo, um imaginário, um potencial de criatividade, que é variável conforme as pessoas, mas que é aniquilado, esmagado, esterilizado quando se constroem estatutos particulares de fechamento, isto é, quando se encerra um inventor numa qualquer especialidade.
O campo social, para nós, deverá ser o lugar por excelência da actividade do imaginário. De tal modo que a nossa vida possa inventar-se a si própria no dia-a-dia, por ocasião de um qualquer encontro, mesmo quando fazemos amor; e que ela pode elevar-se à altura de uma obra de arte por um trabalho sobre si. Diremos com Fernand Pelloutier que pretendemos ser «amantes apaixonados da própria cultura».
A nossa crítica dirige-se à separação, similarmente à fragmentação das tarefas do trabalho em cadeia, e isso em relação a qualquer obra, qualquer que ela seja.
Da mesma maneira que criticamos o trabalho quando é assalariado, assim também criticamos a arte quando ela é mercantil, para podermos privilegiar a actividade gratuita e generosa. Dir-nos-ão que «é preciso viver». Sim, sem dúvida, mas não de qualquer maneira. Será que viver é embrutecer-se num trabalho imbecil em troca da integração medíocre e precária na sociedade do capital? Nem sequer o ter sucesso pode satisfazer a nossa razão de viver.
Viver da sua arte, da sua caneta, das suas traduções ou do seu saber em tal ou tal actividade pode-se discutir.
A profissão de carrasco, mesmo quando este se mostrar hábil, não é odiosa? E quanto ao cientista, quando ele participa em obras de destruição? E que dizer do ofício de político, profissional do poder e das falsas promessas?
Ao invés, é dificilmente contestável colocar em causa a necessidade da prática profissional do médico, do bombeiro, do arquitecto; e é certamente impossível chegar à unanimidade quanto ao valor de uma obra de arte. E quanto à utilidade social dela, o que dizer?
O operário, e os artesãos, serão mais ou menos competentes e eficazes; mas apreciar uma produção artística releva da subjectividade de cada um e da sua cultura.
Importa, pois, não limitar a criatividade à arte nem opor a arte à vida quotidiana, ao trabalho e a toda actividade social; isso seria aceitar a separação, se bem que, na sociedade actual, o trabalho é essencialmente alienante e não favorece em nada a criatividade.
Esta separação, que é possível verificar, não é senão uma consequência do estado actual da sociedade hierarquizada e injusta como é a nossa, e que queremos revolucionar, mas que o capitalismo sabe gerir melhor que ninguém, contrariando as nossas lutas. Apesar da criatividade e a inventividade estarem submersas em todo o lado e prestes a explodir na cara do capital e do Estado, estes estão sempre prontos a desviá-las, pervertê-las e a canalizá-las em seu proveito. O operário, do nível mais baixo da escala social, que saiba economizar a sua força e que saiba inventar uma melhor maneira de fazer, verá rapidamente o seu gesto recuperado pelo capital.
Aliás, a separação reenvia-nos ao individualismo quando cada um fica separado dos outros ( logo, vulnerável a toda a manipulação do poder).
Cercado, paralisado, asfixiado, desapropriado ou somente anestesiado, o imaginário, se não estiver completamente morto, pode sempre renascer e libertar-se a todo o momento. A explosão social surpreendeu já por várias vezes os seres mais prevenidos e cautos.
No campo social invadido pelo desespero e enfado emerge de forma abrupta e imprevista movimentos de revolta que ninguém esperava; beneficiando de algum vazio efémero do Estado, de uma crise que paralisa os nós do poder, de uma brecha aberta, uma capacidade organizativa levanta-se e mostra todas as suas potencialidades. A imaginação toma então o poder, segundo a conhecida expressão de Maio 68.
O imaginário pode tomar os caminhos mais inesperados. Assim acontece com o frenesim criativo os artistas da arte dita «bruta» que se lançam de corpo perdido nas realizações mais estranhas, ou quando, nos hospitais psiquiátricos, os doente se esquecem de tomar os medicamentos e começam a desenvolver actividades «artísticas» que não estão limitadas ao ganha pão do dia-a-dia.
O projecto anarquista de uma sociedade traz em si a recusa dessa separação: cabe a nós abolir o que esteriliza o pensamento e apouca os homens e as mulheres.
Se é mais valorizado ser o orador que escutamos do que aquele que vai limpar a sala; e ainda que o ego do artista se satisfaça com os aplausos e as encomendas, o anarquista, porque traz em si um novo mundo, não pode pactuar com esta repartição de papéis, como se fosse para a eternidade ( Conferir a tripartição de Dumézil).
O que queremos pois fortalecer é a inventividade, a criatividade, o «fazer», a obra, a poiêsis, que se manifestam não só naquilo que se convencionou chamar artes plásticas, como a pintura, escultura, música, canto e teatro, mas em todos os actos da vida quotidiana, mesmo no nível produtivo ( na actividade humana que alguns identificam com o trabalho) e até ao nível da sociabilidade do ser humano. Também aí se pode manifestar a inventividade.
São designados de artistas todos aqueles que, no tempo presente, conseguem viver da sua arte. Todos os outros são lançados para a categoria de «malditos».
A utilidade social do artista não está aqui em questão. A arte não deve «servir» nenhuma ideologia ou poder: se assim fosse estaria a negar a sua liberdade absoluta. Porque a arte é actividade libertária por excelência; é uma pura procura, que aparentemente parece inútil; é uma janela aberta sobre o desconhecido, uma aventura, um descobrimento…
Os artistas, outrora anónimos, confundiam-se com os artesãos, mas acabaram, por ganhar autonomia, o que cavou um fosso entre eles e o resto da sociedade. A especialização instala-se aqui, tal como no resto da sociedade. Logo a seguir a sua produção passa a ser reconhecida como mercadoria mais do que um simples jogo gratuito e expressão do prazer do indivíduo…
Criticamos pois as noções de arte e de artista na medida em que representam actividades que separam e que trazem nelas aquilo que criticamos ao capitalismo, o que leva à valorização exagerada dos criadores, e subsequente desvalorização para os que observam, que ouvem e lêem, em suma, os que consomem as produções «artísticas» ou «literárias» e que se julgam incapazes, impotentes, ou então, pouco hábeis, para se expressarem intelectual e plasticamente.
Não se trata, no entanto, de preconizar um igualitarismo primário de qualidades. Não contestámos que existam indivíduos mais dotados que outros para esta ou aquela actividade. Trata-se sim de colocar as coisas no seu lugar.
O fenómeno da separação não é exclusivo do artista: também o cirurgião se vai tornando no grande professor, e o cozinheiro, do mesmo modo, converte-se no «mestre de cozinha» com direito a estatuto financeiro. E o mesmo acontece com o escritor, apoiado pela sua editora, apostada em transformá-lo em best-seller.
Porque é que temos de reduzir a inventividade à arte? As ideias de criatividade e de inventividade permitem-nos escapar muito melhor às noções de estetismo, de belo, de feio para exprimir o que nos surpreende e nos emociona.
A própria ciência, quantas vezes posta ao serviço da destruição, não dispensa estas qualidades da imaginação e da inventividade.
O trabalho, tal como o entendemos, não está obrigatoriamente associado à exploração de quem produz. O trabalho quando se apresenta naquilo que ele tem de desagradável passa a ser, certamente, uma necessidade a partilhar por todos. Trata-se, pois, não tanto de criticar os artistas consagrados ou em vias de o ser, que celebrar, valorizar, e identificar estas qualidades nos outros e que os preconceitos sociais normalmente negligenciam. No fundo, trata-se de explorar a efervescência criativa e, no final, inventar uma vida a vir.
Não nos interessa sequer definir ou delimitar o que se deve entender por essas duas palavra - inventividade e criatividade – que não deixam de ser fundamentalmente actividades humanas, sem que com isso queiramos levantar uma barreira inultrapassável entre o nosso mundo e o mundo animal.
O que gostaríamos realmente de dizer eram coisas como: «belo como formar um sindicato! Bela como uma roda de bicicleta” Bela como uma assembleia geral de um conselho operário ou de um comité de autogestão! Belo como um campo lavrado! Belo como foi a Comuna de Paris», etc, etc.
A nossa ambição tem por fim nada menos
que re-encantar o mundo
recusando reduzir ao estado de mercadoria
os produtos da inventividade
e da criatividade humanas.
Queremos exaltar uma poesia sem limites
Mas quem dirá o que asfixia a criatividade? Quem é que a libertará? Quem é que a favorece mais, o indivíduo ou a sociedade? Uma obra é conseguida quando dá vontade ao outro de inventar na sua própria esfera de acção? E a liberdade criativa faz reviver uma outra liberdade no espírito de quem a observa?
Quanto ao que favorece a criação apontamos duas atitudes que, à primeira vista parecem inconciliáveis, pelo menos, ao mesmo tempo.
Por um lado, o trabalho liberto, o conhecimento e a cultura, a aquisição do saber-fazer com o tempo, o jeito da mão ( a facilidade de fazer), etc.
Por outro, a inactividade e o tempo livre quando eles ocupam lugar no inconsciente que encontra a solução que o consciente, demasiadamente ocupado, não consegue encontrar.
Parece importante deixar certas obras incompletas, abertas, com um vazio, um espaço que convoque o inesperado a fim nascer o encontro criativo.
E se, depois desta reflexão, quisermos ainda falar de «obra de arte» é porque consideramos que ele pode ser um estímulo à liberdade de empreender uma outra coisa.
(Texto de André Bernard, e Philippe Garnier, responsáveis do número temático da revista Réfractions, nº11, dedicado à «Créativité, inventivité, poiêsis», e que foi publicado no nº 1315, 10/4/2003, do Le Monde Libertaire )