3.8.05

Chegamos ao último estádio da selvajaria ( editorial de Camus em 8/8/45)



Nos dias seguintes ao lançamento da bomba atómica sobre Hiroxima, e no meio do coro e estupefacção dos bobos habituais da corte, só uma voz se levantou contra a carnificina em que se tinha transformado o mundo moderno. Essa voz foi Albert Camus, que escreveu, pelo seu próprio punho, logo o editorial do dia 8 de Agosto de 1945 do jornal Combat, para onde trabalha e escrevia.
É esse texto que reproduzimos em tradução para português
:

O último estádio da selvajaria

O mundo é o que é, isto é, pouca coisa. É o que se conclui desde ontem depois da formidável concertação orquestrada pela rádio, jornais e agências de informação a propósito da bomba atómica. Ficamos a saber, no meio de comentários entusiastas, que qualquer cidade pode ser completamente arrasada por uma bomba do tamanho de uma bola de futebol. Os jornais americanos, ingleses e franceses não hesitam em dissertar sobre o futuro, o passado, os inventores, os custos, a vocação pacífica e os efeitos para as guerras, as consequências políticas e até o carácter independente da bomba atómica. Nós preferimos resumir tudo isso numa só frase: a civilização mecânica acaba de alcançar o último estádio da selvajaria. Iremos ter de escolher, num futuro mais ou menos próximo, entre o suicídio colectivo ou a utilização inteligente das conquistas científicas.
É-nos permitido pensar que há qualquer coisa de indecente quando se celebra uma descoberta que está ao serviço da mais formidável força de destruição que o homem alguma vez deu mostras. Num mundo entregue à mais destruidora violência, incapaz de qualquer controle, indiferente à justiça e à simples felicidade dos homens, ninguém se espanta, salvo por idealismo impenitente, da ciência se consagrar ao assassínio colectivo.
Estas descobertas devem registadas, comentadas tal como elas são, anunciadas ao mundo para que o homem tenha uma justa ideia do seu destino. Mas acompanhar estas terríveis revelações por uma literatura pitoresca ou humorística é, simplesmente, insuportável.
Já não se respirava lá muito bem neste mundo torturado. Temos agora uma nova angústia, que nos é proposta, e que tudo indica ser definitiva. Oferece-se à humanidade, sem dúvida, a sua última oportunidade. E isso bem pode ser o pretexto para uma edição especial. Mas poderia antes servir de motivo para alguma reflexão e muito silêncio.
Existem, de resto, outras razões para acolher com reservas a antecipação do romance que os jornais nos propõem. Quando vemos o redactor diplomático da Agência Reuter a anunciar que ficam caducos os tratados ou ultrapassadas as decisões que foram adoptadas em Postdam, salientar que é indiferente que os russos estejam em Koenigsberg ou a Turquia nas Dardanellas, não podemos deixar de desconfiar deste belo concerto de boas intenções, tão estranhas elas se mostram face à imparcialidade da ciência.
Entendamo-nos. Se os japoneses capitularem depois da destruição de Hiroxima por efeito da intimidação, não deixaremos de nos regozijar. Mas perante uma notícia tão grave como essa, recusamos a tirar outra conclusão que não seja a necessidade de lutar energicamente a favor de uma verdadeira sociedade internacional em que as grandes potências não tenham direitos superiores aos das pequenas e médias nações, e em que a guerra, calamidade tornada definitiva por efeito da inteligência humana, não dependa mais dos apetites ou das doutrinas de um ou de outro Estado.
Face às perspectivas terríveis que se abrem à humanidade apercebemo-nos melhor como a paz é o único combate que vale a pena travar. Não se trata de um pedido, mas de uma ordem que os povos devem dirigir aos seus governos, a ordem de escolher definitivamente entre o inferno e a razão.
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Albert Camus, em editorial ( sem título) publicado no jornal Combat de 8 de Agosto de 1945.