1.4.05

As novas tendências do desespero



Tal como a diatribe é mais literária que o panegírico, assim também o desespero é uma fonte inesgotável de inspiração para o texto que não seja uma simples prosa de escriba mais ou menos inspirado. Acontece que o tempo passa e marca como um ferrete o desespero humano. Ignorá-lo é render-se ao platonismo essencialista dos cultores da metafísica em busca de uma mais que duvidosa quinta-essência. Do outro lado encontramos os determinismos de matizes várias que tudo tentam reduzir a equações causais e estatísticas sem valorar em devida conta o vitalismo que (des)organiza toda a matéria e alimenta o complexo de processos por que passa a vida errante dos elementos.
O desespero é irredutível e insolúvel. Em escalas diferentes, é certo, mas sempre presente no infra como no sobre-humano, na história como na actualidade, em mim tanto como no outro. O que distingue o homem das outras espécies é, segundo Edgar Morin, a consciência da morte, que alimenta, aliás, os seus medos e fantasmas, e dos quais procura esconjurar por múltiplas maneiras (Arte, Religião, etc). Poder-se-á dizer que historicamente a Humanidade atravessou diferentes formas de medo: do pânico (que exigia o correspondente heroísmo), num primeiro momento, evoluiu para a ansiedade e a angústia ( face à redescoberta da solidão humana após a morte de Deus) até desaguar na inquietação actual face às forças tecnológicas que o próprio homem pôs em marcha, não obstante toda a programação e integração dos riscos. No fundo, o medo não procede da vida instintiva e animal, mas é antes um produto do imaginário, uma ideia da morte que cada cultura e cada indivíduo transporta em si mesmo.
No mundo antigo era impossível escapar ao desespero de origem teológica. O quotidiano estava saturado do elemento divino. O próprio imaginário não prescindia também dessa copiosa fonte. As sociedades organizavam-se em função do transcendental e os seus membros viviam os seus desesperos em função dessa misteriosa força que detinha esse estranho poder de dar como retirar a vida. O poder opressivo do deus castigador lançava definitivamente o desespero para os braços escatalógicos da religião. O taoísmo representou talvez uma das poucas excepções a essa tendência, e a Tragédia clássica uma das suas mais belas ilustrações.
A civilização medieval mais não fez que reforçar o desespero humano ao submergir o homem no mundo insondável da Cidade de Deus. . O Carpe Diem rabelaisiano era precisamente uma tentativa de fugir a esse apocalipse dantesco. E não tardou muito a que se tenha acrescentado uma nota de crueldade desumana à herança antiga ao entregar a tutela das penas divinas à Instituição clerical que não hesitou em montar, ao seu serviço, toda uma fria parafernália inquisitorial. As heresias assim como as utopias milenaristas e literárias eram assomos de um desespero incontido que pagavam caro a sua recusa.
O individualismo romântico mudou radicalmente o sentido faustico da existência humana. Esta passou a traduzir-se numa multiplicidade de possibilidades, numa liberdade imanente que escondia uma real angústia face ao vazio. O desespero traduzia este desencantamento do mundo e a consciência de estarmos condenados à solidão. As várias cores e matizes em que se expôs não alteram em nada aquele registo.
A lucidez do pessimismo reaccionário de Schopenhauer ( que exerceu tanta influência em autores tão variados, desde Strindberg, até Beckett, passando por Wagner, Thomas Mann, Kafka, Pirandello, Borges) leva-o a confessar que « a vida oscila, como um pêndulo de relógio, entre o sofrimento e o aborrecimento» e não hesita mesmo a escrever que « a vida de cada um de nós, no seu conjunto, é uma verdadeira tragédia». Baudelaire fala, por sua vez, de “une désespérance voisine de l’anéantissement”, e os filósofos da suspeita ( Marx, Nietsche, Freud) mais não fazem que corroborar a profundeza da dúvida e da incerteza. E d aí em diante há que não nos iludirmos: quanto mais vemos, mais cegos ficamos.
Montherlant ao dar-se conta que estava em vias de cegar, suicida-se («Je deviens aveigle, je me tue»), e com ele uma longa lista de suicidados literários impregna a modernidade social, quais epígonos da morte e do sofrimento desesperado de que é feita a barbárie civilizacional. Mas o caso de Pavese é ainda mais flagrante: a ascenção do fascismo italiano bloqueia totalmente a existência e faz da morte o seu projecto de vida. Primo Levi nunca mais recuperou da sua experiência concentracionária. E Mishima prefere já- e sintomaticamente - a morte como espectáculo.
Apesar das fenomenologias, das hermenêuticas, das retóricas, das teorias de comunicação, a verdade é que um tal paradoxo da cegueira num mundo mediatizado não mais largou a contemporaneidade massificada em que passamos a viver. Acontece que neste planeta de símios a hipersocialização a que a massa está submetida gera contraditoriamente cada vez mais exclusão social! O desespero ganha outros cambiantes. A atomização é acompanhada por um controle social em larga escala, panóptico. A unidimensionalidade de Marcuse e a aldeia global de McLuhan são porventura hoje as metáforas-mundo mais fortes. Baudrillard refere-se a um universo em que há cada vez mais informação e menos significado. E não faltam tentativas para explicar o desespero do homem actual a cargos de ensaístas cotados na bolsa inflacionada da academia . Submergida por uma enxurrada de sinais exteriores e de simbolismos imagéticos , que não domina nem consegue inteiramente decifrar , a vontade humana desespera.
Escritores tão diversos como William S. Burroughs, Don Delillo, Norman Mailer, Pynchon, etc – só para citar os que nasceram nas entranhas do Império Americano - não se cansam de povoar as suas obras de personagens assustadas com o modo como as grandes organizações – não identificáveis, mas com poderes extraordinários e objectivos inconfessáveis - estariam a controlar as suas vidas, influenciando as suas acções e construindo os seus desejos. A teoria da conspiração, tão poderosa na não menos poderosa América do século XX e XXI, e que tem servido de álibi para todos os acontecimentos da vida americana, representa bem o estranho ambiente de desespero em que o massificado homem comum vive no mundo pós-industrial das sociedades do capitalismo avançado. Justamente por as teorias de conspiração não poderem ser confirmadas é que a. paranóia conspirativa cumpre integralmente a sua função. E a sua proliferação e aceitação é tanto mais convincente quanto coincide justamente com o quase, ou mesmo total, desaparecimento dos grandes esquemas explicativos que, apesar de se digladiarem, orientavam até agora a História
. A teoria da conspiração, a paranóia e a ansiedade colectiva das massas ganham hoje novos desenvolvimentos com as chamadas tecnociências, o terrorismo, o fundamentalismo, as nanotecnologias, as mudanças climáticas, a bomba demográfica e o esgotamento de recursos, tudo isto numa Natureza repasteurizada e urbanizada. As actuais sociedades do risco e a multiplicação dos seus riscos ( riscos alimentares, tecnológicos,e profissionais,...) - expressão tão cara aos sociólogos de serviço que desempenham hoje impecavelmente o histriónico papel de Pangloss - obrigam à introdução de princípios como o da precaução e gestão controlada dos riscos, sem, no entanto, minorar nem eliminar a consciência colectiva do medo iminente. Ao mesmo tempo ensaia-se a fabricação do sobre-humano, através da engenharia genética e respectiva parentela, e que levou o filósofo alemão Peter Sloterdijk, num texto polémico, a falar a este propósito da «ganadaria genética» dos humanos, o anarquista primitivista John Zerzan a lançar violentas críticas ao american way of life que se pretende globalizar, e o lobby psy a comprazer-se ( e, já agora, a enriquecer) com toda este mal-estar, a que não falta até um catálogo de apocalipses possíveis, produto de rendosos estudos de futurologia prospectiva.
A literatura não faltou à chamada e a ficção científica acaba por aproveitar o filão. O movimento cyberpunk, ilustra abundantemente alguns dos aspectos inquietantes dos desenvolvimentos tecnológicos e esboça os traços dos futuros cyberbodys.
Mas parece-nos ser noutro lado que o desespero ainda se aloja e se refugia. É no indíviduo cerceado, televigiado, manipulado, perdido , representado na figura emblemático do homem sem qualidades. Naquele indivíduo que – cúmulo irreal da história - para ser aceite socialmente, aceita passivamente ser excluído do mundo dos vivos. Metaforicamente, bem entendido.

Autor – AAS

Texto publicado no nº 1 da revista a Voz de Deus, editada pelas Edições Mortas