(…) Penso, com efeito, que a televisão ( …) faz correr um perigo muito grande às diferentes esferas da produção cultural, arte, literatura, ciência, filosofia, direito (…) e faz correr um não menor risco à vida política e á democracia.
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O discurso articulado, que foi pouco a pouco excluído dos estúdios de televisão(…) continua, com efeito, a ser uma das formas mais seguras de resistência à manipulação e da afirmação da liberdade de pensamento.
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O acesso à televisão tem por contrapartida uma censura formidável, uma perda de autonomia ligada, entre outras coisas, ao facto de o tema ser imposto, de as condições de comunicação serem impostas (…) em última instância, poderá dizer-se que é a coacção económica que pesa sobre a televisão. Dito isto, não podemos contentar-nos com dizer que aquilo que se passa na televisão é determinado pelas pessoas que a possuem, pelos anunciantes que pagam a publicidade, pelo Estado que paga subsídios(…) É importante sabermos que a NBC é propriedade da General Electric,…que a CBS é propriedade da Westinghouse, que a ABC é propriedade da Disney, que a TF1 é propriedade da Bouygues…
A televisão é um formidável instrumento de conservação da ordem simbólica (…), quanto melhor compreendemos como funciona melhor compreendemos também que as pessoas que nele participam são tão manipuladas como manipuladoras. Muitas vezes, os que manipulam fazem-no tanto melhor quanto mais manipulados são e quanto mais inconscientes estão desse facto…
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A televisão tem uma espécie de monopólio de facto sobre a formação dos cérebros de uma parte muito importante da população
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E, quem conta um conto acrescenta um ponto, a televisão, que pretende ser um instrumento de registo, torna-se instrumento de criação de realidade. Encaminhamo-nos cada vez mais para universos em que o mundo social é descrito-prescrito pela televisão, em que esta se transforma no árbitro do acesso à existência social e política
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Uma das paradas das lutas políticas, à escala das trocas quotidianas ou à escala global, é a capacidade de impor um princípio de visão do mundo, uns óculos que façam com que as pessoas vejam o mundo segundo certas divisões (os jovens e os velhos, os estrangeiros e os Franceses)…
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As escolhas que se operam na televisão são de certo modo escolhas sem sujeito(…) o facto dos jornalistas que, de resto, têm muitas propriedades comuns, de condição, mas também de formação e de origem, se lerem uns aos outros, se verem uns aos outros, se encontrarem constantemente uns com os outros em debates onde aparecem sempre os mesmos, tem o efeito de encerramento e, não devemos hesitar em dizê-lo, de censura tão eficazes – mais eficazes até porque o seu princípio é mais invisível – como os de uma burocracia central, uma intervenção política expressa.
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Se nos perguntarmos, pergunta que poderá parecer um tanto ingénua, como são informadas as pessoas que estão encarregadas de nos informar, veremos que, de um modo geral, são informadas por outros informadores…
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Não podemos representar o meio como se fosse homogéneo: há a arraia-miúda, jovens, subversivos, gente que parte a louça, lutando desesperadamente por introduzir pequenas diferenças na imensa sopa homogénea imposta pelo círculo (vicioso) da informação que circula de maneira circular entre as pessoas que têm em comum – não o devemos esquecer –a mesma submissão às coacções dos níveis de audiência, enquanto os quadros não passam, pelo seu lado, do braço dos mesmos níveis de audiências. (…) Há actualmente uma «mentalidade de níveis de audiência» (…), hoje, cada vez mais, o mercado é reconhecido como instância legítima de legitimação.
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Um dos problemas maiores que a televisão põe é a questão das relações entre o pensamento e a rapidez? A televisão, dando a palavra a pensadores que se considera pensarem a velocidade acelerada, não se condenará a nunca ter mais do que fast-thinkers, pensadores que pensam mais depressa do que a sua própria sombra? (…) A resposta é que pensam por «ideias feitas». As «ideias feitas» de que fala Flaubert são ideias aceites por toda a gente, banais, conformes, comuns, mas são também ideias que, quando as recebemos, já as tínhamos recebido, de tal maneira que o problema da recuperação não chega a pôr-se (…) Quando emitimos uma «ideia feita» é como se não faltasse fazer nada; o problema está resolvido. A comunicação é instantânea, porque, em certo sentido, não existe. Ou é apenas aparente. A troca e lugares-comuns é uma comunicação sem outro conteúdo para lá do próprio facto da comunicação. Os lugares-comuns que desempenham um papel enorme na conversação quotidiana têm a virtude de toda a gente os poder aceitar e aceitar imediatamente: pela sua banalidade, são comuns ao emissor e ao receptor. No pólo oposto, o pensamento é, por definição, subversivo: tem de começar por desmontar as «ideias feitas» e tem de passar em seguida a demonstrar. Quando Descartes fala de demonstração, fala de longos encadeamentos de razões. É uma coisa que leva tempo, é necessário desenrolar um série de proposições encadeadas (…) Se a televisão privilegia um certo número de fast-thinkers que propõem fast-food cultural, alimentos culturais predigeridos, prepensados, não é só porque ( e isso também faz parte da submissão à urgência) tem a sua agenda de contactos que é, de resto, sempre a mesma …
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Há, em primeiro lugar, os debates verdadeiramente falsos, que reconhecemos imediatamente pelo que são (…vemos logo que são compadres(…) Há também debates aparentemente verdadeiros, falsamente verdadeiros…
Excertos do livro de « Sur la television» de Pierre Bourdieu
(tradução portuguesa na editora Celta, com tradução de Miguel Serras Pereira)