pelo professor Nuno Grande
Abel Salazar foi, porventura, a personalidade mais plurifacetada da cultura portuguesa. De facto, na investigação científica como na pintura, na escultura como na gravura, no cinzelado como na literatura, se exprime um espírito original, imaginativo e rigoroso, como não há paralelo na história cultural portuguesa.
Verdadeiro homem da Renascença, associou uma sensibilidade apurada e um sentido crítico arguto a uma necessidade imperiosa de busca de novas referências, que deram a dimensão da obra gigantesca que nos legou.
Não é possível relacionar essa obra com qualquer escola científica, artística, filosófica ou ideológica, porque Abel Salazar não cabia em chavetas sistematizantes, dizendo de si próprio que poderia ser classificado como anarquista científico.
Inovador em todas as manifestações de um espírito inquieto, foi-o também como pedagogo, o que acabou por se tornar uma característica utilizada pelo Conselho Escolar para o afastar do convívio com os alunos e com a Faculdade.
Foi acusado de estar mentalmente perturbado, pois punha alunos a dar aulas teóricas, facto cujo ineditismo para a época revela a preocupação de estimular os mais dotados para a docência. Procurava despertar e orientar o inconformismo natural dos jovens, ensinando-os a pôr questões e a equacionar processos de procura de resposta a essas questões.
Por isso criticava o "urso", aluno que estudava apenas para obter boas classificações numa postura passiva em face do saber oficial.
Abel Salazar manteve o laboratório aberto durante o dia e a noite, de modo a que os alunos pudessem ter acesso, se o quisessem, a todos os meios de aprendizagem, não tendo cedido às pressões dos que pretendiam ser esta atitude perigosa para o património da Faculdade. Assim distinguia os alunos com maior capacidade para programar os tempos de trabalho. A esses estimulava a auto-aprendizagem e a participação em programas de pesquisa laboratorial. A avaliação dessa aprendizagem incluía não só a valorização dos conhecimentos adquiridos, como também a capacidade de observação, o método descritivo, o sentido analógico e a capacidade interpretativa. Estas características não vinham nos livros ou nas "sebentas" mas permitiram distinguir alguns dos que mais tarde foram seus colaboradores e seguidores. Não fora a injustiça e a prepotência que o impediram de continuar a exercer a docência e estavam criadas as condições para se ter constituído uma verdadeira Escola de Histologistas no Porto.
Abel Salazar foi também um excepcional divulgador, escrevendo nos jornais, de grande e pequena tiragem, artigos de divulgação do conhecimento científico e de opinião cívica que são testemunho das qualidades pedagógicas deste professor que paradigmatiza o verdadeiro Mestre.
Recordá-lo nos cinquenta anos da sua morte é um acto salutar para a sociedade portuguesa, cada vez mais carente de referências dignificantes. (* Director do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar)
(Artigo do Prof. Nuno Grande, publicado em 29 de Dezembro de 1996 no jornal Publico)