4.3.05

Louis Lecoin - Figura maior do pacifismo


Breve biografia de Louis Lecoin

Nascido no Cher, de uma família muito pobre, e de pais analfabetos, operário, jardineiro, empregado de construção civil, corrector de imprensa e, finalmente, jornalista, Louis Lecoin foi com toda a certeza uma das mais belas e impresssivas figuras da anarquia e do pacifismo da nossa época mais recente. Este homem combativo e generoso passou doze longos anos nas prisões francesas. Teve então ocasião de conhecê-las quase a todas: Dépôt, Santé, Clairvaux, Cherche-Midi, Poissy, Bicêtre, Albertville, e até vários campos de internamento. Em Monge, na região de Auvergne, no ano de 1918, até foi encarregado de partir pedra. Passou por todas as jurisdições : criminal, administrativa, militar, sem que jamais a sua consciência de homem livre e refractário se vergasse face ao poder. Em toda a sua vida nunca ele deixou de lutar contra a guerra e o espírito militar.
Quando jovem recruta, em Outubro de 1910, o seu Regimento foi enviado para reprimir a greve dos ferroviários. Lecoin recusa-se então a marchar contra os grevistas, o que lhe vale a sua primeira condenação. Seis meses de prisão. Desmobilizado em 1912, chega a Paris onde entra em contacto com os meios libertários. Torna-se secretário da Federação comunista anarquista desenvolvendo uma intensa actividade. Acusado de preparar a sabotagem da mobilização para a guerra, de incitação ao roubo, assassínio, pilhagem e associação de malfeitores ( esta última acusação será mais tarde retirada), não passou muito tempo para Lecoin ser preso e condenado a cinco anos de reclusão. À sua saída de prisão, a guerra ainda não terminara. Lecoin recusa-se por duas vezes o seu alistamento no exército. O que lhe valeu nova condenação. Pouco mais tarde, ele demonstrará toda a sua coragem e determinação por alturas de dois casos que tiveram grande impacte em França e no mundo.
Três anarquistas espanhóis, militantes da CNT; Ascaso, Durutti e Jover, tinham deixado Espanha para se refugiarem na Argentina. Daí tinham regressado a Paris com a intenção de prepararem um atentado contra o rei de Espanha Afonso XIII que acabara de anunciar uma visita oficial a França. Presos e inculpados por posse de armas proibidas, aqueles que em Espanha eram conhecidos pelos três mosqueteiros, arriscavam agora serem extraditados para o seu país, ao mesmo tempo que a Argentina também os reclamava acusando-os de assassinato. O ministro da justiça francês aprontava-se para os repatriar . Lecoin constituiu então em sua defesa um Comité do direito de asilo . Entretanto, a Liga dos direitos do homem foi também alertada. Édouard Herriot, encarregado do caso, conseguiu a prorrogação da extradição. “A justiça francesa derrotada por uma bando de ladrões” titulavam alguns jornais argentinos. Para evitar uma interpelação ao Parlamento, o governo Poincaré preferiu então libertar os três anarquistas espanhóis.
O outro grande combate conduzido por Lecoin - o movimento a favor de Sacco e Vanzetti – não conheceu infelizmente o mesmo desfecho: apesar de ter movido o céu e a terra, os dois italianos acabaram por ser executados em 23 de Agosto de 1927. Lecoin não podia deixar de passar esse momento para exprimir a sua mais profunda reprovação face ao acontecido.
Quinze dias depois da execução, A Legião Americana que reunia os antigos combatentes americanos da guerra de 14-18, realizava o seu primeiro congresso em Paris, no Trocadero. Lecoin decidiu fazer qualquer coisa a fim de despertar a opinião pública. Escutemo-lo a contar a sua intervenção:
“Era grande o meu desejo de denunciar esse falso ambiente de concórdia , de romper essa harmonia superficial, de lembrar aos congressistas o assassínio cometido no seu próprio país sem que eles tivessem feito coisa alguma.
Foi necessário enganar a vigilância dos polícias que me seguiam à perna já há algum tempo atrás e me espiavam durante a noite. Decidi sair antes do nascer do sol, saltando pela janela e enfiei-me numa rua paralela à minha.
Para entrar dentro da sala dos congressos tive de recorrer a alguns estratagemas. Cortei o bigode, coloquei uns óculos, cobri-me de condecorações e municiei-me com um convite oficial. A polícia observava a entrada. Oficiais da polícia fizeram-me uma saudação militar quando passei pela sua frente em direcção à sala principal.
Sem nada ter preparado encontrava-me no meio dos delegados do Massachusetts, província americana onde tinham morrido Sacco e Vanzetti. Mandei para trás das costas a ideia que a qualquer momento estes gorilas exercitarão a sua força muscular sobre as minhas costas.
O congresso vai começar. O presidente da Legião Americana prepara-se para falar...O silêncio é total...É então que eu me levanto e por três vezes grito com voz sonante: Viva Sacco e Vanzetti.
Estupor e incredulidade na tribuna oficial. Na sala, simplesmente curiosidade. Junto de mim os presentes não vacilam. Acabaram por me prender”

O prefeito da polícia local fica embaraçado. Como tratar com um recalcitrante desta espécie? Na expectativa do que decidirão sobre si, Lecoin é enviado para a Santé, onde irá fazer companhia a Doriot, Marty e Duclos. O juiz designado decide-se a acusá-lo por porte ilegal de uniforme e de condecorações. Mas Lecoin acaba por ser acusado de...apologia de homicídio! Porém, a pressão da opinião pública e a enormidade e ridículo duma tal acusação levou à libertação de Lecoin uma semana mais tarde.
Por ocasião da Guerra civil em Espanha, Lecoin formou o Comité pela Espanha Livre, mais tarde designado po Solidariedade Internacional antifascista (SAI). Em 1939, aquando da declaração de guerra, Lecoin com 51 anos já não podia ser mobilizável. Os seus amigos, em conjunto com ele, decidiram então preparar uma acção. Redigiram um panfleto, assinaram-no e imprimiram-no clandestinamente antes de distribuir os 100.000 exemplares pela população. Mais de trinta pessoas convidadas tinham aposto a sua assinatura No manifesto “Paix immédiate” entre os quais se contavam Alain, Marcel Déat, Henri Poulaille, Marceau Pivert, Henri Jeanson, Jean Giono. Infelizmente, alguns que assinaram o documento irão mais tarde dessolidarizarem-se com Lecoin de forma indigna.
Preso e encarcerado, Lecoin correu o risco de ser passado pelas armas tal era o desejo de èdouard Daladier. Com a derrota de 1940 os prisioneiros foram evacuados para diferentes campos e Lecoin deportado para a Argélia. Graciado pouco depois regressou a Paris a 3 de setembro de 1941.
Em 1948 aparece o primeiro número de Défense de l’Homme, revista que Lecoin decidiu criar. EM dezembro do mesmo ano, Lecoin publica aí um artigo intitulado “Amnistia para os nossos, amnistia para os deles, amnistia para todos”. Condenando os saneamentos selvagens do período pós-Libertação, assim como as perseguições que teimavam em continuar, o velho anarquista reivindica a libertação de todos os prisioneiros, inclusivamente os acusados de colaboracionismo. “ Jamais, dizia ele, me posso lançar sobre um homem ferido, sobre um homem dobrado por terra - se assim não fosse sentir-me-ia odioso”. O seu respeito pela vida e pela liberdade dos homens não tinha sentido único.
Contudo, o empreendimento mais extraordinário que este homem conseguia levar por diante, num esforço heróico, foi sem dúvida o Ter conseguido obter a elaboração e promulgação do estatuto de objectores de consciência.
Desamparado pela morte súbita da sua companheira, conhece o desespero. Por isso, e talvez “para se salvar a si mesmo” como confessou, Lecoin decide lançar-se numa campanha para o fim do encarceramento dos objectores de consciência. A defesa dos objectores começa no início de 1957. Mas a lei só será promulgada em 23 de Dezembro de 1963 após algumas peripécias dramáticas.
Quando o caso foi despoletado encontravam-se encarcerados 90 objecores. Os mais numerosos pertenciam às testemunhas de Jéhovah. Mas contavam-se entre eles dois ateus, dois católicos e dois protestantes. O alsaciano Edmond Scaguéné era o mais antigo com um total de nove anos de prisão.
Lecoin vendeu todos os seus bens para reunir o dinheiro necessário à fundação de um jornal. Recebeu uma ajuda financeira de alguns amigos, e alguns pintores ( entre os quais estavam Vlaminck, Bernard Buffet, Van Dongen, Atlan, Lorjou, Grau Sala, Kischka) presentearam-no com um quadro que ele leiloou. O semanário Liberté pode assim vir à luz do dia em 31 de Janeiro de 1958. O Comité de solidariedade aos objectores de consciência era composto das seguintes pessoas: André Breton, Ch.-Aug. Bontemps, Bernard Buffet, Albert Camus, Jean Cocteau, Jean Giono, Lanza del Vasto, Henri Monier, l’abbé Pierre, Paul Rassinier, o pastor Oser, Robert Treno. E como secretário geral: Louis Lecoin. Tendo como secretário adjunto, Pierre Martin. Todos os deputados receberam gratuitamente o Liberté, e uma maioria favorável ao estatuto legal dos objectores começou a esboçar-se no Parlamento.
Em 15 de setembro de 1958, o ministro do exército, antecipando uma eventual aprovação do estatuto, decide a libertação dos objectores que tenham cumprido cinco anos de prisão efectiva, dispensando-os do cumprimento do serviço militar. Nove objectores saíram em liberdade. Mas o assunto não estava ainda encerrado.
Louis Lecoin, Alexandre Croix e Albert Camus lançaram-se ao trabalho de elaborar um projecto de estatuto a fim de o apresentar ao governo. O projecto elaborado citava um texto de 1793, no qual o Comité de saúde pública – apesar de não ser fácil qualificar propriamente os Convencionais de pacifistas - reconhecia o direito à não-violência dos anabaptistas.
Contudo, a conjuntura política da época (guerra da Argélia, mal estar no exército) e uma surda oposição de certos políticos faziam emperrar as coisas. Cansado de falsas expectativas e de contínuos bloqueios, Louis Lecoin, com a idade de 74 anos, inicia uma greve de fome em 1 de Junho de 1962 depois de ter endereçado uma carta ao presidente da república.
Durante 22 dias o velho libertário recusar-se-á a alimentar-se enquanto não tivesse a certeza da entrega por parte do governo de um projecto de lei sobre os objectores. O seu estado de saúde degradou-se de tal forma que os seus amigos temeram pela sua vida e o próprio De Gaulle terá confiado aos seus próximos que não desejava ver morrer Lecoin.
Finalmente, no dia 23 de Junho, o pacifista, no limiar do estado de coma, é avisado que o governo vais entregar um projecto de lei, ansiosamente aguardado desde há 5 anos. O pequeno homem acabara de vencer o peso do poder e do militarismo. A História registará que um estatuto de objector de consciência foi estabelecido em pleno consulado do general De Gaulle. “Há generais muito particulares”, cantou o amigo Brassens.
Seguramente que o estatuto dos objectores, depois do crivo dos parlamentares, não correspondia aos desejos de Lecoin e dos pacifistas. As emendas introduzidas diminuiram consideravelmente o alcance inicial do projecto. Não obstante a vitória de Pirro, o certo é que de ora em diante o princípio era admitido, deixando-se de considerar os objectores como delinquentes.
Em 1964 formou-se um comité a fim de preparar uma sua candidatura ao Prémio Nobel da Paz, mas o velho anarquista decide retirar a proposta para não concorrer com o outro candidato, Martin Luther King. Lecoin não deixou de morrer a lutar. Um ano antes da sua morte, e como secretário do Comité para a Extinção das Guerras, ele dirigiu um telegrama de protesto ao Geberal Franco, por ocasião do processo de Burgos.
Excerto de Histoire de l’Anarchisme, de Jean Préposiet