Manifesto do CADPP – Comité para a Anulação da Dívida Pública Portuguesa
O CADPP é um grupo cívico que se propõe:
• promover o estudo, debate e divulgação pública do processo de endividamento nacional e suas alternativas;
• apoiar uma auditoria cidadã à dívida pública, com suspensão do pagamento da dívida;
• apoiar a anulação imediata da dívida ilegal, ilegítima ou odiosa à face do direito nacional e internacional (com salvaguarda dos pequenos investidores individuais);
• apoiar a eliminação dos factores de endividamento nacional;
• promover a solidariedade e a coordenação de esforços com movimentos e grupos afins dentro e fora do país.
Vivemos uma época de profunda crise económica e financeira; uma época de endividamento público em espiral e aparentemente insolúvel; uma época de desmantelamento do Estado social, do Estado de direito, dos mais elementares valores humanistas e humanitários, com sonegação dos direitos e princípios fundamentais subscritos há mais de 5 décadas pela maioria da comunidade internacional.
A urgência de encontrar soluções para a crise da dívida é directamente proporcional ao crescimento da miséria, do abandono e da aflição das populações.
O primeiro passo a dar para a solução da crise deverá ser, no nosso entender, a realização duma auditoria cidadã, acompanhada de suspensão do pagamento da dívida pública e seguida da sua anulação.
O significado de auditoria cidadã
Sabemos, graças às insistentes declarações dos poderes instituídos, que todas as dívidas públicas são contraídas em nome das populações. Compete à auditoria cidadã verificar se essas dívidas revertem em benefício da população em geral. Se assim não for, a dívida é ilegítima – pela mais elementar justiça, não pode caber ao cidadão comum o reembolso de dívidas alheias, contraídas em benefício de interesses particulares.
A auditoria cidadã deve investigar a parte odiosa, ilegal ou ilegítima do endividamento, a qual merece repúdio automático segundo as leis da comunidade internacional. As entidades responsáveis por esses crimes, sejam elas individuais ou colectivas, devem ser postas perante a justiça.
Cabe também à auditoria cidadã tornar este processo transparente e de fácil compreensão. Tudo é pago do bolso dos trabalhadores duma forma chã e imediata; assiste-lhes o direito de conhecerem duma forma igualmente chã e imediata a razão (ou a falta de razão) dos pagamentos e sacrifícios que lhes são exigidos.
Por isso a auditoria cidadã deve ser feita por cidadãos comuns e movimentos cívicos – isto é, pelas pessoas directamente interessadas, aquelas que pagam o grosso da dívida. Cabe aos grupos cívicos como o CADPP, aos especialistas e aos meios académicos fornecerem o apoio técnico necessário – mas a dinâmica da auditoria deve provir do envolvimento directo dos cidadãos, organizados em movimentos cívicos autónomos. Doutra forma o processo de auditoria cidadã fracassará, acabando por servir um fim particular, seja ele pessoal ou político.
Finalmente, é preciso deixar bem claro que a auditoria cidadã não é um fim em si mesma. Não se trata de acertar contas de merceeiro, mas sim de esclarecer um processo de endividamento de duvidosos contornos. A auditoria é apenas um pequeno passo transitório, num longo percurso que visa o esclarecimento, o bem-estar das populações, e o fim de todos os processos de endividamento público.
A necessidade da suspensão imediata do pagamento da dívida
Não faria sentido pôr em causa uma dívida e ainda assim efectuar o seu pagamento, antes de se esclarecer a sua origem e as suas parcelas. Como medida de bom senso elementar, advogamos a suspensão imediata da dívida para que se inicie um processo de auditoria cidadã.
No restaurante, no banco ou no país, ninguém assina de cruz um cheque para pagar uma dívida da qual desconhece o valor, a origem, o processo de formação e até o nome do credor.
O significado da anulação
O repúdio unilateral da dívida resulta imediatamente dos actos de endividamento odiosos, ilegais ou ilegítimos à face das leis nacionais e internacionais.
Mas, para além da ilegitimidade estritamente jurídica, há que denunciar a ilegitimidade política duma dívida que resulta da instrumentalização do Estado a favor de interesses privados, com recapitalização da banca privada à custa dos contribuintes e transferência sistemática de todos os recursos públicos para o sector privado.
O repúdio dessas parcelas será inútil se, a seguir a esta crise da dívida, outra vier, e assim sucessivamente. A anulação da dívida tem de visar mais longe; tem de dar um passo no sentido da procura de alternativas (económicas, financeiras, políticas) que ponham cobro, de uma vez por todas, à fonte e aos processos de endividamento.
A auditoria cidadã e a anulação da dívida não vivem isoladas – cruzam-se com questões como a soberania alimentar, a economia alternativa, a finança ética, a independência química e farmacêutica, as energias renováveis, o fim do estatuto independente ou privado dos bancos centrais, o controle colectivo das instituições financeiras, etc. O CADPP propõe-se reflectir e agir em sintonia com os movimentos e organizações sociais que intervêm nesses campos da sociedade, a fim de colectivamente encontrarmos formas de estancar os mecanismos de endividamento permanente.
O processo de anulação e repúdio da dívida pública deve no entanto salvaguardar os interesses dos pequenos investidores; muitos deles são trabalhadores que investiram as poupanças de uma vida inteira de trabalho, não tendo responsabilidade directa na espiral de endividamento – seria injusto castigar esses investidores isolados pelas manobras promovidas pelos grandes interesses financeiros.
Princípios e metas
A luta contra a espiral infernal do endividamento perder-se-á pelo caminho se não usar como bússola princípios gerais mais vastos que o problema estritamente financeiro e contabilístico da dívida.
Esses princípios são a justiça social, a igualdade, a autodeterminação e soberania dos povos, a solidariedade e a cooperação internacionais, a paz e o respeito pela natureza, a subordinação dos interesses económicos privados aos interesses gerais das populações. Estes princípios têm de ser inabaláveis e estruturantes em todas as acções e propostas de alternativa ao endividamento; não admitem excepção nem suspensão. Na verdade, o défice nacional assenta em grande parte num défice democrático e de justiça.
Vemos frequentemente comentadores e organizações de activistas darem-se por vencidos, declarando inevitável a dívida e o seu pagamento, propondo a sua reestruturação ou renegociação, por não encontrarem saídas alternativas no quadro limitado duma visão economicista (isto é, uma ideologia que reduz todos os interesses sociais e políticos à dimensão económica dos factos sociais). A crise da dívida pode ser vencida em favor do bem-estar e do desenvolvimento das pessoas, e não dos interesses económicos; assim o demonstra a história recente de alguns povos que optaram por não pagar dívidas ilegítimas e que rasgaram o «cartão de crédito do Estado», pondo fim à espiral de endividamento, sem por isso caírem no caos, na bancarrota ou na miséria.
Enquadramento internacional
Várias organizações doutros países combatem o problema da dívida. Sendo certo que a crise da dívida envolve uma teia financeira internacional, procuraremos:
• manter relações estreitas com essas organizações irmãs noutros países, como por exemplo o CADTM, com especial destaque para os países da Periferia europeia.
Lisboa, 1 de Novembro de 2011,
Subscritores
Alberto Lopes ::: Alexandre Wragg Freitas ::: Ana Rajado ::: Filipa Lopes ::: Flávio Trindade ::: José Luís Fernandes ::: Luciano Silva ::: Maria João Costa ::: Patrick Figueiredo ::: Raquel Varela ::: Renato Guedes ::: Renato Teixeira ::: Rui Viana Pereira ::: Sónia Sofia Ferreira
____________________________________________
Dívida
As dívidas dum país podem ser privadas ou públicas. As dívidas privadas são contraídas pelas entidades privadas (individuais ou colectivas) quando estas precisam de financiar-se para investir em bens e serviços, em negócios, para montar uma fábrica, para comprar casa ou electrodomésticos, etc. As dívidas públicas são aquelas contraídas pelo Estado.
Nos itens seguintes, quando não seja indicada a origem pública ou privada da dívida, o leitor deve lembrar-se que há que distinguir sempre estas duas categorias. É importante distingui-las, porque obviamente não deveria caber ao Estado (ou seja, a todos nós) pagar as dívidas privadas dum banco, duma fábrica, ou dum vizinho que decidiu comprar carro a crédito em vez de usar os transportes públicos.
Por outro lado, uma vez que em princípio o Estado apenas deveria contrair dívidas para benefício colectivo da população, cabe a todas as entidades individuais ou colectivas dum país pagar a dívida pública. A distribuição deste pagamento deveria em princípio ser feita duma forma equitativa, segundo as possibilidades e rendimentos de cada um – o que, infelizmente, nem sempre acontece. Estes preceitos, além de derivarem do mais elementar bom senso e sentido de justiça, estão regulados nos acordos, tratados e cartas dos direitos e deveres universais assinados pelos países da comunidade internacional. Por conseguinte não são questões duvidosas, mas sim matéria de direito internacional.
Dívida pública
A dívida pública é a soma de tudo aquilo que todos os órgãos do Estado devem, incluindo o governo central, os governos regionais, as autarquias, etc.
A dívida pública tem 3 origens principais: gastos públicos em bens e serviços; gastos com juros sobre dívidas contraídas anteriormente; política cambial e monetária. Tudo o que não recair nestas categorias pode ser considerado automaticamente ilegítimo ou nulo.
Dívida externa
Somatório das dívidas contraídas junto de entidades externas ao país – por exemplo outros Estados, bancos estrangeiros, etc. É importante recordar que, ao ser efectuado o pagamento desta dívida, uma parte da riqueza colectiva produzida sai do país, acrescida dos respectivos juros.
Dívida interna
Somatório das dívidas contraídas junto de entidades nacionais – inclui as dívidas dos privados, por exemplo para compra de casa, de carro, etc.; inclui também as formas de financiamento do Estado junto do mercado interno, por exemplo através da emissão de certificados de aforro e outros títulos de dívida interna.
Dívida soberana
É o somatório das dívidas públicas internas e externas. Geralmente, quando as pessoas dizem abreviadamente «dívida pública», é à dívida soberana que pretendem referir-se.
Serviço da dívida
Gastos com o pagamento da dívida pública e respectivos juros em vias de vencer – ou seja, todas as partes da dívida que têm de ser pagas no momento actual.
Dívida pública líquida
Como o sector público também pode ser um grande credor (tanto de outros órgãos públicos como de entidades privadas), o conceito de dívida líquida traduz mais claramente a posição financeira do sector público. Calcula-se abatento, do total das débitos, o total dos créditos realizáveis.
Os números da dívida: