Texto de Cristina Paixão
“O espectáculo, como a sociedade moderna, está ao mesmo tempo unido e dividido. Como esta, ele edifica a sua unidade sobre o dilaceramento. A contradição, quando emerge no espectáculo, é por sua vez contradita por uma inversão do seu sentido; de modo que a divisão mostrada é unitária, enquanto a unidade mostrada está dividida”
DEBORD, Guy, A Sociedade do Espectáculo, ed. Afrodite, p. 47
“Diante da totalidade horrivelmente séria da política institucionalizada, a sátira, a ironia e a provocação hilariante tornam-se uma dimensão necessária da nova política. O desprezo pelo esprit de serieux, que permite as conversas e as acções dos políticos profissionais e semi-profissionais, confunde-se com o desprezo pelos valores que eles professam e, ao mesmo tempo, destroem. Os rebeldes revivem o riso desesperado e o desafio cínico dos loucos como meios para desmascarar os actos da gente séria que governa o todo.”
MARCUSE, Herbert, Um Ensaio para a Libertação, liv. Bertrand, p. 89
E eis que o inusitado, o mais extraordinário imprevisto aconteceu. Os Homens da Luta ganharam – por votação popular – o Festival da Canção que os levará brevemente a Dusserdolf, em representação do país no euro festival. Dito assim, parece pouco. Mas na verdade foi uma espécie de bomba carnavalesca que explodiu nas mãos do establishment apodrecido, mas empedernido na recuperação de alguns resquícios de seriedade no pântano lodoso em que se atasca. E logo gloriosas vozes furiosas, talvez ressuscitadas a alguns egrégios avós, se levantaram indignadas, chocadas.
Do fundo do pântano insurgem-se clamores de vários quadrantes e justificações variadas. Porque os homens da luta “desprestigiam a canção de protesto”, porque “não dignificam o país representando-o nos seus trajes ridículos e anacrónicos”, porque… em suma… “e a seriedade, senhores”?
Na verdade, nunca os Homens da Luta causaram tamanho desconforto. Até à data, reduziram as suas performances ao palco do espectáculo, devidamente categorizado e delimitado. São actores e como tal foram vistos até ao momento em que o véu caiu e a arquitectura, o esqueleto, das suas intervenções se desnudou. Ganhar o festivaleiro concurso, vencer o glamour vazio e as falsas lantejoulas dos restantes concorrentes, representa uma conquista em território inimigo, um tiro certeiro no coração do Império - um incitamento à revolta que se glosa a si mesmo, que ridiculariza o clássico discurso da política institucional, ainda reclamadora de uma seriedade impossível, porque sustentada e sustentadora de uma realidade circense. Num infindável jogo de espelhos de uma casa de horrores, saiu vitorioso o absurdo, o non-sense, a subversão estética de contornos inevitavelmente políticos, porque, em última análise, desmascara o grotesco apalhaçado em que se transformou a política institucional e o seu braço armado da cultura mainstream. Não pode haver seriedade no que não é sério.
É conveniente recordar que o Festival da Eurovisão é um instrumento institucional da chamada cultura de massas. Consequentemente, a única forma intelectualmente séria de o considerar é reduzi-lo ao que em essência é: um espectáculo ridículo e risível, de forte cariz político. Não se pode, por inerência, colocar em causa a dignidade de um espectáculo que não a possui, porque nos considera indignos, reduzindo-nos a uma espectacular indigência intelectual.
Mas a surpresa e o choque de todos os que ainda não se libertaram das velhas linguagens estéticas e políticas, não se ficou por aqui. Esta vitória, decidida pelos anónimos dos 60 cêntimos mais Iva e, portanto, conseguida a troco de muitos votos populares, contrários à opinião de um júri “sério” e de uma plateia em traje de gala, revela a emergência de um novo poder que escapa totalmente ao controlo institucional. Como muito poucas vezes acontece, a voz da rebeldia descartou herculeamente, de sorriso nos lábios, forte convicção e a dois tempos, a pretensa seriedade do kitsh cultural e do kitsh político.
Quem tem acompanhado as intervenções levadas a cabo pelo par perceberá certamente com facilidade que o que se glosa nas suas performances não é o protesto em si, ou a tradicional canção de intervenção, mas antes uma determinada forma de protestar, anacrónica sim (porque ainda herdeira de uma velha forma de fazer política), e por isso representada pelos adereços utilizados. Os que conheceram o visionário Zeca Afonso (o homem que já então se proclamava como o comité central de si próprio), lembrar-se-ão seguramente do quanto se deliciava com o refrão dos Trabalhadores do Comércio: “chamem a polícia, que eu não pago” que fez furor nos anos oitenta, independentemente da sua discutível qualidade musical e da sua inexistente pretensão literária.
Também no caso, a qualidade da intervenção dos Homens da Luta provém precisamente da sua discutível qualidade musical e literária. Pretender o contrário seria uma contradição interna irresolúvel – a qualidade é-lhe conferida, precisamente, pela recusa de uma linguagem estética “séria”, no sentido histórico do termo. Seria impossível desconstruir um discurso utilizando formas e conteúdos que se pretendem recusar.
O jogo de espelhos não terminará aqui.
Em Dusseldorf, os Homens da Luta serão o espectáculo que conferirá dignidade ao espectáculo. Serão os clowns que devolverão essa mesma imagem aos articuladores dos cordéis que comandam as nossas vidas de marionetas. Um exemplo de tamanha coragem só pode merecer aplausos.