Wikileaks, o Império, a seita e o liberalismo
Debate
Rui Pereira (jornalista e professor universitário)
Manuel António Pina (Escritor e cronista)
HacklaViva (Grupo activista)
Quinta-feira, dia 16 de Dezembro, 22h
Entrada Livre
Gato Vadio
Rua do Rosário 281
http://gatovadiolivraria.blogspot.com/
Wikileaks, o Império, a seita e o liberalismo
Notas breves e de partida para uma discussão
Nas últimas semanas, a Wikileaks e Julian Assange ficaram com a cabeça a prémio por meio de um consórcio oligárquico e global que viu cair na praça pública mais um pedaço da máscara da mentira, do ódio e do terror que constitui o seu fito e o seu modo operandi.
Como alguém já afirmou, o segredo é a alma do negócio do poder Estatal e dos consórcios supra-estatais que o controlam e lhe gizam a estratégia. É paradoxal que o liberalismo ideológico, que enforma a legitimação e o marketing das oligarquias financeiras e governativas, se tenha implantado um dia como o primado do que é e deve ser público e democrático contra aquilo que é segredo e anti-democrático, a seita.
Ao fim ao cabo, o que o evento Wikileaks revela não é a monstruosidade da lógica das milícias económicas e militares que controlam os Estados – essa monstruosidade já lá estava e todos a conheciam. A novidade é que deixamos – um nadinha mais… – de ter razões para fingir que ignorávamos essa monstruosidade. A novidade é que perdemos um pouco mais a nossa legitimidade liberal de assobiar para o lado enquanto uma elite destrói o mundo e a vida humana. Mais do que tirar as sobejamente visíveis máscaras das oligarquias do poder, máscaras cadavéricas e decrépitas, é incomensuravelmente mais decisivo para construir outra ideia de sociedade, que se retire os argumentos àqueles que ainda encobrem a realidade que fingem ignorar.
Provam-no também o facto de que nenhum governante ou secretário do poder visado pelas revelações tenha negado (tenha sequer sentido a necessidade de negar), as suas práticas acima da lei, a sua lógica destrutiva e criminosa (exige a precisão que se mencione a excepção, muitas revelações e implicados depois, do presidente de Moçambique que negou as sua implicações com o narcotráfico reveladas pelos ficheiros da Wikileaks divulgados pela Imprensa). O que preocupa o poder não é o mal, mas a transparência do mal. O que o preocupa é que se desvenda o segredo como alicerce do seu despotismo e da sua hegemonia; o que o preocupa é que se esboroe a sua política de marketing e de controlo do imaginário. Aquilo que o preocupa é que se quebre a magia da sua seita.
Assim, outra face da moeda, correm os secretários do poder não a refutarem o seu fascismo, mas a retocar a cosmética operativa: a política de segredo é um estatuto acima da lei a que o poder recorre para salvaguardar a segurança dos cidadãos e defender o primado da lei… política de segredo posta especialmente em prática, para se violar a lei e a segurança dos cidadãos.
E o teatro é isto: censure-se, condene-se, persiga-se, criminalize-se, a divulgação de documentos que a oligarquia do poder forjou, ao mesmo tempo que se silenciem os crimes, as ilegalidades, as violações constitucionais, que a oligarquia do poder forjou nesses documentos.
E desse teatro resulta a profundidade e a qualidade da democracia em que vivemos: é condição da sua sobrevivência a mentira, a falsificação, o espectáculo permanente.
E este tipo de teatro só foi possível com a hegemonia, da esquerda à direita, do liberalismo ideológico.
Liberalismo e hegemonia da seita
A experiência do liberalismo, tal como o socialismo-de-Estado nos regimes de Leste, é incompatível com a ideia de sociedade, se entendermos sociedade por aquilo que é construído em colectivo.
O liberalismo – dogma quase perfeito e bem mais perigoso para a criação da democracia (falamos, claro, da participativa, directa e colectiva, autónoma, crítica, horizontal) do que a própria ideia base do capitalismo, transformar em lucro a exploração de recursos, humanos e naturais – é aquilo que fez crer a milhões de mulheres e homens que o foro de toda a sua vida pública acaba na sua vida privada. Que todo a sua esfera de influencia e poder relacional acaba na sua “vida privada”.
É aquele patético slogan copo-de-leite: a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro. Como se a “liberdade-privada” de um recibo-verde num call-center só por estar lá não representasse um poder relacional com o outro, com o espaço público. Como se inextrincavelmente, ao estar lá, não estivesse condenado a reproduzir a lógica da humilhação, da opressão, do individualismo, do salve-se quem puder. Ou seja, condenado a intervir na vida pública. A incrementar uma relação humana com o outro. O/a recibo-verde do call-center é o império. A eficiência e a mentira do império. Produzem e vulgarizam a verdade, a subjectividade do império. E esse poder de socialização do império é o que mais abunda, é a sofisticação, é a invisibilidade pela saturação. E nenhuma solidariedade e transmutação dos valores podem começar sem o reconhecermos. Sem reconhecermos, na sociedade Ocidental da abundância, o esbanjamento humano e espiritual de uma geração a quem nunca faltou o pão e a roupa lavada. Geração, que não só desperdiçou a sua ficção humana, a sua potência para a autonomia, a sua liberdade colectiva, a sua cultura contra a submissão, como está a um passo de viver o espectro de perder o pão. (O pão falsificado, entenda-se).
O ser humano é por excelência a espécie condenada a ser-social, a ser-sociedade (sem dúvida, uma das mais inábeis para viver sem sociedade) – nenhuma definição do humano pode definir-se sem o social. O liberalismo aniquila o ser humano com a instituição do indivíduo – e o indivíduo é aquele a quem se tolera que pense, escreva, fale sobre a vida pública desde que a sua acção seja inconsequente. Pior do que tolerar o seu pensamento, o liberalismo vigia-lhe a sua ficção (os limites e a forma dessa ficção) sobre o que é e pode ser o pensar, o escrever, o falar. Factos são factos, a maioria daqueles que pensam, escrevem, falam, não acreditam na consequência daquilo que pensam – consequência na sociedade e na sua própria vida.
A falácia do liberalismo é um dos cristos a cair do pedestal para quem deseja construir outra sociedade, outro mundo de relações.
Hackers
Um grupo de activistas chamado Anonymous levou a cabo algumas acções de sabotagem contra sites e blogues oficiais de entidades que cancelaram os seus serviços com a Wikileaks ou com Jualian Assange. Os hackers argumentaram que as acções contra a Wikileaks são um precedente perigoso para a liberdade de expressão na Web.
Desta feita, a página de um banco suíço, o site da empresa de cartões de crédito MasterCard, ou o blogue da Paypal, foram eficazmente afectados pelo grupo de activistas.
A questão que se deve colocar não é, por que é que eles atacaram, mas por que é que eles não atacam?
Os liberais não têm o que temer: “estes” hackers não querem libertar aquilo que foi privatizado pela lei, limitam-se a tentar impedir que a linha de destruição de tudo o que era social, colectivo, público, não avance mais um milímetro. Neste sentido, estes ataques são uma manifestação política clássica – entra no jogo do simbólico, da troca, do contra-poder –, e se num primeiro olhar nos espantam, vemos que nada ali existe de “organizadamente” abalador do liberalismo. O que deveras é novo é a eficácia política destes ataques, onde por todo o lado as respostas contra o poder das oligarquias e o terror do Estado são neutralizadas, controladas e ridicularizadas.
A prova de que estes ataques foram eficazes, traduz uma realidade: poderiam constituir-se como um contra-poder (passando por cima do facto de que um contra-poder reconhece a legitimidade de um poder e gira à volta dele). Mas quanto mais pontuais, marcados pela agenda, forem os ataques dos hackers, mais políticos eles se tornam…
Media de Massa
Vemos à saciedade não apenas o que alguns opinion-fakers fariam se ocupassem as cadeiras do poder moribundo, mas também o que podem fazer com a informação quando a submetem ao mesmo princípio de segredo informativo em nome da Segurança Mediática. A Segurança Mediática pressupõe sempre pensar com o sistema que o legitima e controla, o que equivale, no essencial, a deixar de pensar além do círculo do sistema, do poder das oligarquias que controlam o Estado, da Agenda, dos limites que a política pobre do staus quo aceita como politicamente correcto ou politicamente incorrecto (o politicamente incorrecto já faz parte do espectáculo).
Já não se trata de vigiar tudo o que deve cair na esfera de controlo político-estatal do Estado-Guerra, trata-se de normalizar essa vigilância, de tornar admissível o abate da Wikileaks, como se tornou admissível o abate de um/uma afegã ou de um/uma iraquiana.
(Quem depois disto quiser tapar a sombra com o preservativo que se rompeu que tenha a coragem de defender o coito interrompido como ideia crítica face ao mundo do império).
Debate
Rui Pereira (jornalista e professor universitário)
Manuel António Pina (Escritor e cronista)
HacklaViva (Grupo activista)
Quinta-feira, dia 16 de Dezembro, 22h
Entrada Livre
Gato Vadio
Rua do Rosário 281
http://gatovadiolivraria.blogspot.com/
Wikileaks, o Império, a seita e o liberalismo
Notas breves e de partida para uma discussão
Nas últimas semanas, a Wikileaks e Julian Assange ficaram com a cabeça a prémio por meio de um consórcio oligárquico e global que viu cair na praça pública mais um pedaço da máscara da mentira, do ódio e do terror que constitui o seu fito e o seu modo operandi.
Como alguém já afirmou, o segredo é a alma do negócio do poder Estatal e dos consórcios supra-estatais que o controlam e lhe gizam a estratégia. É paradoxal que o liberalismo ideológico, que enforma a legitimação e o marketing das oligarquias financeiras e governativas, se tenha implantado um dia como o primado do que é e deve ser público e democrático contra aquilo que é segredo e anti-democrático, a seita.
Ao fim ao cabo, o que o evento Wikileaks revela não é a monstruosidade da lógica das milícias económicas e militares que controlam os Estados – essa monstruosidade já lá estava e todos a conheciam. A novidade é que deixamos – um nadinha mais… – de ter razões para fingir que ignorávamos essa monstruosidade. A novidade é que perdemos um pouco mais a nossa legitimidade liberal de assobiar para o lado enquanto uma elite destrói o mundo e a vida humana. Mais do que tirar as sobejamente visíveis máscaras das oligarquias do poder, máscaras cadavéricas e decrépitas, é incomensuravelmente mais decisivo para construir outra ideia de sociedade, que se retire os argumentos àqueles que ainda encobrem a realidade que fingem ignorar.
Provam-no também o facto de que nenhum governante ou secretário do poder visado pelas revelações tenha negado (tenha sequer sentido a necessidade de negar), as suas práticas acima da lei, a sua lógica destrutiva e criminosa (exige a precisão que se mencione a excepção, muitas revelações e implicados depois, do presidente de Moçambique que negou as sua implicações com o narcotráfico reveladas pelos ficheiros da Wikileaks divulgados pela Imprensa). O que preocupa o poder não é o mal, mas a transparência do mal. O que o preocupa é que se desvenda o segredo como alicerce do seu despotismo e da sua hegemonia; o que o preocupa é que se esboroe a sua política de marketing e de controlo do imaginário. Aquilo que o preocupa é que se quebre a magia da sua seita.
Assim, outra face da moeda, correm os secretários do poder não a refutarem o seu fascismo, mas a retocar a cosmética operativa: a política de segredo é um estatuto acima da lei a que o poder recorre para salvaguardar a segurança dos cidadãos e defender o primado da lei… política de segredo posta especialmente em prática, para se violar a lei e a segurança dos cidadãos.
E o teatro é isto: censure-se, condene-se, persiga-se, criminalize-se, a divulgação de documentos que a oligarquia do poder forjou, ao mesmo tempo que se silenciem os crimes, as ilegalidades, as violações constitucionais, que a oligarquia do poder forjou nesses documentos.
E desse teatro resulta a profundidade e a qualidade da democracia em que vivemos: é condição da sua sobrevivência a mentira, a falsificação, o espectáculo permanente.
E este tipo de teatro só foi possível com a hegemonia, da esquerda à direita, do liberalismo ideológico.
Liberalismo e hegemonia da seita
A experiência do liberalismo, tal como o socialismo-de-Estado nos regimes de Leste, é incompatível com a ideia de sociedade, se entendermos sociedade por aquilo que é construído em colectivo.
O liberalismo – dogma quase perfeito e bem mais perigoso para a criação da democracia (falamos, claro, da participativa, directa e colectiva, autónoma, crítica, horizontal) do que a própria ideia base do capitalismo, transformar em lucro a exploração de recursos, humanos e naturais – é aquilo que fez crer a milhões de mulheres e homens que o foro de toda a sua vida pública acaba na sua vida privada. Que todo a sua esfera de influencia e poder relacional acaba na sua “vida privada”.
É aquele patético slogan copo-de-leite: a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro. Como se a “liberdade-privada” de um recibo-verde num call-center só por estar lá não representasse um poder relacional com o outro, com o espaço público. Como se inextrincavelmente, ao estar lá, não estivesse condenado a reproduzir a lógica da humilhação, da opressão, do individualismo, do salve-se quem puder. Ou seja, condenado a intervir na vida pública. A incrementar uma relação humana com o outro. O/a recibo-verde do call-center é o império. A eficiência e a mentira do império. Produzem e vulgarizam a verdade, a subjectividade do império. E esse poder de socialização do império é o que mais abunda, é a sofisticação, é a invisibilidade pela saturação. E nenhuma solidariedade e transmutação dos valores podem começar sem o reconhecermos. Sem reconhecermos, na sociedade Ocidental da abundância, o esbanjamento humano e espiritual de uma geração a quem nunca faltou o pão e a roupa lavada. Geração, que não só desperdiçou a sua ficção humana, a sua potência para a autonomia, a sua liberdade colectiva, a sua cultura contra a submissão, como está a um passo de viver o espectro de perder o pão. (O pão falsificado, entenda-se).
O ser humano é por excelência a espécie condenada a ser-social, a ser-sociedade (sem dúvida, uma das mais inábeis para viver sem sociedade) – nenhuma definição do humano pode definir-se sem o social. O liberalismo aniquila o ser humano com a instituição do indivíduo – e o indivíduo é aquele a quem se tolera que pense, escreva, fale sobre a vida pública desde que a sua acção seja inconsequente. Pior do que tolerar o seu pensamento, o liberalismo vigia-lhe a sua ficção (os limites e a forma dessa ficção) sobre o que é e pode ser o pensar, o escrever, o falar. Factos são factos, a maioria daqueles que pensam, escrevem, falam, não acreditam na consequência daquilo que pensam – consequência na sociedade e na sua própria vida.
A falácia do liberalismo é um dos cristos a cair do pedestal para quem deseja construir outra sociedade, outro mundo de relações.
Hackers
Um grupo de activistas chamado Anonymous levou a cabo algumas acções de sabotagem contra sites e blogues oficiais de entidades que cancelaram os seus serviços com a Wikileaks ou com Jualian Assange. Os hackers argumentaram que as acções contra a Wikileaks são um precedente perigoso para a liberdade de expressão na Web.
Desta feita, a página de um banco suíço, o site da empresa de cartões de crédito MasterCard, ou o blogue da Paypal, foram eficazmente afectados pelo grupo de activistas.
A questão que se deve colocar não é, por que é que eles atacaram, mas por que é que eles não atacam?
Os liberais não têm o que temer: “estes” hackers não querem libertar aquilo que foi privatizado pela lei, limitam-se a tentar impedir que a linha de destruição de tudo o que era social, colectivo, público, não avance mais um milímetro. Neste sentido, estes ataques são uma manifestação política clássica – entra no jogo do simbólico, da troca, do contra-poder –, e se num primeiro olhar nos espantam, vemos que nada ali existe de “organizadamente” abalador do liberalismo. O que deveras é novo é a eficácia política destes ataques, onde por todo o lado as respostas contra o poder das oligarquias e o terror do Estado são neutralizadas, controladas e ridicularizadas.
A prova de que estes ataques foram eficazes, traduz uma realidade: poderiam constituir-se como um contra-poder (passando por cima do facto de que um contra-poder reconhece a legitimidade de um poder e gira à volta dele). Mas quanto mais pontuais, marcados pela agenda, forem os ataques dos hackers, mais políticos eles se tornam…
Media de Massa
Vemos à saciedade não apenas o que alguns opinion-fakers fariam se ocupassem as cadeiras do poder moribundo, mas também o que podem fazer com a informação quando a submetem ao mesmo princípio de segredo informativo em nome da Segurança Mediática. A Segurança Mediática pressupõe sempre pensar com o sistema que o legitima e controla, o que equivale, no essencial, a deixar de pensar além do círculo do sistema, do poder das oligarquias que controlam o Estado, da Agenda, dos limites que a política pobre do staus quo aceita como politicamente correcto ou politicamente incorrecto (o politicamente incorrecto já faz parte do espectáculo).
Já não se trata de vigiar tudo o que deve cair na esfera de controlo político-estatal do Estado-Guerra, trata-se de normalizar essa vigilância, de tornar admissível o abate da Wikileaks, como se tornou admissível o abate de um/uma afegã ou de um/uma iraquiana.
(Quem depois disto quiser tapar a sombra com o preservativo que se rompeu que tenha a coragem de defender o coito interrompido como ideia crítica face ao mundo do império).