22.12.09

40º aniversário da luta da braçadeira preta - Luto Ferroviário




Há 40 anos atrás registaram-se importantes lutas dos ferroviários, com grandes resultados, com uma acção emblemática, o “Luto Ferroviário”, ou a luta da braçadeira preta.

Não foi a primeira luta dos ferroviários. Na história do caminho-de-ferro, desde sempre se registaram imensas lutas, sempre na procura da conquista de melhores condições de vida e trabalho e pela construção de uma sociedade justa.

Vamos procurar, com o recurso à imprensa clandestina da época (Avante e Militante), órgãos de informação do PCP, transcrever um resumo dos acontecimentos relativos às lutas de 1969.

O Processo da luta reivindicativa

As lutas de 1969 começaram a desenvolver-se, com toda a inten¬sidade, em Outubro de 1968 com a entrega no Ministério das Corporações, por uma ampla comissão, duma exposição dos trabalhadores das ofi¬cinas e da linha, quem em 3 semanas recolheu 10.150 assinaturas de ferroviários que se identificaram inteiramente com as reivindicações nela contidas, através de ampla discussão e consulta nos locais de tra¬balho. Os ferroviários insistiam pela urgente satisfação das suas prementes reivindicações, que eram as seguintes:

"Aumento geral de 1.000$00 sobre os ven¬cimentos actuais;
Subsídio de renda de casa;
Horário de trabalho de 8 horas para to¬das as estações, apeadeiros e passagens de nível;
Pagamento das horas extra-ordinárias com mais 50% e a sua contabilização feita diariamente;
Subsídio de férias de um mês de venci¬mento;
Assistência médica e, medicamentosa equivalente à dispensada pela Federação das Caixas de Previdência;
Actualização dos subsídios para farda¬mentos."

Procurando o apoio público para a sua luta, a Comissão Nacional dos Ferroviários, depois de apresentar a exposição no Ministério das Corporações, entregou cópias da mesma nas redacções ou delegações dos jornais diários de Lisboa e Porto, assim como na TV, pedindo para lhe ser dada publicidade. A censura impôs, porém, o mais completo silêncio aos órgãos de informação.

Paralelamente, os trabalhadores administrativos dos Serviços Centrais lançaram-se também na luta, entregando na Presidência do Con¬selho, em 30 de Setembro, uma exposição subscrita por 757 assinaturas, cerca de metade dos trabalhadores desses serviços, contendo várias reivindicações, entre as quais são de destacar:

"Aumento geral de vencimentos não infe¬riores a 1.000 escudos;
Revisão periódica dos vencimentos de modo a acompanhar o aumento constante do custo de vida;
Concessão de 5% sobre o vencimento anual para efeitos de diuturnidade, ven¬cida de 3 em 3 anos até ao 9° ano e de 5 em 5 anos a partir do 9º ano;
Concessão de um subsídio de renda de casa para o pessoal que habita nos grandes centros populacionais;
Assistência médica e medicamentosa se¬melhante à usufruída pelos beneficiários da Federação das Caixas de presidência;
Instituição do subsídio de férias nunca inferior a um mês de vencimento e do 13º mês por ocasião do Natal;
Pagamento das horas extraordinárias a 50%".

Porque os trabalhadores apareceram unidos e com reivindicações comuns, impunha-se a unificação orgânica das lutas e, com esse objectivo, cerca de uma centena de ferroviários, na segunda quinzena de Outubro, levaram, a efeito, uma reunião onde se discutiu como levar a luta por diante e como reforçar a unidade e a organização unitária dos trabalhadores.

Assim, foi pedida ao Sindicato do Centro a convocação duma Assembleia-geral extraordinária para debater os problemas respeitantes à revisão do Acordo Colectivo de Trabalho. Mostrando-se mais uma vez divorciados dos ferroviários, os dirigentes sindicais, (que eram controlados pelo governo fascista), sob os mais variados pretextos, recusaram o pedido dos trabalhadores.

A Comissão Nacional dos Ferroviários, que assumiu a direcção da luta devido ao papel demissionista dos sindicatos corporativos, dirigiu um apelo aos trabalhadores, para que se fizesse pressão junto da Administração da C.P. exigindo a satisfação das reivindicações num prazo mínimo. Trabalhadores de algumas estações enviaram exposições à CP exigindo o horário das 8 horas, tendo sido atendidos nessa pretensão.

Em Novembro e Dezembro de 1968 foram enviadas cartas e telegramas à Administração da CP, enquanto se pressionava o Sindicato do Centro, para também pressionar os responsáveis da CP e dessem força às suas reivindicações

Em resposta a esta acção dos ferroviários, o Ministério das Corporações emite uma nota em que dava conta da constituição mista de representantes do Sindicato, da “Companhia” e do Governo, com a tarefa de rever em vários aspectos as disposições do ACT em vigor. Esta nota tinha como objectivo desmobilizar os ferroviários e iludi-los sobre a disposição do Governo de Marcelo Caetano. Nesse intento procuraram de todas as formas manobrar, enganar, espalhar boatos e ilusões, propalando, ao mesmo tempo que a CP não tinha fundos para satisfazer as reivindicações apresentadas.

O discurso do ministro das Corporações em 9-12.68 tentou justificar os baixos salários dos ferroviários com os défices crónicos da CP, revelando que o governo vinha entregando 500 mil contos anuais a CP, sem explicar que as razões do défice e dos baixos salários tem a ver com a política seguida na empresa e nas negociatas dos seus responsáveis.

Nesse discurso o Ministro da Corporações revela que o governo não tem a intenção de satisfa¬zer as justas reivindicações apresentadas pe¬los ferroviários. Revela ainda que os cerca de 60 mil contos de novos encar¬gos com a reforma da Previdência prevista, num total de 130 mil contos, será conseguido à custa, em grande parte, dum futuro aumento das tarifas ferroviária.

Quando o ministro diz «apelar para a consciência dos interessados, lembrando-lhes a gravidade da hora que o país está a atravessar e que a todos impõe especiais deveres», os ferroviários dizem com ironia: «Agradecemos muito o papel de mártires, de sacrificados, de devotados à causa da manutenção do equilíbrio da economia nacional que a nação há longos anos nos tem vindo a dar a honra de desempenhar. É tempo, no entanto, de essa honra ser partilhada por outros». Lembram em seguida os chorudos vencimentos dos administradores e os aumentos que se atribuíram a si próprios nos últimos tempos (sem que o governo alguma vez tivesse intervindo para os limitar) que nalguns casos passaram de 9.500$00 para 21.000$00 e de 13.600$00 para 23.000$00.

Na carta enviada ao Ministro e em resposta à argumentação do ministro de que a C.P. é uma empresa deficitária e que isso é uma razão para os baixos salários existentes, os trabalhadores respondem na sua carta: «A empresa a que pertencemos é uma instituição de utilidade pública e nacional e o facto de não ser rentável não é razão para que nós não me¬reçamos a justa retribuição do nosso trabalho». E com ironia perguntam: «Ou será que ainda teremos de pagar à Companhia se o défice existente aumentar!».

Passagem a novas formas de luta

Depois de lançar um apelo à unidade e firme¬za dos ferroviários, a Comissão Nacional pro¬move um inquérito junto dos trabalhadores, procurando auscultar a opinião geral quanto ao caminho a seguir para o desenvolvimento vito¬rioso da luta. Ao mesmo tempo, espalhadas por toda a linha, nas estações e nos comboios e até nos escritórios apareciam pequenas tarjetas in¬citando os ferroviários a seguir o exemplo da Carris (Greve da mala em 1968, luta em que os cobradores não vendiam bilhetes).

Não tendo obtido resposta satisfatória às suas reivindicações, os ferroviários recorrem a uma forma de luta original: o LUTO FERROVIARIO. Desta forma, com braçadeiras negras, milhares de ferroviários davam a conhecer ao povo português as razões da sua luta, rompendo assim a mordaça da censura.

O LUTO, iniciado no dia 2 de Janeiro, man¬teve-se durante alguns dias apesar da repressão e da intimidação desencadeadas pela PIDE. "No Rossio, foi, seguido por cerca de 90% dos trabalhadores; nas oficina do Barreiro, onde o LUTO foi total entre os 2.000 operários, uma brigada da PIDE que procurava forçar os operários a retirar o luto, mal teve tempo de se salvar da ira provocada, tendo um agente sido atingido com uma barra de ferro nas pernas e o chefe da brigada com uma grande «porca» de ferro nas cos¬tas. No Entroncamento, o LUTO foi quase total, assim como nas zonas ferroviárias ao Sul do Tejo, mas foi desigualmente seguido noutras regiões, particularmente no norte do Pais".

O governo decreta precipitadamente o aumento

Perante esta magnifica acção de protesto dos ferroviários que tudo indicava se preparavam para passar a outras formas de luta, o governo anuncia precipitadamente, no dia 8 de Janeiro, o aumento de vencimentos em 12,2% em média, para os trabalhadores no activo, um aumento uniforme de 9% para os reformados e pensionistas, a actualização dos abonos ou de subsídios por deslocações e a equiparação do esquema de Previdência dos ferroviários ao das instituições de Previdência da indústria e do comércio.

O governo conta poder assim quebrar temporariamente a combatividade duma grande parte dos ferroviários, criar um motivo de di¬visão entre eles, isolando da grande massa a vanguarda mais combativa. “Se o conseguiria ou não, isso apenas dependeria da acção futura dos trabalhadores da CP”.

Fortalecidos por esta primeira e impor¬tante vitória, os ferroviários fizeram, um balanço do caminho já percorrido, reagruparam as suas forças, melhorando e reforçando a sua organi¬zação e a sua unidade combativa, e continua¬ram a luta.

Porque os salários eram bastante baixos, porque havia reivindicações por satisfazer, porque o Governo e os sindicatos do regime procuravam afastar os ferroviários da discussão dos problemas que lhe diziam respeito, em 2 de Agosto de 1969, mil ferroviários oriundos de diversos pontos do País, concentraram-se, à tarde, no centro de Lisboa, para apoiarem uma comissão que procurava reunir com os dirigentes da União dos Sindicatos Ferroviários, que vinham recusando a realização de uma Assembleia geral, reivindicada pelos trabalhadores, para discussão do ACT em revisão, que o governo, CP e sindicatos corporativos se preparavam para assinar à revelia dos ferroviários.

A concentração foi fortemente reprimida pela polícia, presos dois ferroviários, entretanto libertados nesse mesmo dia devido ao forte movimento de solidariedade. Enfrentando essa repressão, mais de quinhentos ferroviários manifestaram-se em plena Avenida da Liberdade, empunhando cartazes onde se lia: “Ferroviários mantêm reivindicação de 1.000$00”; “Queremos horários de trabalho humanos”; “Queremos sindicatos que defendam os interesses dos trabalhadores”; “Queremos que o ACT seja amplamente discutido pela classe”.

Prosseguindo a pressão, os ferroviários voltam à luta no dia 20 de Outubro entre as 15h e as 16h. Milhares de ferroviários em todo o País pararam e lutaram dessa forma em defesa das suas reivindicações. Nas oficinas do Entroncamento, Barreiro, Figueira da Foz, Santa Apolónia, Campolide e Cruz da Pedra a paralisação foi total. Muitas estações paralisaram em toda a rede A estação do Rossio foi ocupada por cerca de mil ferroviários, que das mais variadas formas impediram a circulação de comboios. Às 16 horas uma forte ovação dos ferroviários e utentes assinalou o fim da greve.

O 7º Congresso Sindical Mundial, solidarizou-se com os ferroviários em luta, assim como milhares de portugueses. Esta greve quebrou o imobilismo da negociação do Acordo Colectivo de Trabalho, que foi, finalmente assinado em 10 de Novembro. Depois do aumento verificado em Janeiro de 12,2%, em resultado da luta tiveram novos aumentos de 240$00 para salários inferiores a 2.000$00; e de 200$00 para salários superiores a 2.000$00 e um subsídio de férias de 50%, para além doutros direitos.

Esta importante vitória foi seguida de uma forte repressão que teve a resposta à altura. 20 ferroviários foram suspensos, mas perante uma onda de protesto, 19 foram readmitidos. Perante a ameaça de 3.000 despedimentos os ferroviários respondem com a recusa a mais horas extraordinárias. São inúmeros os exemplos de firmeza, coragem e determinação dos ferroviários nesta e noutras lutas, como por exemplo este: “No Entroncamento, quando se recolhiam assinaturas para a carta ao ministro das Cor¬porações, os chefes tentaram impedi-lo, proibindo que a recolha se fizesse «na hora do serviço». Em resposta, os operários foram unânimes em pedir meio-dia de licença, a fim de poderem assinar a carta. Como aquela lhes fosse negada a pretexto de «não poder ser con¬cedida a todos», os operários resolveram assi¬nar à hora do almoço, tendo por esse motivo retomado todos o trabalho com 40 minutos de atraso”.

Só com a luta se vence e conquistam direitos

Foi com esta e outras lutas que se construiu o património de direitos que os ferroviários dispõem, pelo que o mesmo não é de nenhuma organização, mas sim propriedade dos trabalhadores ferroviários e é um legado que tem de ser defendido para ser transmitido às futuras gerações.

Estes acontecimentos provam que os trabalhadores, mesmo nas condições mais difíceis, sabem encontrar a maneira de se organizarem para lutarem pelas suas reivindicações com vista a melhorarem as suas condições de vida e trabalho. Direitos que hoje consideramos tão normais, só existem porque ao longo de gerações de trabalhadores se lutou.

Uma das questões centrais em 1969, para além das reivindicações de melhores salários, era a organização do tempo de trabalho, que está, agora, novamente no centro da luta que desenvolvemos, em resultado do Código do trabalho aprovado pela maioria PS na Assembleia da República. E agora, tal como em 1969 é a luta que determinará a concretização das reivindicações dos trabalhadores e a defesa dos seus interesses.

A melhor homenagem que podemos prestar àqueles que lutaram antes de nós, para termos os direitos que hoje auferimos, é continuar a luta em defesa daquilo que gerações de trabalhadores construíram e para nós, hoje, são coisas tão normais, mas que exigiram muito sacrifício de quem nos precedeu.

Imprensa consultada
O Militante – nº 159 de Fev 1969
Avante – nº 395 Set 1968; nº
Fonte do texto: aqui