Será que é admissível continuar a afirmar que é impossível tapar com milhões o buraco da segurança social, mas que devemos tapar, com biliões, o buraco dos bancos?
(...)
Nas últimas semanas, falou-se sistematicamente da “economia real” (a produção de bens). Oposta a ela está a “economia irreal” (a especulação), de onde viria todo o mal, visto que os seus agentes se teriam tornado “irresponsáveis”, “irracionais” e “predadores”. Essa distinção é, evidentemente, absurda. O capitalismo financeiro é, desde há cinco séculos, uma peça central do capitalismo em geral. Quanto aos proprietários e animadores desse sistema, eles não são só, por definição, os responsáveis pelos lucros, e a sua “racionalidade” não é apenas medida pelos lucros. De facto, eles são não só os predadores como ainda têm o dever de o ser.
(...)
Será que é possível continuar a afirmar que é impossível tapar com milhões o buraco da segurança social, mas que devemos tapar, com biliões, o buraco dos bancos?
Tal como nos é apresentada, a crise planetária das finanças parece-se a um desses maus filmes produzidos pela indústria de sucessos pré-fabricados que chamamos hoje de cinema. Nada falta nele, incluindo mesmo os clarões que provocam terror: é impossível impedir a sexta-feira negra, parece que tudo se vais desmoronar, mesmo tudo ...
Mas a esperança permanece. Diante do espectáculo, aterrorizados e concentrados como num filme-catástrofe, a pequena quadrilha dos poderosos, os bombeiros do fogo monetário, os Sarkozy, Paulson, Merkel, Brown e outros Trichet, gastam milhares de milhões para encher um buraco central. “Salvar os bancos!”. Esse nobre grito humanista e democrático é lançado por todas as gargantas políticas e mediáticas. Para os actores principais do filme, ou seja, os ricos, como também os seus serventuários, assim como para os seus parasitas e todos aqueles que os incensam, um final feliz é inevitável, face ao que eles e o mundo são hoje, e os políticos que os cercam.
Mas voltemo-nos antes para os espectadores desse show, a multidão atónita que ouve como uma algazarra longínqua os gritos alucinantes dos banqueiros, imagina os fins-de-semana cansativos da ilustre equipa de chefes de governo, vê passar diante dos seus olhos estatísticas, tão gigantescas quanto obscuras, e compara tudo isso mecanicamente com os recursos com os quais vive, ou mesmo, para uma parte muito considerável da humanidade, a pura e simples falta de recursos que forma o fundo amargo e corajoso de sua vida. Eu digo que aí é que está o real, ao qual não teremos acesso enquanto não nos desviarmos da tela do espectáculo para considerar a massa invisível daqueles para quem o filme-catástrofe, incluindo um inesperado final cor-de-rosa ( com Sarkozy a abraçar Merkel, e todo mundo chora de alegria), nunca deixou de ser um teatro de sombras.
Nas últimas semanas, falou-se sistematicamente da “economia real” (a produção de bens). Oposta a ela está a “economia irreal” (a especulação), de onde viria todo o mal, visto que os seus agentes se teriam tornado “irresponsáveis”, “irracionais” e “predadores”. Essa distinção é, evidentemente, absurda. O capitalismo financeiro é, desde há cinco séculos, uma peça central do capitalismo em geral. Quanto aos proprietários e animadores desse sistema, eles não são só, por definição, os responsáveis pelos lucros, e a sua “racionalidade” não é apenas medida pelos lucros. De facto, eles são não só os predadores como ainda têm o dever de o ser.
Não há, portanto, nada de mais real na produção capitalista que a sua febre mercantil ou a sua pulsão para a especulação. O retorno ao real não é, assim, o movimento que conduz da má especulação “irracional” à saudável produção. Esse retorno é antes o retorno à vida, imediata e reflectida, de todos aqueles que habitam esse mundo. É a partir dessa posição que se pode observar sem fraquejar o capitalismo e o filme-catástrofe que ele nos apresenta nestes dias. O real não é o filme, mas a sala.
O que é que vemos? Vemos coisas simples e conhecidas de longa data: o capitalismo não é nada mais que um banditismo, irracional na sua essência e devastador para o futuro. Ele sempre cobrou por algumas curtas décadas de prosperidade selvaticamente desiguais, um preço que é traduzido por crises ou pelo desaparecimento de quantidades astronómicas de valores, ou então por expedições punitivas sanguinárias em todas as zonas consideradas por ele como estratégicas ou ameaçadas, ou ainda com guerras mundiais através das quais a sua saúde é refeita.
Deixemos ao filme-crise, assim revisto, a sua força didáctica. Poderemos ainda assim ousar, face à vida das pessoas que assistem, elogiar um sistema que remete a organização da vida colectiva às pulsões mais baixas, à cobiça, à rivalidade, e ao egoísmo automatizado? Fazer o elogio de uma “democracia” onde os dirigentes são tão impunemente os serventuários da apropriação financeira privada que até espantaria o próprio Marx, que já qualificava esses governantes, há 160 anos, como os funcionários do poder do capital? Será que é possível continuar a afirmar que é impossível tapar com milhões o buraco da segurança social, mas que devemos tapar, com biliões, o buraco dos bancos?
A única coisa que podemos desejar nesta questão é que descubramos o poder didáctico nas lições que podem ser tiradas para os povos, e não para os banqueiros, para os governos que os servem e para os jornais que servem aos governantes, em toda esse sombrio espectáculo. Eu vejo dois níveis articulados deste retorno do real. O primeiro é claramente político. Como o filme tem mostrado, o fetiche “democrático” não passa de um serviço solícito aos bancos. O seu verdadeiro nome, o seu nome técnico, como proponho há muito tempo, é: capital-parlamentarismo. Convém, pois, como múltiplas experiências começaram a fazer nos últimos vinte anos, organizar uma política de natureza diferente.
Ela é e estará - por muito tempo ainda, sem dúvida – distante do poder do Estado, mas pouco importa. Ela começa, na base do real, pela aliança prática das pessoas mais imediatamente disponíveis para inventá-la: os novos trabalhadores vindos da África ou de outros lugares, e os intelectuais herdeiros das batalhas políticas das últimas décadas. Ela ampliar-se-á em função do que houver a fazer, ponto por ponto. Ela não manterá nenhuma espécie de relação orgânica com os partidos existentes e o sistema, eleitoral e institucional, que os mantém vivos. Ela inventará a nova disciplina daqueles que não têm nada, a sua capacidade política, a nova ideia do que será sua vitória.
O segundo nível é ideológico. É preciso inverter o velho veredicto segundo o qual estaríamos vivendo “o fim das ideologias”. Vemos hoje, muito claramente, que essa pretensão não tem outra realidade do que a expressa pela palavra de ordem “salvemos os bancos”. Nada é mais importante do que reencontrar a paixão das ideias e contrapor ao mundo, visto como uma hipótese geral, a certeza antecipada de um outro curso de acontecimentos totalmente distinto. Ao espectáculo maléfico do capitalismo, nós opomos o real dos povos, a existência de todos no movimento próprio das ideias. A motivação pela emancipação da humanidade não perdeu em nada a sua força. A palavra “comunismo”, que durante muito tempo nomeou essa força, foi certamente aviltada e prostituída.
Mas, hoje, o seu desaparecimento só serve os defensores da ordem, os actores febris do filme-catástrofe. Nós iremos ressuscitá-la com a sua nova claridade. Que é também a sua antiga virtude, expressa quando Marx dizia, a propósito de comunismo, que ele “rompia da forma mais radical com as ideias tradicionais” e que fazia surgir “uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.
Ruptura total com o capital-parlamentarismo, uma política inventada com base no real popular, e na soberania da ideia: tudo está aí para nos tirar do filme da crise e nos lançar para na fusão do pensamento vivo e da acção organizada.
Texto publicado no Le Monde de 18 de Outubro de 2008
Para saber mais sobre Alain Badiou, consultar:
http://en.wikipedia.org/wiki/Alain_Badiou