22.5.08

Morreu o jornalista libertário Torcato Sepúlveda


Faleceu ontem, com 57 anos, o jornalista Torcato Sepúlveda, que se destacou no jornalismo cultural, com uma perspectiva crítica própria, desassombrada, fortemente marcada pelo anarco-situacionismo e pelas ideias libertárias.

Foi o primeiro editor da secção de “Cultura” do Público, jornal de que foi um dos fundadores. Actualmente era o editor da NS/Notícias Sábado, revista suplemento do Diário de Notícias. Passara igualmente pelas redacções do Expresso ( para onde entrara como copydesk) , Semanário, A Capital, Grande Reportagem e outras publicações.

Nasceu em Braga, filho de professores primários, e foi para Coimbra frquentar o curso de Filologia Românica. Participou nas lutas estudantis em Coimbra e, posteriormente, exilou-se na Bélgica entre 1971 e 1974, onde foi operário. No regresso a Portugal, trabalhou no serviço de fronteiras em Vila Real de Santo António, antes de enveredar pelo jornalismo. Era ainda tradutor.

Dos comentários acerca da sua morte surgidos no site do jornal Público reproduzimos aquele que mais está à altura da figura do Torcato:

«Morreu o "Desvairadão", ínclito bracarense, anarco-surreal-situacionista, de cuja prosa elegante e truculenta todos beneficiamos. Companheiro de todas as fronteiras, aristocrata das ideias, o Torcato vai fazer muita falta. Sejamos sérios, anda por aí muita canalha que vai desatar a insinuar que ele foi um grande jornalista... mas... tinha o defeito de odiar certos reflexos do poder económico no texto jornalístico de alguma fauna de futuros administradores. Com Torcato vai-se a prosa mais cáustica e terna da nossa depauperada imprensa cultural. Sossega camarada, vamos vingar-te!»

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Entretanto, fomos aqui buscar a crónica escrita pelo Torcato Sepúlveda a propósito do falecimento de Luiz Pacheco:


O último patuleia das letras, conservador e insurrecto

Abjeccionismo. Pacheco não foi surrealista, mas um clássico que utilizou a libertinagem

“Eu sou um atraso de vida, porque sou um gajo de 1800 e tal ou 1900. Olha, nunca andei de avião”, declarava Luiz Pacheco, em entrevista a Carlos Quevedo e Rui Zink, para a revista K, de Julho de 1992. Um exercício de auto-análise muito lúcida.

O mito do Pacheco surrealista não passa disso mesmo, de um mito. O autor de O Teodolito acompanhou os surrealistas portugueses – o surrealismo chegou cá com décadas de atraso – e outros vanguardistas, mas é um clássico: escrevia o português de Camilo Castelo Branco, condimentado com a oralidade da língua portuguesa da segunda metade do século XX. Isto significa que Pacheco é uma espécie de porta aberta que conduz do passado para o presente. Outros houve antes dele: Fialho de Almeida, por exemplo. Fialho foi panfletário, Pacheco também; Fialho foi polemista, Pacheco também; Fialho foi um camiliano apimentado pela Geração de 70, Pacheco foi um camiliano fecundado pelo surrealismo.

Pacheco nunca escreveu romances porque a sua literatura era de urgência: de matar a fome, de zurzir os bonzos que mandavam nas letras pátrias, de atacar o salazarismo a golpes de impropérios e gargalhadas, não por causa da condenação lavrada por André Breton contra o género. Deixou-se proteger por um guarda-chuva inventado por ele e pelos seus amigos do lisboeta Café Gelo – Mário Cesariny, António José Forte, Virgílio Martinho, Manuel de Lima, etc. – o abjeccionismo. Uma espécie de revolução individual e colectiva, sobretudo individual, que se exprimia no nojo. A ditadura política do salazarismo e a ditadura dos costumes herdada da Inquisição deixaram marcas na obra de todos eles.

O principal texto do abjeccionismo foi precisamente da autoria de Luiz Pacheco. O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor. E não há narrativa mais portuguesa no seu falhanço: um libertino, o próprio Pacheco, é claro, tenta conquistar, em Braga, uma rapariguita; ele adorava rapariguitas e por causa delas bateu várias vezes com os costados na cadeia. Nada consegue. Tenta a sorte com um magala, numa muito desamparada investida homossexual. Nada. A noite acaba tristemente em masturbação solitária.

O contraponto de O Libertino… é o belo monólogo Comunidade, elogio da família-clã, da paternidade, da filharada. Porque o autor, defendendo embora o aborto livre, defendia também a procriação. Aspecto esquecido da sua obra é o da sensibilidade para o tempo que passa; leia-se a narrativa A Velha Casa, antologiada em Exercícios de Estilo: “Olhou para onde há pouco havia sol e já não o viu.”


Com Pacheco morre certo Portugal antigo. Contraditoriamente conservador e insurrecto. Luiz Pacheco foi o último patuleia das letras.

[Torcato Sepúlveda, DN, 7/1/2008]