17.4.08

A destruição em Lisboa das hortas urbanas de Benfica e a criação da horta popular da Graça-Mouraria


http://horta-popular-graca-mouraria.blogspot.com/


Desde final de Março que várias pessoas têm andado atarefadas na área das portas de Benfica, fazendo algo pouco comum a habitantes da cidade: salvar uma série de árvores de fruto, flores, vegetais. É que a cidadecontinua a crescer. Cresce em perímetro, ao mesmo tempo que se densifica e perde espaços verdes participados, ao mesmo tempo - estranho fenómeno -que tem cada vez menos habitantes. O concelho de Lisboa perdeu mais de300.000 habitantes desde 1980, ou seja, entre 30% a 40% da sua população.

A obras da CRIL e dos respectivos acessos prossegue, fazendo avançar "Buldozers" por cima de hortas que algumas pessoas mantinham nas Portas de Benfica, para que os alimentos criados ajudassem a economia familiar.
Estas hortas, independentemente do maior ou menor talento de cada hortelão,são espaços na cidade que permitem a manutenção mínima de um ambiente salutar. São espaços que, entre outras coisas, ajudam à infiltração das águas da chuva diminuindo os riscos de cheias, regulam a ilha de calor urbano, criam habitats para várias espécies animais e vegetais, melhoram a qualidade de vida de quem nelas trabalha ao ser local de lazer, exercício,contacto com a natureza, terapia,...

Estando a ser destruído este espaço, que com um pequeno investimento poderia ser ainda mais uma local de convívio e reforço das relações de vizinhança, começa a surgir um outro. Que espaço é esse? Simplesmente,uma auto-estrada, algo que não necessita de grandes apresentações.
Muitas faixas de rodagem, asfalto quente e estéril, automóveis a grandes e ruidosas velocidades. Uma barreira intransponível entre vizinhos. Um estímulo ao uso do automóvel privado, uma dificuldade para quem deseja circular a pé ou de bicicleta.

Durante os próximos dias vão continuar os trabalhos das máquinas. As hortas que ainda subsistem, mais próximas das portas de Benfica, vão também ser terraplanadas. Belos talhões com batatas, milho, pimentos, ervilhas, favas, serão arrasados a meio do seu desenvolvimento. Pessegueiros, figueiras, laranjeiras, bananeiras. Colmeias de um lado, e o alecrim onde as abelhas recolhem pólen do outro, também.

Qualquer pessoa que, desejando um desenvolvimento mais harmonioso da cidade,queira tentar salvar o máximo de vegetais e árvores destas hortas, pode entrar em contacto com Marcos Pais através do email marcos.abyz@gmail.com para informação sobre os dias em que vamos estar nas hortas.

Vamos tentar trazer o maior número possível de plantas para a horta popular da Mouraria, local aberto que tod@s estão convidad@s a visitar para contactar um pouco com o campo, mesmo no coração da cidade, encima da Calçada do Monte.

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Para a descrição sobre o que se tem passado com as hortas de Benfica e a sua destruição, leia-se o seguinte texto que retiramos do blogue http://supergreenme.blogspot.com


O jardim da D. Ondina – uma história de hortas com vida e vidas em hortas

No início dos anos 70 a proprietária da Quinta das Pedralvas, em Benfica, doou as suas terras à Câmara Municipal de Lisboa sob condição de serem utilizadas para habitação e fins sociais. Num pedaço de terra da boa que tapa a encosta entre o castelinho das Portas de Benfica e a estrada dos Salgados ergueram-se hortas em lotes arrendados pela Câmara.



Até à segunda-feira passada entre 50 a 70 pessoas cultivavam aí legumes e árvores de fruta para o seu sustento suplementar ou total, para além de plantas mais decorativas para o sustento da alma... Ladeado de árvores, algumas de grande porte, freixos, oliveiras, amoreiras, choupos, alguns pinheiros mansos e até um ulmeiro, o terreno representava um dos últimos resquícios de ruralidade em Lisboa, numa zona que outrora era dominada por quintas e onde agora os prédios infelizes dos anos 70 enclausuram a população humana, animal e vegetal.

Segunda-feira passada chegaram as retroescavadoras e fizeram evaporar a esperança secreta dos hortelões de que esta obra “de utilidade pública” chamada CRIL, com a mesma idade de algumas árvores de médio porte na zona, não seria mais do que um fantasma e voltaria a atrasar por mais uns tantos anos. Apesar dos avisos, o choque foi grande.

Eu andei no terreno uma semana, mobilizada por uma “colega” do ambiente, e falei com pessoas confusas, incrédulas, revoltadas e algumas com claros sintomas de choque. Duas irmãs dos seus 60 anos pediram-me para conseguir adiar as máquinas até às favas estarem prontas para a colheita, pois só faltava um mês e deixaram-me assinalar a bela figueira no meio da sua horta com fita polícia (Foi a primeira árvore a ir abaixo, pois o recado não tinha sido passado ao encarregado de obra). Outra senhora, mais resignada, entregava-me enormes sacos de couve portuguesa para distribuir a quem precisasse. “ Mas vai usar mesmo, não vai? Pois deve, visto que a senhora é do ambiente..”


O Sr. Porfírio, já com um quarto do terreno arrasado, olhava preocupado para a sua mulher, a D.Helena, uma mulher miniatura com uma cara redondinha saudável que revelava a sua ascendência beirã. A D. Helena continuava a trabalhar no seu quinhão como se houvesse amanhã. “Eu aguento-me”, dizia o Sr. Porfírio, “Mas a minha mulher não tem outra ocupação. Trabalhar a terra é o que ela sabe. Vou plantá-la a frente da televisão agora?”


Alguns donos das hortas zangavam-se connosco por estarmos a tirar plantas e marcar árvores para um transplante que negociámos com o empreiteiro. Consideravam que estávamos a roubar, por mais que insistissemos que o terreno ia mesmo ser destruído. “A CRIL ainda está embargada”, diziam sabidos, “Isto é tudo ilegal.” Até as máquinas chegarem a meio das hortas tornando a destruição demasiado óbvia, as pessoas continuavam a ir aos seus bocados de terra, colhendo legumes, regando, conversando entre elas como sempre fizeram. Os moradores do bairro adjacente continuavam a atravessar o terreno, com crianças pela mão, cumprimentando os hortelões e as hortelonas. O fim social idealizado pela antiga proprietária esteve à vista até ao derrube do jardim da D.Ondina, às 13 horas de quarta-feira..

Aaah, a D. Ondina merece menção especial. Até marcámos o seu lote com fita polícia toda a volta para garantir que houvesse tempo para tirar os seus tesouros. No meio do stress de tentar parar as obras para que os ninhos fossem poupados e de bombardear a Câmara com pedidos de viabilizar o transplante de árvores, o jardim da D.Ondina conseguiu um lugar central na acção. Hoje com setenta e qualquer coisa anos, optou em tempos por criar o seu próprio jardim secreto em vez de uma horta lavradinha com filas de couves e batatas. Tal como o paraíso, não parecia ter entrada nem saída. Espreitando através das sebes e as yucas que rodeavam o lote e por cima da vedação tosca avistávamos uma autêntica estufa de flores, plantas aromáticas e uma variedade de cactos. A D. Ondina, com os olhos intensos lavados em lágrimas, explicava-nos os benefícios de cada uma das suas plantas. “Os cactos absorvem a radiação, é bom para quem trabalha no computador e para toda a electricidade em casa. Assim nós não ficamos ‘radiados’.” “Esta cardeira até soube que a procuram noutros países, que já é rara, é para fazer um queijo especial.” “Com isto faz um chá e limpa os rins.” A vizinha, D. Deolinda, ia dizendo que sim e repetia orgulhosa os conhecimentos da sua amiga curandeira de olhos azuis e lenço preto na cabeça para quem quisesse ouvir. A D.Ondina foi resistindo às ofertas de apoio para transplantar o seu jardim. Todos os dias levava calmamente umas cestas cheias para um novo terreno que escolheu, pouco além do perímetro marcado pelo empreiteiro. Mas o fim não teve o mesmo ritmo da vida das hortas. Em poucas horas os voluntários tiveram que desenterrar o que conseguiam e com a ajuda dos trabalhadores da obra, entretanto já bastante sensibilizados e cheios de conselhos, levaram as plantas e sebes para os novos anfitriões, a eco-escola Verdes Anos e a Horta popular da Graça. À sombra de um choupo à espera do abate, dezenas de plantinhas em vasos ainda aguardam que a D.Ondina os leve.

Foi uma semana dura. Dura para os voluntários que lutaram pelos ninhos com crias e pelas árvores e plantas que nunca foram consideradas para a recuperação paisagística obrigatória, pois este terreno rural foi considerado baldio e não entrou na declaração de impacto ambiental. Dura para os pássaros que escolheram passar a Primavera num espaço condenado. Dura para as árvores que não vamos conseguir salvar. Mas sobretudo, acima de tudo, dura para os hortelões e hortelonas de Benfica, a quem ninguém ofereceu uma alternativa para o seu passatempo, sustento e paz de alma. Lisboa virou mais um pouco as costas à natureza livre e perdeu mais um pedaçinho de história e mais um pedaçinho de humanidade em prol de betão, ruído e ar irrespirável.

Textos retirados daqui