Montparnasse
Até ao esgotamento das horas
de Vasco de Castro
Salamandra, 2ª edição
Até ao esgotamento das horas
de Vasco de Castro
Salamandra, 2ª edição
Sobre o Livro:
Que fazer quando se tem vinte anos, se está em Paris, de excelente saúde e encantado da vida? Vivez! Ah! Vivez donc! Et qu’importe la suite!, proclamava Blaise Cendrars na sua fúria de viver dos anos 20.
Nesta obra o autor descreve a experiência excessiva de um local eleito e de uma época singular – Montparnasse, anos 60 –, os rigores do exílio e a música permanente da «festa móvel», as sedes e fraternidades pícaras de uma fauna bizarra, delirante, patética e as entradas pela noite parnassiana dentro, até ao esgotamento das horas.
«O que faz com que estes relatos de Vasco se leiam como não houvesse a patine do tempo? Em primeiro lugar, a caracterização das pessoas e lugares. Veja-se como ele fala de Max: “Há pessoas que nasceram com a cara errada. Max exibia uma carantonha de assustar, as pestanas espessas, os maxilares de pele no osso e um tronco largo, de velho embarcadiço. Não era feio, era intenso. Mais chegado, sentia-se a bondade extrema daquele bicho de figura enorme como uma caricatura. Os olhos, sobretudo os olhos, e a voz, pausada e meiga, acariciavam com ternura os amigos com quem privava, poucos”.
Nesta obra o autor descreve a experiência excessiva de um local eleito e de uma época singular – Montparnasse, anos 60 –, os rigores do exílio e a música permanente da «festa móvel», as sedes e fraternidades pícaras de uma fauna bizarra, delirante, patética e as entradas pela noite parnassiana dentro, até ao esgotamento das horas.
«O que faz com que estes relatos de Vasco se leiam como não houvesse a patine do tempo? Em primeiro lugar, a caracterização das pessoas e lugares. Veja-se como ele fala de Max: “Há pessoas que nasceram com a cara errada. Max exibia uma carantonha de assustar, as pestanas espessas, os maxilares de pele no osso e um tronco largo, de velho embarcadiço. Não era feio, era intenso. Mais chegado, sentia-se a bondade extrema daquele bicho de figura enorme como uma caricatura. Os olhos, sobretudo os olhos, e a voz, pausada e meiga, acariciavam com ternura os amigos com quem privava, poucos”.
Percebe-se agora como é que Vasco é um dos maiores desenhadores portugueses. Em segundo lugar, temos aqui um relato vigoroso do que fez uma juventude no exílio: ideologicamente plural, umas vezes feitos Fernão Mendes Pintosinhos, outras a resistir no desenrasca, outras a viver o reconhecimento. Vasco teve a lucidez de se deixar na penumbra, é o Vasco folião, engatatão, a esgotar as horas numa das regiões mais febris do mundo que ressalta nos seus registos. Podia ter ficado a nota de sinceridade das amizades com grandes artistas, ele trata tudo e todos por igual, artistas glorificados e artistas falhados, amantes sinceras e relações de ocasião. É a exaltação de Montparnasse e o seu modo de viver que ele cinzela, graceja, recorda com incontida nostalgia, sem ajustes de contas.
Em terceiro lugar, estão aqui algumas das lutas no exílio, o Maio de 1968 e alguma participação portuguesa, notas sobre a vida dolorosa dos emigrantes e a fúria de viver quando o mundo é descoberto e redescoberto todos os dias: o glorioso e o patético, a fraternidade e a canalhice, a crença generosa e as trafulhices políticas. Vasco desenhou em literatura Montparnasse, ícone de Paris, com primor, irreverência e irrestrita jovialidade. O que justifica ler-se Vasco como um desenho fadado à posteridade.»
Beja Santos, in O Primeiro de Janeiro
Breve História de Portugal
sugerida por Vasco de Castro
Há um maluco que anda à porrada com a mãe e funda um reino. Depois, um doido desenterra a amada putrefacta e coroa-a rainha. Não contente, senta-a no trono e obriga toda a gente a beijar-lhe o anel no dedo nauseabundo, apodrecido...
Tempos mais tarde, uns quantos loucos metem-se numas cascas de noz (a que, irresponsavelmente, chamaram naus) e zarparam mar adentro, sem sequer saberem o que procuravam. Qual ouro, qual fé?! O que os movia era a zoinice.
O poeta-mor da pátria veio a ser um tal zaragateiro, um gigolô com a mania dos duelos que pela espada perdeu um olho. O maior feito do homem foi quase morrer afogado para salvar uns papéis.
Vá-se lá saber porquê, a doidice, esse atributo único dos portugueses, convenceu-os de que tinham um império. Mas por pouco tempo. Um desvairado rapazolas, um tal D. Sebastião (que nem copular sabia... ou podia), preconiza um sintomático ataque suicida ao Norte de África. O doidivanas, que fez orelhas moucas às sábias advertências dos Reis de Espanha, ainda arrastou para a desgraça meia dúzia de parvos estrangeiros.
Mas a mania do império continuou e chegou até um tal Salazar. Este, azoratado de todo, queria defender a ilusão com um exército de fábula. Sozinho contra o mundo com uma tropa de farrapos e ninguém lhe tirava a cadeira...
Outro exemplo de delírio intelectual é o próprio Fernando Pessoa. Um doido varrido, mas não daqueles que se acham Napoleão. Mais refinado, inventou heterónimos com obra própria, que se correspondiam entre si e que se levavam a sério. Não é de manicómio?
Há que desconfiar deste país...
sugerida por Vasco de Castro
Há um maluco que anda à porrada com a mãe e funda um reino. Depois, um doido desenterra a amada putrefacta e coroa-a rainha. Não contente, senta-a no trono e obriga toda a gente a beijar-lhe o anel no dedo nauseabundo, apodrecido...
Tempos mais tarde, uns quantos loucos metem-se numas cascas de noz (a que, irresponsavelmente, chamaram naus) e zarparam mar adentro, sem sequer saberem o que procuravam. Qual ouro, qual fé?! O que os movia era a zoinice.
O poeta-mor da pátria veio a ser um tal zaragateiro, um gigolô com a mania dos duelos que pela espada perdeu um olho. O maior feito do homem foi quase morrer afogado para salvar uns papéis.
Vá-se lá saber porquê, a doidice, esse atributo único dos portugueses, convenceu-os de que tinham um império. Mas por pouco tempo. Um desvairado rapazolas, um tal D. Sebastião (que nem copular sabia... ou podia), preconiza um sintomático ataque suicida ao Norte de África. O doidivanas, que fez orelhas moucas às sábias advertências dos Reis de Espanha, ainda arrastou para a desgraça meia dúzia de parvos estrangeiros.
Mas a mania do império continuou e chegou até um tal Salazar. Este, azoratado de todo, queria defender a ilusão com um exército de fábula. Sozinho contra o mundo com uma tropa de farrapos e ninguém lhe tirava a cadeira...
Outro exemplo de delírio intelectual é o próprio Fernando Pessoa. Um doido varrido, mas não daqueles que se acham Napoleão. Mais refinado, inventou heterónimos com obra própria, que se correspondiam entre si e que se levavam a sério. Não é de manicómio?
Há que desconfiar deste país...
Texto e entrevista retirados de:
(a edição electrónica do EITOFORA, Jornal de Vilarelho, foi uma louca experiência editorial em Trás-os-Montesque durou de 1998 a 2001: http://www.trasosmontes.com/eitofora/index.html )A verdade verdadinha é que rumámos a Fontanelas com o objectivo de entrevistar o sátiro Vasco de Castro. Queríamos gravar uma conversa interessante, cheia de ditos sarcásticos, registar respostas mordazes, prender na fita magnética revelações surpreendentes... É certo que tivemos tudo isso — a conversa interessante, os ditos sarcásticos, as respostas mordazes —, mas fomos vencidos pela irrequietude de Vasco, e, nas deslocações entre a sua casa, o ateliê e o "Zé", pouco ficou gravado. É o que dá fazer jornalismo com carácter diletante, com maior preocupação em desfrutar do entrevistado do que em cumprir os compromissos com os leitores. E se, de facto, desfrutámos longamente da visita, por outro lado não podemos (embora às vezes o quiséssemos) deixar de a compartilhar com V.as Ex.as, como manda a boa consciência profissional. O que vai ler (em excertos encadeados) foi, literalmente, a entrevista possível.
Era uma manhã de sol tímido, mas prometedor, a iluminar a verdura da paisagem sintrense. Pela Serra de Sintra andavam, não os queirosianos Carlos da Maia, João da Ega e Alencar, mas os repórteres do Eito à procura do caminho para Fontanelas, a aldeia-refúgio de Vasco de Castro. O instinto fez-nos preterir a paisagem-serrana-com-mar-à-vista a favor de um mais desolador e descampado trajecto saloio que quase nos levava à Ericeira. Os transeuntes a quem recorremos para descobrir a "estrada de Damasco" eram da tropa de ocupação ucraniana, pelo que mais depressa nos diriam o caminho de Kiev. De resto, o acolhimento, quando por fim chegámos a Fontanelas, também tinha sotaque de Leste.
Aqui o instinto funcionou. Na hora da escolha da tasca onde comer o cibo inclinámo-nos sem hesitações para «O Zé». Da excelência da escolha, por motivos gastronómicos e literários, soubemos mais tarde, quando descobrimos ser ali que o Vergílio Ferreira assentava arraiais e quando o Vasco nos confirmou serem o cozido à portuguesa e o cabrito estufado d’ «O Zé» as especialidades da terra. Tinham sido as nossas escolhas, que alarvemente degustámos regadas a abundante tinto. Mal sabíamos que nos esperavam horas «pantagruélicas», como o Vasco as definiu.
Fomos encontrá-lo deitado ao sol no selvagem jardim de sua casa.
Mas afinal quem é o Vasco de Castro? Tão-só um dos mais interessantes desenhadores satíricos que este país viu nascer. Mas o transmontano é mais do que isso (que já não é pouco): culto, divertido, generoso, acutilante, «leitor profissional» e atento, bon vivant, desalinhado, analista mordaz e expressivo (por palavras, trejeitos e peculiares interjeições...) e tudo o mais que define um carácter único.
TRÁS-OS-MONTES
De seu nome completo Agostinho Vasco da Rocha e Castro, nasceu em Agosto de 1935. A família paterna era da Bila (o epíteto carinhoso de Vila Real), «casa na Rua Central (onde agora é um banco), outra casa de família na Rua Direita, a farmácia Baptista, do meu tio-avô...» A mãe era do Castelo, freguesia de Telões, em Vila Pouca de Aguiar. Entre Vila Real e as aldeias do vale de Aguiar estão os «lugares ternos» da sua infância e adolescência, onde forjou um carácter de escarpas graníticas, de acutilância pétrea.
Ainda que tenha abandonado as transmontanas terras, a verdade é que estes lugares o marcaram. «Sempre senti uma lava granítica misturada com o meu sangue», assegura. Será por isso que alguns dizem, por vezes, que tem mau feitio. «Contesto em absoluto! Só que os maneirismos e farsas de outros costumes são-me, ou tento que sejam, alheios!». Trás-os-Montes estará hoje distante desse território «medieval» em que viveu. Mas sente-se «quase um ultra-transmontano, se isso quer dizer algo de preciso».
Sobre a ascendência de Vasco sempre se pode adiantar que houve avôs que «a seu tempo fizeram coisas... política, jornais, poesia...» Gente que partilhou da boémia literária com António Nobre e Afonso Duarte. Pelos jornais e pela literatura, iniciaria Vasco a sua carreira nas artes. O ambiente familiar era propício às leituras, ao contacto com as descobertas que elas proporcionam. Daí às primeiras escrevinhações vai um passo que o Vasco deu, novíssimo, com poemas e jornais familiares, e depois com jornais escolares. Imberbe, ainda iniciou um folhetim, «um pomposo "Mistério do Castelo de Aguiar"», que seria hoje obra de culto da mui bairrista intelligenzia aguiarense, caso tivesse passado do número dois... Mas, para gáudio dos mais ferrenhos desta tribo, ainda deixou registado no Vilarealense, aos treze anos, um texto «romântico-sentimental» sobre o "Vale de Aguiar". Passados os devaneios da primeira adolescência, fez-se correspondente do Mundo Desportivo. Não levava muito a sério o desenho, aquele que viria a ser, de um modo ou de outro, o seu métier, a sua fonte de rendimentos, embora já fosse rabiscando aqui e acolá e anunciando que era capaz de fazer melhor que muito do que via publicado. A primeira vez que gostou de algo pintado, di-lo ele num catálogo de 1987, «teria uns 16 anos, foi quando descobri o Picasso dos anos 40, de traço agreste e selvagem». Agreste e selvagem podem ser adjectivos para o traço de Vasco, um traço que passou por várias depurações e constitui hoje uma marca reconhecida, indelével.
Da sua época transmontana não se pode passar ao lado, por premonitório, dum episódio que lhe mereceu uma suspensão e consequente chumbo no liceu. Estava no sétimo ano e havia uma qualquer sessão solene com todos os alunos, os professores e o Governador Civil. Coisa pomposa, relacionada com a Mocidade Portuguesa. Na verdade, uma chatice que o Vasco quis aliviar com umas naives caricaturas dos professores. Só que os bonecos foram passando de mão em mão, e a estudantada, mal conseguindo reprimir o riso, acabou por denunciar, pelo burburinho, o atrevimento. O resultado foi uma suspensão de oito dias. «Como estava "tapado" às sessões da Mocidade Portuguesa, chumbei o ano por faltas».
Em que altura da vida é que teve a percepção de qual era o seu lado na política?
Na política? Nessas coisas não há assim um dia ou uma hora, como S. Paulo no caminho de Damasco. Não ouvi nenhumas vozes, nem caí do cavalo... Há uma série de sensações e emoções que, como camadas, se vão sobrepondo e cristalizando. Se quiser, apanhei isso em casa. De família. Havia a memória do meu avô e o meu pai que era anti-salazarista. Patológico, quase.
Já havia antecedentes, portanto.
Sim. Há uns genes dificilmente detectáveis, mas que se manifestam, e há coisas que a gente no mundo visível apanha, ouve e integra. Eu vivia num clima que era contra o sistema na altura estabelecido, que era uma coisa pavorosa. Em Vila Real, as coisas adquiriram vivência prática na luta contra a Mocidade Portuguesa e o reitor fascista que estava lá no liceu. Foi meu professor de inglês e de alemão, e tinha o descaramento de ir para as aulas fazer o elogio da Alemanha nazi! Isto dez anos depois de a Alemanha ter perdido a guerra e de se saber muito bem o que era o nazismo. Na altura reagi...
LISBOA
O jovem Agostinho Vasco chega a Lisboa em 1953 para estudar Direito — e, claro, fê-lo por linhas tortas. Os cinco anos da praxe ocupou-os em muito mais do que as sebentas e as aulas. Saiu de lá sem o curso, mas com largas experiências de vida fundadas no activismo estudantil. Mais do que decorar os alfarrábios, agitou culturalmente as hostes, organizando exposições e conferências, envolvendo-se nas artes cénicas. As razões do seu empenho nas actividades culturais a despeito dos calhamaços explica-as pela sensibilidade, ou antes, dizendo que «essas coisas não se explicam, sentem-se».
Como se envolve nas actividades políticas e culturais?
O meu primeiro "exercício político" foi aquele embate com o reitor fascista. Aliás, nazi. E aí tive a consciência que era um embate contra o poder. Contra o poder fascista. E depois quando vim para Lisboa, claro, continuei. Tive também actividade com alguma dinâmica nas sessões académicas de direito. Até inovei um bocadinho, porque tomei conta da secção cultural, onde estive durante dois anos seguidos. Fiz lá pela primeira vez exposições de pintura. Uma delas a desse grupo que agora foi tirado do esquecimento, o KWY, que eu conhecia muito bem. (Quando vim para cá tentei encontrar pessoas com quem me sentisse bem e desaguei rapidamente no Café Gelo. Já ouviram falar no Grupo do Café Gelo, o segundo fôlego do grupo surrealista? Bem, não era exactamente o grupo surrealista como era na primeira fase... O António Maria Lisboa já tinha morrido e quem lá estava como figura tutelar, de referência, era o Mário Cesariny.) Foi a segunda exposição que eles fizeram como grupo. Bom, ainda antes de se chamarem KWY, já que isso foi só em Paris. Na altura chamavam-se Nove Pintores.
Organizei várias exposições, criámos o grupo cénico de direito (que ainda existe), tivemos sessões de poesia, poesia ilustrada, discursos... Até levei lá o António Quadros!... Fez um discurso em nome da Filosofia Portuguesa...
Esse interesse pela cultura vem-lhe de onde?
Cultura?! Você pergunta-se porque se excita quando vê uma rapariga A e não lhe acontece o mesmo quando vê uma rapariga B? É genético, é natural, é normal, uma pessoa excita-se com essas coisas, os aspectos culturais, artísticos, a criação... Eu com dez anos já fazia jornais!...
Mas não teve um ambiente propício?
Sim. Houve o meu bisavô, o meu avô, o meu pai... Havia lá livros... Havia na minha família uma adoração quase religiosa pelo Camilo Castelo Branco. Ainda apanhei histórias sobre os distúrbios, as velhacarias e as coisas que o Camilo fazia lá por Vila Real. Velhacarias não, o termo tem de ser outro... Os desmandos! Eu cresci com o Camilo sempre por perto, e depois lia e gostava imenso...
A gente da sua geração seguiu outros caminhos...
Na minha geração senti-me sempre sozinho.
Mas alguns cresceram nos mesmos ambientes, com as mesmas influências...
Cada um é como é. Em Vila Real o convívio estava baseado em duas coisas: o gosto pelos copos (a boémia possível numa cidade pequenina, de província, fechada) e depois ir jogar futebol para o Calvário (risos).
O seu estilo de vida, que já se esboçara nos últimos anos de liceu em Vila Real, adquire em Lisboa uma forma que é algo mais do que um sfumatto. Aqui inicia a ruptura com qualquer exclusividade profissional. O que lhe apetece são as coisas fáceis, aquelas que lhe permitem experimentar tudo sem a nada se prender. O desenho, que pratica com iniciática assiduidade em publicações como Riso Mundial, Picapau, Cara Alegre, Parada da Paródia, Diário de Lisboa, República, Diário Ilustrado e Mundo Ilustrado, permite-lhe essa relação desprendida com o mundo laboral.
Vai tendo contacto com os desenhadores estrangeiros através dos jornais que vão chegando à capital. Autodidacta, estuda-os, aprende com eles. Começou aí o seu fascínio por Saul Steinberg.
O Steinberg é um génio absoluto, é, seguramente, o artista mais interessante, mais importante de toda a história da arte americana. Que, de resto, não tem história, começou nos anos 40/50... Uma pintura estilo folclórica, à Malhoa, ou menos que isso, à Rosa Ramalho... Depois mitificaram o Andy Warhol e outros... Gajos com uma obrazinha assim assim (e a do Warhol acho-a absolutamente medíocre, detestável, até). Tornaram-nos vedetas porque na América funciona o cacau, o dinheiro. Esqueceram os desenhadores porque os trabalhos eram em A4. Claro, não eram comercializáveis como os quadros de 3 por 4 metros...
A arte está pervertida por várias ideias. Uma delas é o comércio. A crítica, a história da arte, estão ao serviço desses interesses. E chega-se a extremos (estamos no plano zero da estética): esta matulagem com mentalidade de merceeiro chega a isto de dizer "a arte é aquilo que a certo momento se convencione que é arte!" Tudo é arte... É falso! É falso! Isto é falso! Em Paris fiz uma coisa, por irrisão, por gozo... Uma noite qualquer deu-me vontade de cagar e caguei ali no passeio. Com giz fiz um risco à volta e assinei. Olha: obra de arte! (risos) Isto é uma idiotia!... São estórias que a história lavará, saudavelmente.
Em Lisboa experimentou a pintura e foi-se envolvendo ou despoletando publicações culturais. De outubro de 1958 data o n.º 1 (e único) da Coordenada — Cadernos de Convívio literários com capa e coordenação de Agostinho [Vasco] de Castro e onde era redactor outro vilarrealense, o escritor António Cabral. No editorial pode ler-se que «Convívio é um encontro entre jovens escritores e artistas que, lutando até aqui isoladamente, pretendem unir-se para a expansão das suas obras e, juntamente com todos aqueles que se interessam pela cultura, lutar pela concretização de um programa de autêntica divulgação cultural, pondo de parte partidarismos políticos ou religiosos». Um programa actualíssimo, como se vê.
Diferente entre iguais, Vasco surgia aos olhos do Estado como um entre muitos: foi chamado para a tropa em 1960. Inventou padecimentos e conseguiu adiar a ida para Mafra por um ano. 1961 vê-lo-ia integrando um dos primeiros contingentes da guerra colonial se o rapaz não tivesse zarpado para Paris, a cidade-luz
MONTPARNASSE
Era uma manhã de sol tímido, mas prometedor, a iluminar a verdura da paisagem sintrense. Pela Serra de Sintra andavam, não os queirosianos Carlos da Maia, João da Ega e Alencar, mas os repórteres do Eito à procura do caminho para Fontanelas, a aldeia-refúgio de Vasco de Castro. O instinto fez-nos preterir a paisagem-serrana-com-mar-à-vista a favor de um mais desolador e descampado trajecto saloio que quase nos levava à Ericeira. Os transeuntes a quem recorremos para descobrir a "estrada de Damasco" eram da tropa de ocupação ucraniana, pelo que mais depressa nos diriam o caminho de Kiev. De resto, o acolhimento, quando por fim chegámos a Fontanelas, também tinha sotaque de Leste.
Aqui o instinto funcionou. Na hora da escolha da tasca onde comer o cibo inclinámo-nos sem hesitações para «O Zé». Da excelência da escolha, por motivos gastronómicos e literários, soubemos mais tarde, quando descobrimos ser ali que o Vergílio Ferreira assentava arraiais e quando o Vasco nos confirmou serem o cozido à portuguesa e o cabrito estufado d’ «O Zé» as especialidades da terra. Tinham sido as nossas escolhas, que alarvemente degustámos regadas a abundante tinto. Mal sabíamos que nos esperavam horas «pantagruélicas», como o Vasco as definiu.
Fomos encontrá-lo deitado ao sol no selvagem jardim de sua casa.
Mas afinal quem é o Vasco de Castro? Tão-só um dos mais interessantes desenhadores satíricos que este país viu nascer. Mas o transmontano é mais do que isso (que já não é pouco): culto, divertido, generoso, acutilante, «leitor profissional» e atento, bon vivant, desalinhado, analista mordaz e expressivo (por palavras, trejeitos e peculiares interjeições...) e tudo o mais que define um carácter único.
TRÁS-OS-MONTES
De seu nome completo Agostinho Vasco da Rocha e Castro, nasceu em Agosto de 1935. A família paterna era da Bila (o epíteto carinhoso de Vila Real), «casa na Rua Central (onde agora é um banco), outra casa de família na Rua Direita, a farmácia Baptista, do meu tio-avô...» A mãe era do Castelo, freguesia de Telões, em Vila Pouca de Aguiar. Entre Vila Real e as aldeias do vale de Aguiar estão os «lugares ternos» da sua infância e adolescência, onde forjou um carácter de escarpas graníticas, de acutilância pétrea.
Ainda que tenha abandonado as transmontanas terras, a verdade é que estes lugares o marcaram. «Sempre senti uma lava granítica misturada com o meu sangue», assegura. Será por isso que alguns dizem, por vezes, que tem mau feitio. «Contesto em absoluto! Só que os maneirismos e farsas de outros costumes são-me, ou tento que sejam, alheios!». Trás-os-Montes estará hoje distante desse território «medieval» em que viveu. Mas sente-se «quase um ultra-transmontano, se isso quer dizer algo de preciso».
Sobre a ascendência de Vasco sempre se pode adiantar que houve avôs que «a seu tempo fizeram coisas... política, jornais, poesia...» Gente que partilhou da boémia literária com António Nobre e Afonso Duarte. Pelos jornais e pela literatura, iniciaria Vasco a sua carreira nas artes. O ambiente familiar era propício às leituras, ao contacto com as descobertas que elas proporcionam. Daí às primeiras escrevinhações vai um passo que o Vasco deu, novíssimo, com poemas e jornais familiares, e depois com jornais escolares. Imberbe, ainda iniciou um folhetim, «um pomposo "Mistério do Castelo de Aguiar"», que seria hoje obra de culto da mui bairrista intelligenzia aguiarense, caso tivesse passado do número dois... Mas, para gáudio dos mais ferrenhos desta tribo, ainda deixou registado no Vilarealense, aos treze anos, um texto «romântico-sentimental» sobre o "Vale de Aguiar". Passados os devaneios da primeira adolescência, fez-se correspondente do Mundo Desportivo. Não levava muito a sério o desenho, aquele que viria a ser, de um modo ou de outro, o seu métier, a sua fonte de rendimentos, embora já fosse rabiscando aqui e acolá e anunciando que era capaz de fazer melhor que muito do que via publicado. A primeira vez que gostou de algo pintado, di-lo ele num catálogo de 1987, «teria uns 16 anos, foi quando descobri o Picasso dos anos 40, de traço agreste e selvagem». Agreste e selvagem podem ser adjectivos para o traço de Vasco, um traço que passou por várias depurações e constitui hoje uma marca reconhecida, indelével.
Da sua época transmontana não se pode passar ao lado, por premonitório, dum episódio que lhe mereceu uma suspensão e consequente chumbo no liceu. Estava no sétimo ano e havia uma qualquer sessão solene com todos os alunos, os professores e o Governador Civil. Coisa pomposa, relacionada com a Mocidade Portuguesa. Na verdade, uma chatice que o Vasco quis aliviar com umas naives caricaturas dos professores. Só que os bonecos foram passando de mão em mão, e a estudantada, mal conseguindo reprimir o riso, acabou por denunciar, pelo burburinho, o atrevimento. O resultado foi uma suspensão de oito dias. «Como estava "tapado" às sessões da Mocidade Portuguesa, chumbei o ano por faltas».
Em que altura da vida é que teve a percepção de qual era o seu lado na política?
Na política? Nessas coisas não há assim um dia ou uma hora, como S. Paulo no caminho de Damasco. Não ouvi nenhumas vozes, nem caí do cavalo... Há uma série de sensações e emoções que, como camadas, se vão sobrepondo e cristalizando. Se quiser, apanhei isso em casa. De família. Havia a memória do meu avô e o meu pai que era anti-salazarista. Patológico, quase.
Já havia antecedentes, portanto.
Sim. Há uns genes dificilmente detectáveis, mas que se manifestam, e há coisas que a gente no mundo visível apanha, ouve e integra. Eu vivia num clima que era contra o sistema na altura estabelecido, que era uma coisa pavorosa. Em Vila Real, as coisas adquiriram vivência prática na luta contra a Mocidade Portuguesa e o reitor fascista que estava lá no liceu. Foi meu professor de inglês e de alemão, e tinha o descaramento de ir para as aulas fazer o elogio da Alemanha nazi! Isto dez anos depois de a Alemanha ter perdido a guerra e de se saber muito bem o que era o nazismo. Na altura reagi...
LISBOA
O jovem Agostinho Vasco chega a Lisboa em 1953 para estudar Direito — e, claro, fê-lo por linhas tortas. Os cinco anos da praxe ocupou-os em muito mais do que as sebentas e as aulas. Saiu de lá sem o curso, mas com largas experiências de vida fundadas no activismo estudantil. Mais do que decorar os alfarrábios, agitou culturalmente as hostes, organizando exposições e conferências, envolvendo-se nas artes cénicas. As razões do seu empenho nas actividades culturais a despeito dos calhamaços explica-as pela sensibilidade, ou antes, dizendo que «essas coisas não se explicam, sentem-se».
Como se envolve nas actividades políticas e culturais?
O meu primeiro "exercício político" foi aquele embate com o reitor fascista. Aliás, nazi. E aí tive a consciência que era um embate contra o poder. Contra o poder fascista. E depois quando vim para Lisboa, claro, continuei. Tive também actividade com alguma dinâmica nas sessões académicas de direito. Até inovei um bocadinho, porque tomei conta da secção cultural, onde estive durante dois anos seguidos. Fiz lá pela primeira vez exposições de pintura. Uma delas a desse grupo que agora foi tirado do esquecimento, o KWY, que eu conhecia muito bem. (Quando vim para cá tentei encontrar pessoas com quem me sentisse bem e desaguei rapidamente no Café Gelo. Já ouviram falar no Grupo do Café Gelo, o segundo fôlego do grupo surrealista? Bem, não era exactamente o grupo surrealista como era na primeira fase... O António Maria Lisboa já tinha morrido e quem lá estava como figura tutelar, de referência, era o Mário Cesariny.) Foi a segunda exposição que eles fizeram como grupo. Bom, ainda antes de se chamarem KWY, já que isso foi só em Paris. Na altura chamavam-se Nove Pintores.
Organizei várias exposições, criámos o grupo cénico de direito (que ainda existe), tivemos sessões de poesia, poesia ilustrada, discursos... Até levei lá o António Quadros!... Fez um discurso em nome da Filosofia Portuguesa...
Esse interesse pela cultura vem-lhe de onde?
Cultura?! Você pergunta-se porque se excita quando vê uma rapariga A e não lhe acontece o mesmo quando vê uma rapariga B? É genético, é natural, é normal, uma pessoa excita-se com essas coisas, os aspectos culturais, artísticos, a criação... Eu com dez anos já fazia jornais!...
Mas não teve um ambiente propício?
Sim. Houve o meu bisavô, o meu avô, o meu pai... Havia lá livros... Havia na minha família uma adoração quase religiosa pelo Camilo Castelo Branco. Ainda apanhei histórias sobre os distúrbios, as velhacarias e as coisas que o Camilo fazia lá por Vila Real. Velhacarias não, o termo tem de ser outro... Os desmandos! Eu cresci com o Camilo sempre por perto, e depois lia e gostava imenso...
A gente da sua geração seguiu outros caminhos...
Na minha geração senti-me sempre sozinho.
Mas alguns cresceram nos mesmos ambientes, com as mesmas influências...
Cada um é como é. Em Vila Real o convívio estava baseado em duas coisas: o gosto pelos copos (a boémia possível numa cidade pequenina, de província, fechada) e depois ir jogar futebol para o Calvário (risos).
O seu estilo de vida, que já se esboçara nos últimos anos de liceu em Vila Real, adquire em Lisboa uma forma que é algo mais do que um sfumatto. Aqui inicia a ruptura com qualquer exclusividade profissional. O que lhe apetece são as coisas fáceis, aquelas que lhe permitem experimentar tudo sem a nada se prender. O desenho, que pratica com iniciática assiduidade em publicações como Riso Mundial, Picapau, Cara Alegre, Parada da Paródia, Diário de Lisboa, República, Diário Ilustrado e Mundo Ilustrado, permite-lhe essa relação desprendida com o mundo laboral.
Vai tendo contacto com os desenhadores estrangeiros através dos jornais que vão chegando à capital. Autodidacta, estuda-os, aprende com eles. Começou aí o seu fascínio por Saul Steinberg.
O Steinberg é um génio absoluto, é, seguramente, o artista mais interessante, mais importante de toda a história da arte americana. Que, de resto, não tem história, começou nos anos 40/50... Uma pintura estilo folclórica, à Malhoa, ou menos que isso, à Rosa Ramalho... Depois mitificaram o Andy Warhol e outros... Gajos com uma obrazinha assim assim (e a do Warhol acho-a absolutamente medíocre, detestável, até). Tornaram-nos vedetas porque na América funciona o cacau, o dinheiro. Esqueceram os desenhadores porque os trabalhos eram em A4. Claro, não eram comercializáveis como os quadros de 3 por 4 metros...
A arte está pervertida por várias ideias. Uma delas é o comércio. A crítica, a história da arte, estão ao serviço desses interesses. E chega-se a extremos (estamos no plano zero da estética): esta matulagem com mentalidade de merceeiro chega a isto de dizer "a arte é aquilo que a certo momento se convencione que é arte!" Tudo é arte... É falso! É falso! Isto é falso! Em Paris fiz uma coisa, por irrisão, por gozo... Uma noite qualquer deu-me vontade de cagar e caguei ali no passeio. Com giz fiz um risco à volta e assinei. Olha: obra de arte! (risos) Isto é uma idiotia!... São estórias que a história lavará, saudavelmente.
Em Lisboa experimentou a pintura e foi-se envolvendo ou despoletando publicações culturais. De outubro de 1958 data o n.º 1 (e único) da Coordenada — Cadernos de Convívio literários com capa e coordenação de Agostinho [Vasco] de Castro e onde era redactor outro vilarrealense, o escritor António Cabral. No editorial pode ler-se que «Convívio é um encontro entre jovens escritores e artistas que, lutando até aqui isoladamente, pretendem unir-se para a expansão das suas obras e, juntamente com todos aqueles que se interessam pela cultura, lutar pela concretização de um programa de autêntica divulgação cultural, pondo de parte partidarismos políticos ou religiosos». Um programa actualíssimo, como se vê.
Diferente entre iguais, Vasco surgia aos olhos do Estado como um entre muitos: foi chamado para a tropa em 1960. Inventou padecimentos e conseguiu adiar a ida para Mafra por um ano. 1961 vê-lo-ia integrando um dos primeiros contingentes da guerra colonial se o rapaz não tivesse zarpado para Paris, a cidade-luz
MONTPARNASSE
Foi para Paris em busca de ar que respirar, para se «lavar de tudo o que era português e cheirava a bafio». Ali encontrou, como ele próprio diz, a sua pátria, encontrou «amigos, mulheres, a noite, o prazer, e as artes... todas!».
Em Paris cumpriu o desígnio de qualquer emigrante ou exilado. Experimentou os mais variados trabalhos até descobrir que tinha um modo de sobreviver sem vergar grandemente a espinha, sem vínculo efectivo a nenhum patrão: o desenho. Com este métier, que lhe era agradável, nada custoso, garantia o vil metal que lhe sustentava os dias, e, sem que o soubesse, iniciava a carreira (por mais que o termo lhe desagrade) que lhe há-de dar pôr o nome numa rua (a homenagem póstuma é um dos desportos nacionais...).
O Stuart Carvalhais tem o nome numa rua em Vila Real. O Vasco está-se a ver com o nome numa rua?
Como?! Não me goze... Não me goze... Nem me esteja a empurrar para o buraco, porra! (risos)
Não vê que em Oeiras até erguem estátuas contra a vontade dos artistas vivos? Quer-me parecer que o Vasco não se livrará de ter o nome numa rua de Vila Real. O problema vai estar em saber se será "Rua Vasco de Castro" ou "Rua do Vasco"...
Não goze comigo, por favor... Falemos de outra coisa.
Até poderia ter sido a escrita em jornais a salvá-lo de trabalhos mais árduos, mas não dominava suficientemente o francês. Por isso eram folhas rabiscadas o que levava debaixo do braço quando ia bater às portas das redacções dos jornais a oferecer os seus préstimos. Com bons resultados, porque o desenho beneficiava de muito prestígio nos jornais de França.
Paralelamente, ou principalmente, depois de se instalar em Montparnasse (bairro a que chamaria «mon village»), foi fazendo vida, descobrindo gente, conhecendo os lugares mais interessantes, fazendo activamente a oposição possível ao regime português, namorando uma filha de Sartre... Mas, para lá dos prazeres que obteve, do cinema que chegou a fazer, ou dos méritos do seu panfletarismo anti-salazarista, o que sobressaiu da sua cidadania parisiense foi a colaboração nos jornais franceses. E foram muitos aqueles onde deixou a sua marca: inicialmente L’Humanité, mas depois sucederam-se Le Monde, Figaro-Magazine, L’Unité, L’Actualité, France-Observateur e outros. No L’Unité, enquanto ilustrava a primeira página, François Miterrand escrevia uma nota de análise política e cultural na última, e, por isso, tiveram alguns contactos. Regista-se esta curiosidade pelo pícaro da visita de Miterrand a Portugal, quando este, a um Mário Soares algo incomodado, lhe pergunta se conhecia son ami Vasco...
Mas, por mais que a atmosfera de Paris estivesse nos antípodas da bolorenta existência portuguesa, não houve portuga que resistisse a um prometedor 25 de Abril. Vasco foi um deles. Regressou. De Montparnasse, son village, ficariam as surpreendentes (e deliciosas) crónicas no Diário de Notícias que escreveria mais tarde.
LISBOA
No catálogo Viagens aos Amares da China Vasco confessa que regressou ao país por ingenuidade. E, se ainda se envolveu nalguma militância política, rapidamente se encheu de frustrações e percebeu que, de algum modo, as suas coordenadas ideológicas o ostracizavam. Um novo exílio não tardaria. Mas, antes que a desilusão o tomasse de todo, fez o que sempre fez: jornalismo. Criou ou ajudou a criar jornais e suplementos com muita gente conhecida que ainda hoje se mantém no activo, embora dispersa; escreveu, desenhou... Satirizou. De relevo, para além das crónicas no Diário de Notícias (e do mais que a ignorância dos repórteres não permite realçar) são os perfis que fez para a extinta revista Mais sob o título genérico "Photomaton".
FONTANELAS
Cansado do ambiente lisboeta, refugiou-se em Fontanelas. Antes de tudo, «porque era campo». O transmontano regressa à serrania.
Na verdade, Fontanelas e arredores era campo, mas campo-perto-da-cidade. Como o próprio Vasco explica, «a Praia das Maçãs [ali perto] era um sítio muito cotado já na 1.ª República. Os nossos impressionistas, Malhoas e outros, faziam muitas pinturas da Praia das Maçãs. Colares [outra localidade próxima] era de certo modo um sítio snob». A inteligência, ontem como hoje, tinha ali a sua casinha de fim de semana. Acreditamos que não foram estas as razões que levaram Vasco para aquelas bandas (ele que já se manifestou ruidosamente contra a nova invasão de vip's), mas uma certa proximidade da Serra de Sintra, substituto possível do medieval Trás-os-Montes da sua infância.
Ali, em Fontanelas, Vasco conviveu com um dos mais importantes escritores portugueses do século XX (assumimos a responsabilidade da classificação) — Vergílio Ferreira. O escritor era um habitué do "Zé", onde tinha mesa marcada. No local há uma placa alusiva ao facto com uma reprodução da caricatura que Vasco lhe fez.
No retiro sintrense, Vasco de Castro regressou à pintura. Montou ateliê e soltou os pincéis. Fomos lá para ver os seus trabalhos, mas acabámos a provar um tinto de Fontanelas (arenoso, portanto). Entre dois goles falámos.
Picasso é, para mim, o pintor nuclear do século XX.
Também tem uma predilecção especial pelo Bacon, não tem?
Pois. O problema é o das grandes famílias. O Bacon é o Picasso com alucinógenos e com sexualidade homo.
E isso tem influência na pintura?
Claro. A sexualidade tem influência em tudo, também na pintura. Ainda há dias li uma frase do Picasso (daquelas coisas que às vezes são tiradas do contexto), que dizia: "A arte toda é sexual", ou coisa parecida.
Aquela "desfiguração", se assim se lhe pode chamar, que o Vasco usa nas suas pinturas à semelhança do Bacon é só uma inspiração estética ou é algo mais?
Uma pessoa quando faz qualquer coisa, pintura, desenho, seja o que for, preenche-a conforme a sua personalidade e a sua sensibilidade artística, de criador. Só as criancinhas fazem arte ingénua. O adulto já está informado de muitas coisas, portanto encontrou a sua família. Eu sou, se não é muita petulância, filho do Bacon e do Picasso.
Mas há uma intenção de desfigurar, ou de buscar a figura por trás de...
O problema da transformação... Toda a arte é transformação, é deformação... Há uma ideia absolutamente errada e bicharoca em termos estéticos de que a arte é a fidelidade ao real. Não é! O real é uma ficção... estética. Um quadro não é uma representação passiva do visível; é uma representação conforme a história estética, a sensibilidade, as capacidades, as ideias criadoras, o talento de alguém. Agora, o que devemos entender é que houve qualquer coisa, que tomou fôlego no século XIX, que é a transformação, o absurdo, e isso foi feito em primeira mão pelos desenhadores satíricos.
O desenho satírico é o estilete sobre o abcesso. A ver se a merda salta, o pus...
Nós temos defeitos genéticos, somos muito maneiristas. Temos a tendência normal de fazer o bonitinho, o amaciado. O desenho satírico tem de ser o mais cru possível, o mais fero... Claro que tem de ter algumas regras estéticas, estilísticas.
E como vê o desenho satírico actualmente em Portugal?
Eu acho que, de uma maneira geral, o desenho satírico cá é mais ilustração do que desenho satírico. Ilustração de uma ideia. Há uma ideia e há a ilustração daquela ideia. O desenho satírico tem a obrigação de ser ele mesmo a informação primeira, e não qualquer texto.
Antes que este relato se pareça com a crónica póstuma de Vasco de Castro, seja-nos permitido dizer que o transmontano exilou-se mas não se reformou. Dos desenhos e da vida. Todas as semanas, religiosamente aos Domingos, os desenhos de Vasco dizem-nos de Portugal (e do mundo) no jornal Público. Mas, para além disso, criou um site na Internet (www.vascoSATIRI.COM) onde mensalmente comenta a actualidade política e social sem os pruridos da imprensa diária. E, se é capaz de deixar o presidente da República pendurado nas exposições (como aconteceu na sua última, este ano, promovida pelo Museu da Imprensa), não se inibe de envergonhar os conterrâneos repórteres dando-lhes lições de como bem comer e melhor beber. Coisa que, o leitor sabe, não é fácil...
Vasco, que numa versão resumida da lusa história nos tinha alertado que «Portugal é um país de desconfiar», prepara novas actividades subversivas. A deontologia impede-nos de as anunciar. Mas têm a ver com a sua opinião sobre a actualidade política que transcrevemos no último trecho da entrevista.
Como é que vê a actualidade política uma pessoa que viveu o Maio de 68?
Lá estão vocês outra vez... Eh pá, tratem-me bem! Não me insultem (risos)!
Como é que se situa politicamente nos dias de hoje?
Bem, o melhor é bebermos mais um copo...
Bebemos. Vários.
NOTA: Parte dos dados biográficos desta reportagem foram retirados dos Catálogos Vasco — Viagens ao Amares da China (Prémio Stuart-Regisconta '87) e Vasco — Desenhos Satíricos, 1955 – 2000 (Museu Nacional da Imprensa).