Consultar o excelente blogue dedicado à obra de António Reis:
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Reproduz-se a seguir o texto de Mathias Lavin, retirado de um das edições da revista Docs.pt :
Jaime de António Reis (1974)
A VIDA DE UM HOMEM INFAME
Jaime pertence à categoria pouco frequente de filmes cuja singularidade é quase ofuscante. Não a essa “aristocracia de obras primas” de que falava Susan Sontag a propósito de Hitler de Syberberg, nem a essas obras menores das quais muitos cinéfilos são apreciadores, mas antes à constelação desses filmes solitários e frágeis que figuram à margem de toda a genealogia estilística e quase sem linhagem. Hoje estamos algo esquecidos de que nos anos 70, sobretudo depois da realização de Trás-os-Montes (1976), António Reis era considerado no discurso crítico, tanto em Portugal como no estrangeiro, o realizador português mais importante juntamente com Oliveira – à frente de Paulo Rocha, Fernando Lopes, ou César Monteiro, que avançará para primeiro plano durante o decénio seguinte. Se a morte prematura do cineasta e o número diminuto das suas obras lhe conferem desde logo um estatuto quase secreto, à distância de 30 anos a emoção crítica provocada por Jaime torna-se ainda mais surpreendente.
Jaime de António Reis (1974)
A VIDA DE UM HOMEM INFAME
Jaime pertence à categoria pouco frequente de filmes cuja singularidade é quase ofuscante. Não a essa “aristocracia de obras primas” de que falava Susan Sontag a propósito de Hitler de Syberberg, nem a essas obras menores das quais muitos cinéfilos são apreciadores, mas antes à constelação desses filmes solitários e frágeis que figuram à margem de toda a genealogia estilística e quase sem linhagem. Hoje estamos algo esquecidos de que nos anos 70, sobretudo depois da realização de Trás-os-Montes (1976), António Reis era considerado no discurso crítico, tanto em Portugal como no estrangeiro, o realizador português mais importante juntamente com Oliveira – à frente de Paulo Rocha, Fernando Lopes, ou César Monteiro, que avançará para primeiro plano durante o decénio seguinte. Se a morte prematura do cineasta e o número diminuto das suas obras lhe conferem desde logo um estatuto quase secreto, à distância de 30 anos a emoção crítica provocada por Jaime torna-se ainda mais surpreendente.
Oriundo do Porto, Reis iniciou a sua actividade cinematográfica como assistente de Oliveira em Acto da Primavera (1963) e como argumentista de Mudar de Vida (1967) de Rocha, realizando três curtas-metragens documentais nos anos 60. É preciso lembrar igualmente que, desde finais dos anos 50, Reis escrevia poesia, uma prática que não deixou de se reflectir no conjunto da sua obra. Porque, se por um lado, podemos colocar Jaime na linha dos documentários que tentaram transformar a visão comum sobre a loucura, por outro, a sua vertente poética distingue-o de Matti da Slegare (Agosti/Bellocchio/Petraglia/Rulli, 1975), Animación en la Sala de Espera (Coronado/Rodriguez Sans, 1981) ou San Clemente (Depardon-Ristelhueber, 1982).
Para evocar Jaime, que deu a conhecer o nome de António Reis, um quase estreante de 47 anos, e o da sua companheira e colaboradora, Margarida Cordeiro, deve referir-se o contexto da sua realização. Filmado durante o ano de 1973, estreado de forma providencial logo após a revolução, no início de Maio de 1974, o filme esteve em adequação perfeita com o seu tempo. Compreende-se de que maneira o retrato de Jaime Fernandes - um camponês originário da região da Covilhã, que tendo passado quase 30 anos num asilo, onde morreu em 1969, começou subitamente a desenhar e a pintar depois dos 60, na mais pura tradição da arte bruta - podia rimar com a época da anti-psiquiatria, da crítica da clausura e das instituições.
Ao rever o filme, torna-se evidente a proximidade com um dos mais belos textos de Michel Foucault, La vie des hommes infames, ambos atendendo às “existências obscuras e infortunadas”. Mais ainda, no contexto português, o filme (o início em particular) oferece uma metáfora suficientemente legível de um país sufocado pelo Salazarismo – como o fará alguns meses mais tarde o Benilde de Oliveira num registo diferente. E compreende-se que esta obra, apesar da sua curta duração, tenha suscitado inúmeras discussões ao longo de toda a Primavera de 74, como se o silêncio ao qual estavam confinados os loucos tivesse um valor de metonímia para todo um povo e devesse ser compensado por uma libertação geral da palavra.
Após uma fotografia de Jaime, e um plano sobre as suas notas, o filme abre-se no pátio circular do Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. Estes planos utilizam efeitos de íris que, mais do que um processo do cinema mudo, evocam uma visão através de um óculo de alcance ou de um buraco de fechadura. As poucas silhuetas pressentidas, apanhadas na sua inacção ou na repetição de gestos simples, parecem remeter para um universo carcerário. Se a entrada no asilo se faz por arrombamento, a inteligência do cineasta reside na escolha de não associar a obsessão de um olhar e o carácter espectacular do que é mostrado. Vemo-lo claramente nesse plano onde as sombras imóveis de três pacientes são projectadas sobre uma parede, enquanto um médico de bata branca atravessa o espaço em diagonal. Não se trata de descrever, nem de denunciar, mas de recolher e de produzir um conjunto de signos com carácter fragmentário assumido. Nessas imagens em parte encobertas, nesses corpos filmados à distância, ou nessas sombras, inscreve-se a dimensão de vestígio do filme. Dessa maneira, emergem os magros rastos da vida de Jaime no seio da instituição asilar, como outros tantos retalhos da grande História.
O filme é pontuado regularmente por imagens mostrando a escrita de Jaime e as suas fórmulas opacas, pelos seus desenhos (personagens, animais), ou ainda por documentos que emanam da instituição médica (notas, gráficos), diversas marcas dessa existência de clausura. Uma fórmula anotada por Jaime é particularmente tocante: “morrereis como estes retratos” – logo depois, Reis mostra detalhes de um desenho, um animal (difícil de identificar) levado pela trela por um personagem. Estariam as imagens, elas próprias, condenadas à morte? O risco existe e toda a obra de Reis está assombrada pela angústia de ver desaparecer o que foi gravado pela câmara, mas o filme não coloca a morte como uma paragem definitiva: “oito vezes Jaime já foi morto aqui” adianta um outro fragmento de texto. A morte torna possível o renascimento como indica uma das sequências mais impressionantes do filme: filmado de costas, um homem vestido com uma capa de cores faz um gesto com a mão em direcção a uma porta do asilo enquadrada por dois pacientes deitados. Essa benção profana, quase tão miraculosa como a de Johannes em A Palavra [Carl T. Dreyer, 1955], faz abrir a porta do edifício e, após um raccord no eixo, um médico sai, precipitando-se então a câmara através da abertura para conduzir a uma banheira, que passa a ocupar todo o plano.
Reis não se contenta com a imagem, apesar de tudo muito atraente, deste lugar de cura e de tortura. Ele associa a esta imagem o som do vento e, sempre com esse mesmo som, faz o encadeamento com planos de uma barca, depois de uma torrente. Neste fragmento, vemos como a dimensão política (fazer justiça ao que se manteve na noite da clausura) é utilizada juntamente com um princípio de movimento poético: o vento que reforçava o aspecto desértico do asilo acompanha o fluxo da corrente, a banheira transforma-se em embarcação, etc.. Não se trata de uma estrita equivalência, mas sim de um princípio de encadeamento que se encontra frequentemente no filme, seja pelo parentesco das formas (por exemplo, um pouco mais adiante, uma panorâmica sobre uma colina e depois sobre um cavalo) ou pelo choque de elementos (especialmente a dissociação entre som e imagem). Reis e Cordeiro dão assim a experimentar uma sensação de co-dependência dos diferentes elementos filmados.
Este último ponto permite atenuar uma interpretação frequente que considera Jaime como um meio de encontrar, através de um certo número de artifícios, a subjectividade de um alienado. Se, por um lado, essa leitura se justifica, nela falta todavia um elemento essencial: tudo aponta no filme para a recusa de uma fronteira entre objectividade e subjectividade – como entre normalidade/ anormalidade – o que faz com que a identificação de um ponto de vista, ainda que delirante, se torne problemática. Trata-se de operar a passagem do ponto de vista à visão, para tornar sensível essa co-dependência dos dois elementos separados pela experiência quotidiana. Assim, um outro olhar é frequentemente lançado sobre as coisas do mundo e não apenas sobre o asilo. Vemo-lo, por exemplo, nos planos filmados num interior sombrio (sem dúvida a casa da esposa de Jaime), onde a câmara se demora sobre réstias de cebolas, um monte de espigas de milho, ou uma pipa de vinho. Estas coisas vulgares tornam-se tão estranhas como as maçãs artificiais de tamanho desproporcionado ou a cabra imóvel num palheiro (o do asilo ou o da casa de família?). E poderíamos continuar ainda a enumerar outras imagens: o curso de um ribeiro, um campo de flores atravessado por uma câmara que enlouquece, uma tigela vazia poisada sobre uma mesa; tantos planos que ficam fortemente impregnados na memória devido à sua estranheza, e à sua quase novidade.
Numa entrevista feita por João César Monteiro no momento da estreia do filme, Reis compara as criações de Jaime às do fauvismo e do expressionismo - apesar dele não ser contemporâneo destes dois movimentos pictóricos - afirmando: “o seu tempo histórico e psicológico era outro.” Evidentemente, esta observação remete para a arte de um cineasta que se quis sempre “excentrado” e cujo lado inactual convida à redescoberta.
Mais ainda, parece-me que a herança de António Reis e de Margarida Cordeiro mereceria finalmente ser assumida. Seguindo este exemplo maior, os realizadores de documentário não deveriam renunciar à dimensão poética da sua arte. Poderiam autorizar-se uma força visionária, não se contentando com uma atitude de aceitação ou de denúncia do que existe. Isto, em suma, para seguir o programa de Foucault que comecei por usar para descrever a sua afinidade com Jaime: “fazer aparecer o que não aparece – não pode ou não deve aparecer: dizer os últimos níveis, os mais ténues do real.” •
Referências:
Anabela Moutinho e Maria da Graça Lobo (org.), António Reis e Margarida Cordeiro – A poesia da terra, Cineclube de Faro, 1997. [Uma obra de referência de grande qualidade]
ANTÓNIO REIS
António Reis (1927-1991) chega ao cinema nos anos 60, quando já exercia actividade como pintor e poeta. Após curtas-metragens documentários, chama a atenção para o seu trabalho com Jaime (1974), a que se seguiram três longas-metragens (Trás-os-Montes, Ana e Rosa de Areia), realizadas com a sua mulher Margarida Cordeiro. As suas obras, oscilando entre o ensaio e o poema, são consagradas à cultura popular de Trás-os-Montes. Reis foi igualmente um grande pedagogo que formou a nova geração de cineastas portugueses na Escola Superior de Teatro e Cinema.
MATHIAS LAVIN
Mathias Lavin, doutor em cinema pela universidade Paris III (tese consagrada à obra de Manoel de Oliveira), lecciona Estética e História do Cinema (Lyon II e Paris III). Autor de diversos artigos, nomeadamente para as revistas Trafic, Cinergon, Vertigo; chefe co-redactor da revista de literatura Action Restreinte.