Reprodução de um texto de Ana Cristina Pereira publicado na edição de 15 de Out. no jornal Público com o título «Boal(filho) ou o teatro como espaço para ensaiar a mudança de atitude»
O Teatro do Oprimido cresce em toda a Europa, incluindo Portugal. Talvez seja "um sinal de que a democracia representativa não está a funcionar direito"
Os alunos, quase todos do sexo feminino, formam um círculo. O seu olhar alonga-se para Julian Boal, filho de Augusto Boal, monstro sagrado do Teatro do Oprimido (TO). Enquanto explica o exercício, dois improvisados assistentes colocam nomes de profissões e de figuras públicas atrás das costas de cada um. Cada um deverá tratar os outros como se fossem o que está escrito no papel.
Três coisas que o leitor deve saber antes de continuar a ler este texto:
a) isto é um workshop de TO, organizado pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto;
b) o teatro, segundo Augusto Boal, "é sempre uma acção política";
c) o TO é um conjunto de exercícios, jogos e técnicas que ambiciona "ensaiar a revolução".
Os alunos tentam adequar o seu comportamento a quem encontram. Há tapar de narizes frente ao lixeiro, olhares de desprezo para a prostituta, cuspidelas a Rui Rio, pedidos de autógrafo à Madonna... A partir das reacções que recebe, cada um tenta adivinhar a sua própria identidade. Nem todos conseguem. O polícia pensa que é ladrão, o Noddy pensa que é a Floribella, o gerente bancário pensa que é uma alta individualidade das finanças... Elucidativo?
O exercício pode originar um debate sobre conceitos e preconceitos. "O estereótipo é uma força efectiva", nota Julian Boal. "Ele não é verdadeiro na essência, é verdadeiro estruturalmente. O brasileiro não é em si malandro, mas o estereótipo também é uma força que projecta, que também faz com que a pessoa se conforme a esse estereótipo", exemplifica.
Nos primeiros anos, Julian trabalhava apenas como assistente do pai. Há seis anos, criou o seu próprio grupo de TO - emancipou-se, embora mantenha parcerias com o pai. Viaja muito. Faz workshops como este nas mais diversas partes do mundo. "Está a haver uma explosão" de TO. Talvez seja "um sinal de que a democracia representativa não está a funcionar direito". Em diversos países da Europa, "como a Alemanha, a França ou o Reino Unido, parece igual" votar num partido ou noutro. O TO seria então "uma reacção a essa falta de espaços democráticos".
O teatro-fórum
A técnica mais usada em todo o mundo é o teatro-fórum. Em que consiste? Há um espectáculo baseado em factos que, se não aconteceram, podiam ter acontecido; no fim, os espectadores, mediados por um "coringa", são convidados a entrar no espectáculo, podem mudar cena a cena, resolver o conflito. A ideia é transformar o espectador em protagonista da acção dramática e, desse modo, ajudá-lo "a preparar acções reais que o conduzam à libertação".
Julian mora em França. Trabalha há dois anos com imigrantes da Argélia e do Mali, a maior parte clandestinos, residentes num albergue. O seu grupo visitou-os umas 20 vezes antes de apresentar o primeiro tema: segurança laboral. A primeira sessão "foi intensa e maravilha ao mesmo tempo". No debate, um imigrante contou que lhe deram só uma luva para manipular material tóxico. "Ele disse: "O patrão é como amigo que dá comida, não se pode reclamar." Fiquei sem saber o que fazer, felizmente outro interrompeu e disse: "Não é assim, o trabalhador tem direitos"."
"Uma sessão só não basta" para ajudar a libertar um oprimido, como não basta ler um livro ou participar num debate. "Se eu abro o espaço da discussão política, sinto-me responsável por que as continuem a debater", refere, enquanto os alunos preparam outro exercício no tapete. "Não abro para fechar logo. Trabalho muito tempo com as pessoas".
O que consegui, afinal, ao fim de dois anos, no albergue? "Acho que há uma circulação de palavra que não havia. No início, uns não tomavam a palavra. Agora, tomam. Os mais para o branco com papéis ainda falam mais do que os não tão brancos sem papéis. Mas hoje há uma situação mais igualitária. Havia muita diferença e muito grande entre argelinos e malianos." Julian observa agora menos discriminação a diversos níveis, mais partilha.
A utopia
De que forma o TO muda a realidade? "Meu pai fala em ensaio da revolução." Ao entrar em cena, o espectador "aprende a detectar as armas do opressor e treina tácticas e estratégias de luta, treina para uma transformação". Essa força "tem de ser usada fora do fórum, porque é fora do fórum que se faz a mudança". Experiência mais marcante? "Talvez descobrir Jana Sanskriti", na Índia. "Usam o teatro do oprimido não só para se expressar, também para se emancipar." Isso "só tem paralelo no Brasil, com o Movimento dos Sem-Terra (MST). Mas o MST constituiu-se como movimento e criou grupos de TO, enquanto na Índia foi através de TO que eles se constituíram como movimento. É um movimento enorme. Há uma rede, na Índia inteira são três milhões".
A utopia é "o mundo parecer-se com um teatro-fórum". Tradução: "Um mundo em que as pessoas podem experimentar. Em que todas as relações podem ser discutidas, criticadas. Um mundo em que, de facto, a pessoa possa argumentar." Embora a comunicação esteja longe de resolver tudo.
O Teatro do Oprimido cresce em toda a Europa, incluindo Portugal. Talvez seja "um sinal de que a democracia representativa não está a funcionar direito"
Os alunos, quase todos do sexo feminino, formam um círculo. O seu olhar alonga-se para Julian Boal, filho de Augusto Boal, monstro sagrado do Teatro do Oprimido (TO). Enquanto explica o exercício, dois improvisados assistentes colocam nomes de profissões e de figuras públicas atrás das costas de cada um. Cada um deverá tratar os outros como se fossem o que está escrito no papel.
Três coisas que o leitor deve saber antes de continuar a ler este texto:
a) isto é um workshop de TO, organizado pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto;
b) o teatro, segundo Augusto Boal, "é sempre uma acção política";
c) o TO é um conjunto de exercícios, jogos e técnicas que ambiciona "ensaiar a revolução".
Os alunos tentam adequar o seu comportamento a quem encontram. Há tapar de narizes frente ao lixeiro, olhares de desprezo para a prostituta, cuspidelas a Rui Rio, pedidos de autógrafo à Madonna... A partir das reacções que recebe, cada um tenta adivinhar a sua própria identidade. Nem todos conseguem. O polícia pensa que é ladrão, o Noddy pensa que é a Floribella, o gerente bancário pensa que é uma alta individualidade das finanças... Elucidativo?
O exercício pode originar um debate sobre conceitos e preconceitos. "O estereótipo é uma força efectiva", nota Julian Boal. "Ele não é verdadeiro na essência, é verdadeiro estruturalmente. O brasileiro não é em si malandro, mas o estereótipo também é uma força que projecta, que também faz com que a pessoa se conforme a esse estereótipo", exemplifica.
Nos primeiros anos, Julian trabalhava apenas como assistente do pai. Há seis anos, criou o seu próprio grupo de TO - emancipou-se, embora mantenha parcerias com o pai. Viaja muito. Faz workshops como este nas mais diversas partes do mundo. "Está a haver uma explosão" de TO. Talvez seja "um sinal de que a democracia representativa não está a funcionar direito". Em diversos países da Europa, "como a Alemanha, a França ou o Reino Unido, parece igual" votar num partido ou noutro. O TO seria então "uma reacção a essa falta de espaços democráticos".
O teatro-fórum
A técnica mais usada em todo o mundo é o teatro-fórum. Em que consiste? Há um espectáculo baseado em factos que, se não aconteceram, podiam ter acontecido; no fim, os espectadores, mediados por um "coringa", são convidados a entrar no espectáculo, podem mudar cena a cena, resolver o conflito. A ideia é transformar o espectador em protagonista da acção dramática e, desse modo, ajudá-lo "a preparar acções reais que o conduzam à libertação".
Julian mora em França. Trabalha há dois anos com imigrantes da Argélia e do Mali, a maior parte clandestinos, residentes num albergue. O seu grupo visitou-os umas 20 vezes antes de apresentar o primeiro tema: segurança laboral. A primeira sessão "foi intensa e maravilha ao mesmo tempo". No debate, um imigrante contou que lhe deram só uma luva para manipular material tóxico. "Ele disse: "O patrão é como amigo que dá comida, não se pode reclamar." Fiquei sem saber o que fazer, felizmente outro interrompeu e disse: "Não é assim, o trabalhador tem direitos"."
"Uma sessão só não basta" para ajudar a libertar um oprimido, como não basta ler um livro ou participar num debate. "Se eu abro o espaço da discussão política, sinto-me responsável por que as continuem a debater", refere, enquanto os alunos preparam outro exercício no tapete. "Não abro para fechar logo. Trabalho muito tempo com as pessoas".
O que consegui, afinal, ao fim de dois anos, no albergue? "Acho que há uma circulação de palavra que não havia. No início, uns não tomavam a palavra. Agora, tomam. Os mais para o branco com papéis ainda falam mais do que os não tão brancos sem papéis. Mas hoje há uma situação mais igualitária. Havia muita diferença e muito grande entre argelinos e malianos." Julian observa agora menos discriminação a diversos níveis, mais partilha.
A utopia
De que forma o TO muda a realidade? "Meu pai fala em ensaio da revolução." Ao entrar em cena, o espectador "aprende a detectar as armas do opressor e treina tácticas e estratégias de luta, treina para uma transformação". Essa força "tem de ser usada fora do fórum, porque é fora do fórum que se faz a mudança". Experiência mais marcante? "Talvez descobrir Jana Sanskriti", na Índia. "Usam o teatro do oprimido não só para se expressar, também para se emancipar." Isso "só tem paralelo no Brasil, com o Movimento dos Sem-Terra (MST). Mas o MST constituiu-se como movimento e criou grupos de TO, enquanto na Índia foi através de TO que eles se constituíram como movimento. É um movimento enorme. Há uma rede, na Índia inteira são três milhões".
A utopia é "o mundo parecer-se com um teatro-fórum". Tradução: "Um mundo em que as pessoas podem experimentar. Em que todas as relações podem ser discutidas, criticadas. Um mundo em que, de facto, a pessoa possa argumentar." Embora a comunicação esteja longe de resolver tudo.