15.6.07

Os novos dez mandamentos

por Jurandir Freire Costa - Psicanalista, professor do Instituto de Medicina Social da UERJ, em texto publicado no caderno Mais da Folha de São de S.Paulo de 26 Dez. de 1999

1. Amarás o universo, a natureza e a vida sobre todas as coisas.
(Francisco de Assis)

2. Amarás a ti mesmo com o esquecimento e o mundo com a lembrança. (Buda, Hannah Arendt)

3. Darás sempre início ao novo, pois os humanos, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para recomeçar. (Agostinho de Hipona, Hannah Arendt)

4. Não forjarás ideais contrários à vida e à alegria de viver.
(Séneca, Lucrécio, Nietzsche)

5. Não te torturarás com o passado e com o futuro para não sofreres em vão. (Buda, Séneca, Nietzsche)

6. Só desejarás a justa medida das riquezas: primeiro, o necessário; segundo, o suficiente. (Séneca)

7. Não dirás que tua vida é ou foi frustrada; vida alguma jamais se frustra. (Séneca, Nietzsche, Henry James)

8. Não obedecerás sem pensar no que te leva a obedecer.
(Hannah Arendt, Winnicott)

9. Não dirás que tua verdade é a única, e sim aquela em que mais acreditas. (William James)

10. Não eternizarás esse decálogo. (todas as vítimas da intolerância)



Agora comparem este novos mandamentos com os velhos mandamentos bíblicos e vejam qual dos dois decálogos é o melhor.


Recorde-se que os «Dez Mandamentos» é o nome dado aos 10 mandamentos ou ordens que, segundo a Bíblia, teriam sido originalmente escritos por Deus em tábuas de pedra e entregues ao profeta Moisés. As tábuas de pedra originais foram quebradas, de modo que foram feitas cópia. Encontramos primeiramente os Dez Mandamentos em Êxodo 20:2-17. É repetido novamente em Deuteronómio 5:6-21, usando palavras similares.
Decálogo significa dez palavras (Ex 34,28). Estas palavras resumem a Lei, dada por Deus ao povo de Israel, no contexto da Aliança, por meio de Moisés. Este, ao apresentar os mandamentos do amor a Deus (os quatro primeiros) e ao próximo (os outros seis), traça, para o povo eleito e para cada um em particular, o caminho duma vida liberta da escravidão do pecado.




Os Dez Mandamentos para o catecismo católico ( A Igreja reconhece ao Decálogo uma importância e um significado basilares. Os cristãos estão obrigados a observá-lo) :
1. Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas.
2. Não invocar o Seu santo nome em vão.
3. Guardar os domingos e festas.
4. Honrar pai e mãe (e os outros legítimos superiores).
5. Não matar (nem causar outro dano, no corpo ou na alma, a si mesmo ou ao próximo).
6. Não pecar contra a castidade (em palavras ou em obras).
7. Não furtar (nem injustamente reter ou danificar os bens do próximo).
8. Não levantar falsos testemunhos (nem de qualquer outro modo faltar à verdade ou difamar o próximo)
9. Não desejar a mulher do próximo.
10. Não cobiçar as coisas alheias.





Entrevista com Jurandir Freire Costa retirada
daqui


A violência é resultado da desigualdade
(Para o psicanalista a responsabilidade é dos poderosos )

É devastadora a análise que o psicanalista Jurandir Freire Costa faz da elite brasileira em seu décimo livro, O vestígio e a aura, recém-lançado pela editora Garamond. Sobre os ombros dos poderosos pesa, no seu entender, a responsabilidade pelas principais mazelas sociais que atormentam o País, em especial a altíssima criminalidade. Não seria apenas a cruel concentração de renda que gera o crime, como se repete à exaustão, mas também a adoção de um comportamento em que “sociabilidade e moralidade se tornaram adversárias”. Jurandir, 60 anos, não usa meias-palavras. “Destravamos o freio de uma engrenagem alucinada, que tripudia sobre séculos de ideais democráticos e humanitários, só porque alguns decidiram fazer de seus prazeres o umbigo do mundo”, escreve. Essa subordinação à moral do entretenimento levou a elite a descartar valores tradicionais, a cultivar a obsessão com o corpo, a consumir drogas sem limites.
A crise moral fez com que a autoridade fosse substituída pela celebridade. Nas telas de tevê ou nas colunas sociais desfilam personagens que são vistos com inveja, mas não com respeito, já que muitas vezes são considerados venais, levianos e corruptos. Nem a autoridade dos pais se manteve, já que estes se recusam a ser vistos como portadores de tradições. Querem ser juvenis a todo custo e ocupar o mesmo espaço dos filhos, que acabam por perder referências fundamentais.
Um dos principais pensadores brasileiros da atualidade, Jurandir diz que sua crítica não tem nada a ver com as idéias moralistas de quem quer o retorno a um passado repressor. Defende a busca do prazer, desde que isso não represente a ruptura do compromisso social. Mas afirma que a crise moral pode ser superada. “Quando fazemos a boa pergunta acabamos encontrando a solução.”

ISTOÉ – A alta criminalidade é o maior sintoma da crise moral que o sr. trata
em seu livro?
Jurandir Freire Costa – Sem dúvida, sobretudo nas grandes cidades. A violência é resultado da desigualdade. Mas não existe fator pessoal nem social que tenha causa única. Desigualdade e concentração de renda sempre existiram neste país. Só posso entender que está ocorrendo algo de ordem moral que faz com que as pessoas não se submetam mais, não se organizem politicamente em
torno de utopias, não pensem em encontrar outra saída a não ser a violência.
E quem dá as regras da insubordinação violenta são as próprias elites. Isso choca. É diferente dos tempos da aristocracia, quando a plebe jogava pedras contra o poder, e do operariado do século XIX, começo do XX, que tinha as idéias socialistas e ia contra o molde de vida dos privilegiados.


ISTOÉ – É o consumo de drogas que faz a elite ficar “de joelhos” diante dos miseráveis, como o sr. escreve?
Jurandir – É uma relação que vira a cultura de cabeça para baixo. Antes, quem tinha autoridade e poder não pedia a outro um meio que o tornasse feliz, como acontece agora. É uma ruptura completa. Os líderes políticos, espirituais, científicos eram fontes autônomas de satisfação. Eles detinham a chave do que as pessoas queriam. Não se pode inverter essa relação e achar que a cultura ficará em ordem. Quem sabe que monopoliza sua felicidade dá as cartas e não o respeita. Chega ao ponto de não respeitar a vida. Nos assaltos em que as pessoas são mortas, nota-se que a vida do outro é irrelevante. Que valor aquela pessoa tem para quem está com a arma na mão, a não ser o dinheiro? Nenhum. É vista como integrante de uma elite que não se respeita, que diz o tempo todo que depende daquele miserável. É encarada como alguém que vive da superexploração dos miseráveis. Essa distorção não começou com o miserável que porta a arma, mas sim com a elite que deu a norma da destruição. Não há um grupo para orientar a sociedade, buscar uma trégua. O grupo dos miseráveis e o grupo da elite querem a mesma coisa. Os dois buscam ser irresponsáveis diante da vida, gozar o quanto puderem. Não têm compromisso com os filhos e ironizam todo tipo de preocupação com o outro. Não existe guerra civil, mas acordo de matança mútua.


ISTOÉ – A elite não tem mais autoridade?
Jurandir – Poder sem autoridade é uma coisa nova na nossa cultura. Quem está embaixo não respeita mais quem está em cima e não é somente pelo consumo de drogas. Antes, a autoridade vinha de pessoas ou instituições com poder político, econômico ou social que se conduziam de forma a merecer o respeito e a admiração. Hoje, quem está no topo do poder não tem mais a admiração moral. Acredita-se que essas pessoas estão lá porque são levianas, venais, em alguns casos corruptas. É a fratura entre a base da ascensão social e a base de valores. Essas figuras inspiram ao mesmo tempo inveja e desprezo. Inveja pelas posses materiais e pelo poder social. Desprezo porque todos sabem que aquelas pessoas não têm mérito. Para chegar até lá, sobem de qualquer jeito. A cultura do espetáculo pede a exposição: aparecer independentemente do talento, do esforço e da disciplina.


ISTOÉ – O que a cultura do bem-estar, do culto ao corpo, tem a ver com essa situação?
Jurandir – Para o grupo formador de opinião, mudou o ideal de felicidade, que hoje é o bem-estar corporal, o prazer físico. Além desse ideal de felicidade sensorial, há uma idéia da vida como entretenimento. Ou seja, a pessoa deixa de pensar nas consequências morais do que faz. Quem compra droga simplesmente desliga o botão que avisa qual será a consequência disso. Parece que tudo é uma brincadeira. Multidões de pessoas que deveriam ter responsabilidade agem dessa forma. Na moral do espetáculo, o outro é sempre o responsável pelas mazelas e não eu. Eu estou corrompendo, sou venal, sou leviano, mas o que eu faço não tem nenhuma consequência. O que o vizinho faz com certeza terá. É uma posição típica dessa falta de compromisso.


ISTOÉ – A busca do prazer não é um direito inalienável?
Jurandir – Prazer não é incompatível com compromisso social. Ninguém aceita a visão moralista de condenação do prazer. Com razão. Mas o prazer da droga, que as pessoas estão se matando para ter, é pífio. O prazer físico torna a pessoa dependente do aqui e do agora porque o corpo só é estimulado por algo presente. Cria-se uma servidão diante do objeto que contrasta com o desejo de autonomia. É um prazer ilusório. Quem diz que é bom é a moral do espetáculo. O viciado em cocaína, por exemplo, passa a não sentir prazer com mais nada. Vive da angústia da próxima dose. Já o usuário social, ao colaborar com o comércio ilegal de drogas e com a marginalidade urbana, paga um preço muito caro: está se restringindo. Não pode andar com liberdade. Nem seu filho. Tem de gastar mais com mecanismos que segurem sua vida ou sua propriedade. Passa a viver numa sociedade sitiada, situação que o dinheiro dele financia.


ISTOÉ – A descriminalização das drogas resolveria esse problema?
Jurandir – Ela pode acarretar dois tipos de consequências. Primeiro, as pessoas começariam a usar socialmente e só alguns se tornariam adictos, como acontece com o álcool. Na segunda possibilidade, devemos levar em conta que a sociedade em que vivemos tende a consumir tudo de forma compulsiva. Nesse caso, correríamos o risco de uma catástrofe, como aconteceu com o consumo de ópio na China. É uma grande discussão e deve ser levada à frente.


ISTOÉ – Como a mídia colabora para a crise moral?
Jurandir – Um dos mecanismos é o tom de isenção com que tudo isso é apresentado. De um lado faz a campanha antidrogas e de outro apresenta um artista que faz propaganda de drogas. Tudo é igual. Há também o mecanismo de informação, que é servida às enxurradas. Isso prejudica o tempo de formação de convicção que a cultura do livro permitia. A mídia vive de moda e é importante que você não tenha convicção para que seja possível mudar a moda de hoje para amanhã. Sobretudo na cabeça das crianças e dos adolescentes. É desalentador. Se troco todos os dias de valor, não posso ter responsabilidade.


ISTOÉ – A psicanálise, principalmente nos anos 70, teve também responsabilidade nisso, ao incentivar uma certa irresponsabilidade? Costumava-se dizer: não se culpe. A religião já lhe culpou tanto...
Jurandir – Com certeza. Foi um componente a mais a maneira como ela foi apresentada culturalmente, como foi apropriada. Parecia que era somente incentivar a pessoa a encontrar o próprio desejo e o próprio prazer. Um pouco de “irresponsabilização”, a pretexto de que as pessoas já tinham sido muito culpadas. Isso é tudo uma tolice. Não tem nada a ver com o que Freud pensava. Ele nunca imaginou a vida como uma Disneylândia. As noções fundamentais dele são as que dizem que nada existe de mais importante do que a responsabilidade do sujeito para consigo e para com o outro.

ISTOÉ – Qual seria a conduta desejáveldas instituições e das pessoas que detêm a autoridade?
Jurandir – Primeiro, deve haver respeito ao sofrimento e à vida do outro. Isso é básico. Segundo, com os preceitos do iluminismo, que são justiça e decência. E, depois, o direito à felicidade de cada um. Além disso, é preciso retomar a discussão da educação no nível da família e das escolas. A quantidade de pessoas apresentadas como tendo sucesso é mínima. Não vai caber todo mundo. Então, a vida dela sempre aparecerá como algo miserável, sem glamour. Se antes as pessoas almejavam ser íntegras, solidárias, honestas como foram seus pais, hoje isso parece não ter mais valor. Dizia-se que não se pode fazer qualquer coisa para subir na vida. Hoje, as pessoas fazem qualquer coisa para subir na vida e ainda são apontadas como exemplo.

ISTOÉ – O sr. detecta a “juvenilização” dos pais, que passam a disputar o mesmo espaço dos filhos.
Jurandir – Os pais se converteram a essa idéia de felicidade sensorial. Achamque viverão bem com a receita de juvenilidade, boa forma e puerilidade mental.
Os próprios filhos se sentem constrangidos. Não digo que o pai deva dar a sua vida pelo filho, só que tem de integrar o filho à sua vida. Ou então não seja pai ou mãe. Se as pessoas não puderem se responsabilizar pelas novas gerações, a gente vai jogar esse mundo na lata de lixo. Se a pessoa não se dispõe a cuidar, então não tenha filhos. Isso acontece porque o pai tem vergonha de ser velho, não quer ser um ancestral.


ISTOÉ – Há esperança para quem continua a cultivar valores como
solidariedade e honestidade?
Jurandir – Esses têm um valor fundamental. São a bússola. O navio pode se desgovernar aqui e ali, mas enquanto você tem isso há esperança de seguir o bom caminho. Essas pessoas não podem ser silenciadas nem podemos desacreditar da importância delas. Quando elas são silenciadas, sabemos o horror que é. Quando elas desacreditam, decretam o fim da cultura. No espaço cultural houve isso. Roma acabou em um dia. Há figuras públicas que mantêm esses valores. Há também o pai que batalha e tem coragem de se impor ao filho, para que depois o filho agradeça. Essa resistência cotidiana me agrada muito mais. É preciso que essas pessoas saibam que fazem diferença quando realizam bem o seu trabalho, que a sua honestidade é um valor, que essa crença constrói um país. Não podemos deixar que se desesperem e digam que nada adianta. Do outro lado há o deboche, o cinismo. Mas no final o resultado dessa resistência vale a pena. Basta pensar que japoneses, alemães, italianos e outros europeus carregaram pedra depois da Segunda Guerra Mundial e estão aí de novo. Se eles fizeram aquilo, a gente também pode fazer. Por que não?