Decorreu no último fim de semana e nesta 2ª e 3ª feira mais um Carnaval de Lazarim, pequena vila situada no concelho de Lamego, com difíceis acessos que a torna algo isolada, mas que não se cansa de dar provas de ser uma comunidade rural orgulhosa das suas raízes e tradições e que demonstra uma invulgar vitalidade na sua defesa e promoção.
Uma dessas manifestações são os caretos, máscaras de madeira de amieiro esculpidas por artesãos, e que saem à rua por alturas do Carnaval por intermédio dos filhos da terra, com particular destaque para as raparigas que, com galhardia e (muita alegria à mistura), demonstram assim o seu apego a uma manifestação genuína de cultura popular.
Com efeito, perde-se no tempo a festa do entrudo em Lazarim. Um dos testemunhos pessoais descreve o Carnaval de Lazarim em 1879 como uma manifestação medieval, recheada de referências ao belzebu, e que era motivo para brincadeiras sombrias que assustavam sobretudo os mais novos. Máscaras de madeira eram frequentemente revestidas a pele de coelho, cujo pêlo era depois rapado a lâmina de barba, deixando apenas assinalados com o pêlo do próprio animal as zonas das sobrancelhas e do bigode.Cobras e sardões, apanhados no estado de hibernação do Inverno, eram também frequentemente utilizados. Pregados às máscaras de madeira serviam de ornamento a estas, deixando aterrorizados habitantes.
Um dos pontos altos do Carnaval de Lazarim é a leitura na praça da aldeia dos Testamentos da Comadre e do Compadre feita sucessivamente por uma rapariga e um rapaz da terra. São então feitas as apreciações mais desassombradas a todos os jovens da aldeia sob a forma de versos compostos em segredo e onde não faltam os chiste e as inconfidências da má-língua, explorando muitas vezes as rivalidades entre os dois sexos. À compita assiste a multidão que não perde pitada e se diverte com as críticas cerradas feitas a uns e aos outros. E realmente só ouvindo em viva voz se pode dizer que em Lazarim, naquela tarde de 3ª feira, vale tudo entre os rapazes e as raparigas da vila.
Mandam as regras que só os solteiros possam criticar e só eles sejam alvo de chacota. Do Testamento consta a imaginároa distribuição de um burro ou burra, que a imaginação divide, cabendo a cada um o órgão ou parte que mais se adequa ao «defeito» que se quer denunciar na pessoas que é o alvo do versejador.
Todas, mesmo todas, as partes do animais são atribuídas, no meio de quadras que nem sempre dissimulam os palavrões. «As raparigas são mais finas, sabem dizer as coisas de outra maneira. Agora eles, às vezes, dizem tudo por claro», conta Ester Ribeiro, de 19 anos, uma das moças que têm ajudado a compor as estrofes da comadre. Sabe que vai ouvir das boas, mas já está preparada para não ligar. Sempre as raparigas as compuseram, mas só em 1985 se libertaram do porta-voz que fazia, por elas, a leitura das «deixadas» do testamento. Apesar da permissividade própria do Carnaval, que, dizem os antropólogos, serve para exorcizar e esquecer o passado, nem todos se contentam com um cerrar de dentes. Houve um ano em que a GNR foi chamada e as ofensas valeram multas de 400 escudos, acrescidos de cinco tostões de imposto de selo. No ano seguinte, o testamento só teve uma quadra: «Vamos ler o testamento / para que ninguém se fique a rir / por causa de 400 e coroa / fica a burra por dividir.»
Para ilustração bastará ler algumas quadras dos testamentos:
Testamento da Comadre
[ uma rapaz da vila lê o testamento a uma rapariga ]
Olá queridas comadres
Olá grandes feiticeiras
Cá estamos mais uma vez
Para vos tirar as peneiras.
Sois todas umas cadela
sQuase me matais de fome
Senão tivesse vergonha
Tratava-vos por outro nome.
Tende cuidado com o burro
Que ele é abonado
Se a dele não chegar
Tendes aqui mais um bocado
Hoje em dia as raparigas
São de lhe tirar o chapéu
Se lhes tirarmos os trapos
Ficam com os podres ao léu
Olá menina Márcia
Condutora de fim de semana
Não sei qual foi a ideia
Da tatuagem na mama
Já estou farto desta merda
Só me apetece dar um grito
Sois todas umas corrumbeiras
Ide todas levar no pito.
[excerto do Testamento da Comadre de 2000]
Testamento do Compadre
[ uma rapariga da vila lê o testamento a um rapaz ]
Quando tocares no apito
Não o mostres a ninguém
Apenas à namorada
Para ela o tocar também
Não sei que raio vos deu
Parece que é comichão
Passais a vida a coçar
O instrumento com a mão.
Sois todos uns paneleiros
que não valem 2 vinténs
Ninguém quer de vós saber
Até vos mijam os cães.
Alguns vêm de propósito
Para meter o focinho
Mas aquilo que nós queremos
É que leveis no cuzinho.
Alguns metem nojo
Com o paleio que têm
Se isto é tão ruim
Porque diabo cá vêm
De vós me vou despedir
Ó grande rapaziada
Não gostais de raparigas
Juntos fazeis marmelada.
[excerto do Testamento do Compadre de 2000]
«Uma vez pedi uma máscara, vesti-me, e saí de careto, juntamente com outra moça. Mas eles lá descobriram, fosse pela forma do corpo, fosse pelo andar, e começaram a querer pôr as mãos onde não deviam. Tivemos de fugir», recorda Maria de Lurdes, com 49 anos e muita saudade do tempo em que podia fazer versos para o testamento das comadres.
Segue-se depois o desfile tradicional em que não falta a farinha lançada ao ar, e que termina com a morte do compadre e da comadre, simbolizados em dois bonecos que acabam por arder no meio do fogo.
Para terminar, realiza-se o concurso das máscaras ( caretos) e se descobrem as caras dos respectivos portadores.
Para remate final, manda a tradição que seja servida a feijoada e o caldo de farinha que as mulheres da aldeia tratam de preparar num largo fronteiriço à praça principal.
Como homenagem a Lazarim inserimos a seguir um pequeno filme que fomos encontrar no you tube:
Pifaradas Zabunbadas dos Pastores
Os Caretos
Os Caretos são máscaras que escondem os seus portadores que andam pelas ruas de certas povoações do Norte peninsular ( Baira Alta e Trás-Os-Montes, em Portugal; e na Galiza e em Castela-Léon) e que servem para meter medo, fazendo de diabo à solta, Podem aparecer tanto no Carnaval como por alturas do Natal e fim de ano.
Os caretos fazem parte de uma tradição portuguesa muito, muito antiga, e os mais conhecidos são os de Podence e de Ousilhão (Trás-os-Montes), mas também os há noutras zonas, como em Lazarim, na Beira Alta.
Os homens de Podence, por exemplo, mascaram-se de caretos , uma espécie de criaturas de outro mundo, que fazem muito barulho e perseguem as raparigas solteiras. O caretos andam em grupos, com máscaras de couro ou de madeira, muito feias. Vestem velhas colchas de lã transformadas em fatos de cores fortes como o verde, azul, preto, vermelho e amarelo (tudo às riscas). Para chamar a atenção e fazer todo o barulho que lhes é característico, usam grandes chocalhos pendurados na cintura e guizos nos tornozelos. Uma das v´timas preferidas dos caretos são as meninas solteiras, mas também os donos das adegas que, quando apanhados, são obrigados a abrir as pipas para os caretos beberem vinho.
Os caretos fazem parte de uma tradição portuguesa muito, muito antiga, e os mais conhecidos são os de Podence e de Ousilhão (Trás-os-Montes), mas também os há noutras zonas, como em Lazarim, na Beira Alta.
Os homens de Podence, por exemplo, mascaram-se de caretos , uma espécie de criaturas de outro mundo, que fazem muito barulho e perseguem as raparigas solteiras. O caretos andam em grupos, com máscaras de couro ou de madeira, muito feias. Vestem velhas colchas de lã transformadas em fatos de cores fortes como o verde, azul, preto, vermelho e amarelo (tudo às riscas). Para chamar a atenção e fazer todo o barulho que lhes é característico, usam grandes chocalhos pendurados na cintura e guizos nos tornozelos. Uma das v´timas preferidas dos caretos são as meninas solteiras, mas também os donos das adegas que, quando apanhados, são obrigados a abrir as pipas para os caretos beberem vinho.
Os Caretos de Podence
(texto retirado da net)
Despedem o Inverno e saúdam a Primavera, os caretos do Carnaval são um ritual entre o pagão e o religioso, tão natural como a passagem do tempo e a renovação das estações. Em Podence, concelho de Macedo de cavaleiros, todos os anos é assim.. Chegado o Mês de Fevereiro, os homens envergam os trajes coloridos (elaborados com colchas franjadas de Lã ou de linho, em teares caseiros) escondem a cabeça entre duas máscaras de lata, prendem uma enfiada de chocalhos á cintura e bandoleiras de campainhas e dependem toda a energia do mundo para assinalar o calor e os dias maiores que se prestem a chegar. Normalmente, contam com os favores do Sol, magnânimo para quem louva o seu reino com tanto fervor. Religioso também pois assim se marca , com os últimos estertores da folia o início da Quaresma. Período de calma, reflexão e contenção do calendário religioso. A cansar no Carnaval para acalmar até á Páscoa.
Dizem fontes que a festa de Podence se imerge no domínio dos tempos até às antigas Saturnais romanas – celebração em honra de Saturno, Deus das sementeiras. Procura-se acalmar a ira dos Céus e garantir favores de uma boa colheita. Nesses tempos idos da agricultura de subsistência, a diferença entre a vida e a morte quase se cingia à dimensão da lavra. E a dupla máscara acentua a relação, ao lembrar uma das duas importantes divindades romanas: Jano Deus do passado e do futuro e também do presente, senhor dos portões e entrada, da guerra e da paz e dono de todos os princípios. O filho de Apolo, que um dia partilhou o trono com Saturno e conjuntamente civilizaram os habitantes de Itália, levando-os a tal prosperidade que ao reinado chamaram era de ouro, é geralmente representado com duas caras por ser do passado e do futuro, e principalmente, por ser símbolo do SOL , que aparece de manhã e se esconde á noite. Passados á parte , em Podence ainda hoje a agricultura é a principal actividade da população. Da terra se extrai cereais e castanhas, embora nos últimos anos , tenha aumentado a produção de azeite. A aldeia de Podence parece ter força suficiente para manter tradição e garantir a vida a estas figuras, recheados de homens endemoninhados, armados de chocalhos e rédea solta para as tropelias. Mesmos, explicam os mais velhos, o tempo tenha brandado a folganças e as moças da terra já não sintam tantas nódoas no corpo. Melhor que nada pois nos anos 70, esteve a tradição por perder-se , à conta dos últimos anos de ditadura e do fenómeno da emigração. Recuperada uma década mais tarde, quando alguma prosperidade respirar um pouco o interior, que abraçou também o regresso de alguns dos que tinham ido á aventura. Hoje serão quarenta dezenas os homens com fatos de Carreto e energia para invadir a praça na aldeia domingo e terça feira de Entrudo. E o futuro está garantido por há muitos Facanitos (crianças com fatos idênticos aos mais velhos) prontos a tomar o testemunho. Os outros aquelas que não podem evergar fatiota, abrem as adegas para dessedentar os folgazões. A imunidade conferida pela máscara, permite aos caretos mergulhar nos excessos. Sendo as mulheres solteiras as vítimas preferencias. Encostam-se a elas e ensaiam estranhas danças com conteúdo erótico, agitando a cintura e batendo com os chocalhos nas ancas das vítimas que, par bem do corpo acompanham a dança. Dança com o nome chocalhar. Entre o barulho festivo, a risota e o alarido lembram-se outros tempos em que as mulheres se escondiam em casa pois os foliões iam muito para além dos chocalhos, lançando cinza e dejectos e f ustigando as incautas compele de coelho seca ou bexiga de porco fumada. Para não falar no banho de formigas , broma pesada e cruel com espécimens selvagens recolhidos nos campos durante meses. Também as casas eram invadidas e panela ao lume era panela condenada a verter o conteúdo para mal da barriga dos infelizes. Ao careto mau diabo á solta pelas ruas de Podence, querem-no vivo em cada Fevereiro, mesmo que á conta disso não possam dormir descansadas as moçoilas da aldeia de Podence. Porém com a internacionalização dos últimos anos, tal parece impossível. Realmente desde as Jornadas de Cultural de Popular da Academia de Coimbra em 1985, importantes para o reavivar da tradição, até aos dias de hoje , os Caretos transmontanos percorrem um lento caminho que os levou de Norte a Sul do país, afigurar na Capa de Cd da Brigada de Victor Jara e até ultrapassar fronteiras para actuar na Disneyland Paris, Carnaval de Nice e Carnaval em Itália.
Adaptados ou não a tempos de mais brandos costumes o Carnaval de Podence mantém o clima fantástico de antes. Sedutores e misteriosos, os Caretos guardam a magia dos tempos em que as histórias junto á lareira franqueavam a entrada em mundos de sonho. A eles tudo se permite; o anonimato dá-lhes prerrogativas : dá-lhes poder. Por dois dias no ano os homens são crianças e quem mais brinca mais poder tem
O Carnaval no Nordeste (tradição e significado),
Despedem o Inverno e saúdam a Primavera, os caretos do Carnaval são um ritual entre o pagão e o religioso, tão natural como a passagem do tempo e a renovação das estações. Em Podence, concelho de Macedo de cavaleiros, todos os anos é assim.. Chegado o Mês de Fevereiro, os homens envergam os trajes coloridos (elaborados com colchas franjadas de Lã ou de linho, em teares caseiros) escondem a cabeça entre duas máscaras de lata, prendem uma enfiada de chocalhos á cintura e bandoleiras de campainhas e dependem toda a energia do mundo para assinalar o calor e os dias maiores que se prestem a chegar. Normalmente, contam com os favores do Sol, magnânimo para quem louva o seu reino com tanto fervor. Religioso também pois assim se marca , com os últimos estertores da folia o início da Quaresma. Período de calma, reflexão e contenção do calendário religioso. A cansar no Carnaval para acalmar até á Páscoa.
Dizem fontes que a festa de Podence se imerge no domínio dos tempos até às antigas Saturnais romanas – celebração em honra de Saturno, Deus das sementeiras. Procura-se acalmar a ira dos Céus e garantir favores de uma boa colheita. Nesses tempos idos da agricultura de subsistência, a diferença entre a vida e a morte quase se cingia à dimensão da lavra. E a dupla máscara acentua a relação, ao lembrar uma das duas importantes divindades romanas: Jano Deus do passado e do futuro e também do presente, senhor dos portões e entrada, da guerra e da paz e dono de todos os princípios. O filho de Apolo, que um dia partilhou o trono com Saturno e conjuntamente civilizaram os habitantes de Itália, levando-os a tal prosperidade que ao reinado chamaram era de ouro, é geralmente representado com duas caras por ser do passado e do futuro, e principalmente, por ser símbolo do SOL , que aparece de manhã e se esconde á noite. Passados á parte , em Podence ainda hoje a agricultura é a principal actividade da população. Da terra se extrai cereais e castanhas, embora nos últimos anos , tenha aumentado a produção de azeite. A aldeia de Podence parece ter força suficiente para manter tradição e garantir a vida a estas figuras, recheados de homens endemoninhados, armados de chocalhos e rédea solta para as tropelias. Mesmos, explicam os mais velhos, o tempo tenha brandado a folganças e as moças da terra já não sintam tantas nódoas no corpo. Melhor que nada pois nos anos 70, esteve a tradição por perder-se , à conta dos últimos anos de ditadura e do fenómeno da emigração. Recuperada uma década mais tarde, quando alguma prosperidade respirar um pouco o interior, que abraçou também o regresso de alguns dos que tinham ido á aventura. Hoje serão quarenta dezenas os homens com fatos de Carreto e energia para invadir a praça na aldeia domingo e terça feira de Entrudo. E o futuro está garantido por há muitos Facanitos (crianças com fatos idênticos aos mais velhos) prontos a tomar o testemunho. Os outros aquelas que não podem evergar fatiota, abrem as adegas para dessedentar os folgazões. A imunidade conferida pela máscara, permite aos caretos mergulhar nos excessos. Sendo as mulheres solteiras as vítimas preferencias. Encostam-se a elas e ensaiam estranhas danças com conteúdo erótico, agitando a cintura e batendo com os chocalhos nas ancas das vítimas que, par bem do corpo acompanham a dança. Dança com o nome chocalhar. Entre o barulho festivo, a risota e o alarido lembram-se outros tempos em que as mulheres se escondiam em casa pois os foliões iam muito para além dos chocalhos, lançando cinza e dejectos e f ustigando as incautas compele de coelho seca ou bexiga de porco fumada. Para não falar no banho de formigas , broma pesada e cruel com espécimens selvagens recolhidos nos campos durante meses. Também as casas eram invadidas e panela ao lume era panela condenada a verter o conteúdo para mal da barriga dos infelizes. Ao careto mau diabo á solta pelas ruas de Podence, querem-no vivo em cada Fevereiro, mesmo que á conta disso não possam dormir descansadas as moçoilas da aldeia de Podence. Porém com a internacionalização dos últimos anos, tal parece impossível. Realmente desde as Jornadas de Cultural de Popular da Academia de Coimbra em 1985, importantes para o reavivar da tradição, até aos dias de hoje , os Caretos transmontanos percorrem um lento caminho que os levou de Norte a Sul do país, afigurar na Capa de Cd da Brigada de Victor Jara e até ultrapassar fronteiras para actuar na Disneyland Paris, Carnaval de Nice e Carnaval em Itália.
Adaptados ou não a tempos de mais brandos costumes o Carnaval de Podence mantém o clima fantástico de antes. Sedutores e misteriosos, os Caretos guardam a magia dos tempos em que as histórias junto á lareira franqueavam a entrada em mundos de sonho. A eles tudo se permite; o anonimato dá-lhes prerrogativas : dá-lhes poder. Por dois dias no ano os homens são crianças e quem mais brinca mais poder tem
O Carnaval no Nordeste (tradição e significado),
por António A. Pinelo Tiza
O Carnaval dos nossos dias, urbano ou rural, remonta, na sua origem, às antigas festas da Natureza, "de fundo agrário" (1), as Saturnais romanas e as Lupercais celebradas em honra de Pan, o deus dos rebanhos. A expressão popular "é Carnaval, ninguém leva a mal" encontra o seu fundamento nos rituais licenciosos próprios destas festividades, uma licenciosidade autorizada que, a par de outros rituais expurgatórios, constitui ainda hoje a sua principal característica. A destruição pelo fogo de figuras alusivas ao passado (tudo o que é velho), o julgamento e queima, em cerimónia pública, do Entrudo, do Velho e de outras figuras míticas, o castigo que os mascarados infligem às mulheres que se atrevem, nesse dia, a sair à rua, a serra da velha, as "chocalhadas", como rito regenerador e fecundante que os espalhafatosos caretos aplicam às mulheres e a crítica social expressa na publicação e encenação dos "casamentos" burlescos e ridicularizantes dos jovens "casadoiros" são rituais expurgatórios deste período de passagem que é o fim do Inverno e a entrada na Primavera. Rituais ainda vigentes, um pouco por todo o lado no Nordeste Transmontano.
O Carnaval dos nossos dias, urbano ou rural, remonta, na sua origem, às antigas festas da Natureza, "de fundo agrário" (1), as Saturnais romanas e as Lupercais celebradas em honra de Pan, o deus dos rebanhos. A expressão popular "é Carnaval, ninguém leva a mal" encontra o seu fundamento nos rituais licenciosos próprios destas festividades, uma licenciosidade autorizada que, a par de outros rituais expurgatórios, constitui ainda hoje a sua principal característica. A destruição pelo fogo de figuras alusivas ao passado (tudo o que é velho), o julgamento e queima, em cerimónia pública, do Entrudo, do Velho e de outras figuras míticas, o castigo que os mascarados infligem às mulheres que se atrevem, nesse dia, a sair à rua, a serra da velha, as "chocalhadas", como rito regenerador e fecundante que os espalhafatosos caretos aplicam às mulheres e a crítica social expressa na publicação e encenação dos "casamentos" burlescos e ridicularizantes dos jovens "casadoiros" são rituais expurgatórios deste período de passagem que é o fim do Inverno e a entrada na Primavera. Rituais ainda vigentes, um pouco por todo o lado no Nordeste Transmontano.
Recuando no tempo, podemos encontrar as origens do Entrudo nas antigas festas Lupercais, celebradas na antiga Roma, em meados de Fevereiro, em honra do deus Pan, protector dos pastores e dos rebanhos. Como em qualquer festa digna desta nome, eram permitidos aos festejeiros todos os excessos, no uso e abuso da comida e da bebida e na fuga às normas e comportamentos socialmente instituídos, organizando-se, para tal, em sociedades secretas. As anomias eram praticadas e assumidas pelos próprios sacerdotes, constituindo verdadeiros rituais de apelo à fecundidade, no momento mais propício do ciclo da Natureza, a aproximação do seu rejuvenescimento, a entrada na Primavera. Era também o momento da purificação e expurgação das pessoas e das comunidades, o que se processava pelos rituais de crítica social institucionalizada e a sua divulgação na praça pública.
Apesar da "cristianização" que todas estas práticas festivas sofreram ao longo de dois milénios, podemos entender ser ainda hoje esse mesmo o sentido a dar aos rituais carnavalescos que se podem constatar em algumas localidades do Nordeste desenrolados no Domingo Gordo, Carnaval, Quarta-feira de Cinzas e mais adiante no tempo, a meio da Quaresma.
A crítica social
A crítica social
A crítica social institucionalizada acontece em dois momentos festivos do ciclo do Inverno: nas festas solsticiais do Natal, Ano Novo e Reis e no período de Carnaval. Esta última, que vamos referir, aparece sob a forma de "casamentos" que, apesar de ter sucumbido em muitas localidades, subsiste ainda em outras tantas terras de toda a região bragançana.
Em terras de Mogadouro, os "casamentos" são tornados públicos no próprio dia de Carnaval; "turrear" quer dizer publicar um casamanto, os noivos, os padrinhos, os dotes... Toda a crítica social está contida na forma como o cerimonial se desenrola; os anunciantes escolhem determinados pontos estratégicos para poderem ser claramente entendidos e aproveitam a escuridão da noite para não serem identificados; estão assim à vontade para explorar os pontos sensíveis das pessoas que desejam invectivar, achincalhando-as com a atribuição do respectivo noivo ou noiva, padrinho ou dotes que contraria as suas já conhecidas aspirações ou ridiculamente os contempla.
A público vêm também os "contratos de casamento" em Podence, no Domingo Gordo, ao cair da noite. Aqui os anunciantes assumem o papel de sacerdotes que, acompanhados de numerosa turba de acólitos, se colocam em pontos elevados da aldeia, os dois pilares dos portões do adro da igreja, para aí anunciarem os "casamentos" de todos os solteiros da terra. São estes os visados pela censura. A sua voz é amplificada pelos embudes (grandes funis usados para verter o vinho para as pipas) que, ao mesmo tempo, a distorcem para impedir a identidade dos proclamadores.
Esta acção satírica assume características de natureza social onde o "casamento" funciona mais como um pretexto para se poder dar livre curso à crítica do que como um fim a alcançar com a encenação, isto é, a aproximação dos proclamados noivos. Esta nunca se verifica pelo ridículo que o "casal" anunciado envolve. O importante é que se possa falar de tudo e de todos, num ambiente de permissiva licenciosidade, em que tudo é permitido e consentido. Estaremos perante um momento de escape e de purificação social que a comunidade conserva como absolutamente necessário à sua boa saúde social.
"Palhas, alhas leva-as o vento!
Oh, oh, oh...
Aqui se vai formar e ordenar um casamento.
Oh, oh, oh...
E quem é que nós havemos de casar?
Tu o dirás.
Há-de ser a Maria rita que mora no bairro do Castelo.
Oh, oh, oh...
E quem é que nós havemos de dar para marido?
Tu o dirás.
Há-de ser o João da Rua que mora lá em baixo no Porto.
Oh, oh, oh...
E que nós havemos de dar de dote a ela?
Tu o dirás.
Há-de ser uma máquina de costura
porque ela é uma boa costureira.
E que é que nós havemos de dar de dote a ele?
Tu o dirás.
Há-de ser uma terra ao Souto
para que não saia um de cima do outro
enquanto for Inverno.
Toda esta permissividade no dizer e na liberdade de tudo expressar surge naturalmente enquadrada no contexto geral das festas solsticiais, as antigas Bacanais e do Carnaval, as Saturnais, em que as anomias se estendem a todos os outros comportamentos individuais e sociais, desde os excessos de comida e bebida até às danças, rondas, galhofas e pandorcadas.
São momentos que podem ser considerados de escape ou de válvula em que publicamente tudo e a todos se pode dizer sem que qualquer sanção daí resulte e sem que os visados possam levar a mal tais palavras, gestos ou atitudes.
A função das máscaras
Oh, oh, oh...
Aqui se vai formar e ordenar um casamento.
Oh, oh, oh...
E quem é que nós havemos de casar?
Tu o dirás.
Há-de ser a Maria rita que mora no bairro do Castelo.
Oh, oh, oh...
E quem é que nós havemos de dar para marido?
Tu o dirás.
Há-de ser o João da Rua que mora lá em baixo no Porto.
Oh, oh, oh...
E que nós havemos de dar de dote a ela?
Tu o dirás.
Há-de ser uma máquina de costura
porque ela é uma boa costureira.
E que é que nós havemos de dar de dote a ele?
Tu o dirás.
Há-de ser uma terra ao Souto
para que não saia um de cima do outro
enquanto for Inverno.
Toda esta permissividade no dizer e na liberdade de tudo expressar surge naturalmente enquadrada no contexto geral das festas solsticiais, as antigas Bacanais e do Carnaval, as Saturnais, em que as anomias se estendem a todos os outros comportamentos individuais e sociais, desde os excessos de comida e bebida até às danças, rondas, galhofas e pandorcadas.
São momentos que podem ser considerados de escape ou de válvula em que publicamente tudo e a todos se pode dizer sem que qualquer sanção daí resulte e sem que os visados possam levar a mal tais palavras, gestos ou atitudes.
A função das máscaras
O mascarado que nesta região sai à rua nas festas solsticiais do Inverno e no período de Carnaval, assume hoje funções meramente profanas, bem distintas das que estão na origem do seu aparecimento. Sendo na Antiguidade um elemento de ligação entre os vivos e os mortos, entre o homem e a divindade, o mascarado parece hoje desempenhar, de forma inconsciente, as mesmas funções mas, aos olhos do povo, representa o diabo e conscientemente se assume como tal nos gesto e atitudes que toma.
Qualquer momento de passagem é crítico para a comunidade que o vive. O carnaval situa-se no momento de passagem do Inverno para a Primevara ou de um ano a outro (segundo o antigo calendário gregoriano o ano começava em Março). Logo, o Carnaval corresponde a um momento crítico para as sociedades agrárias. A presença do mascarado justifica-se assim e a sua acção relaciona-se com a preparação para essa passagem, através do desempenho das suas funções sagradas: purificação das comunidades, pela crítica social; o culto da Natureza, pelas suas atitudes licenciosas relacionadas com o apelo à fecundidade; o culto dos mortos e da divindade com a transformação de uma pessoa humana num ser com poderes que estão acima das normas sociais instituídas.
Por isso, o mascarado activo transforma-se num ser superior, gozando de uma força e liberdade sem paralelo; coloca-se acima de toda a lei humana e, como se se tratasse de um ente sagrado, mas possuído pelo diabo, se liberta de todos os entraves e dá largas às suas faculdades de destruir e de castigar, de troçar e de acariciar, de dançar e de gritar, a seu bel prazer.
Os mascarados de Podence enquadram-se nestas funções: expurgatórias por um lado, ao castigar os elementos da comunidade com as suas "chocalhadas" vioelntas e, por outro lado, propiciatórias, ao tomarem atitudes licenciosas para com as mulheres, outrora consideradas fecundantes, num apelo à fertilidade da Mãe-Natureza, no início do novo ciclo de vida.
O mesmo se poderá entender das funções dos "diabos" que, em Bragança e Vinhais, saem à rua, no dia seguinte ao Carnaval, a Quarta-feira de Cinzas. As atitudes castigadoras que tomam são relacionadas pelo Abade de Baçal "nas Festas Lupercais celebradas pelos sacerdotes de Pan a 15 de Fevereiro, que despidos, tapando apenas as partes genitais com uma tira de pele caprina, recentemente imolada e tinta de sangue, percorriam as ruas, batendo com um chicote em quantos encontravam, principalmente nas mulheres, que julgavam fecundar com estas pancadas" (2). O P. Firmino Martins parece comungar desta mesma tese e confirma as raízes pagãs destes rituais: "Que eram as agonales, as lupercales (...) essa infinidade de festas festas em honra dos deuses protectores dos campos, dos trabalhos, das sementes, dos frutos, intempéries, doenças, dos lares, dos actos de casamento, da guerra, da morte? o sacrifício de pessoas, animais e alimentos? " (3).
A reprodução da vida humana nas suas diferentes fases fundamentais, sobretudo os rituais de maior impacto social é outra das funções dos mascarados, tanto no Solstício do Inverno como no Carnaval. Iso mesmo pode ser observado nas representações teatrais da crítica social da festa dos rapazes de Varge, na encenação do julgamento do entrudo de Santulhão ou nas "cerimónias" dos casamentos de Podence. Em qualquer dos exemplos sugeridos toda a vida da comunidade rural é manifesta, tanto nos utensílios e adereços utilizados como nos significados das mensagens contidas nos rituais.
Notas
(1) Benjamim Pereira, Máscaras Portuguesas, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1973, pp. 120.
(2) Francisco Manuel Alves, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, Tomo IX, pp. 301.
(3) Padre Firmino Martins, Folklore do Concelho de Vinhais, 2º vol., pp. 130
(1) Benjamim Pereira, Máscaras Portuguesas, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1973, pp. 120.
(2) Francisco Manuel Alves, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, Tomo IX, pp. 301.
(3) Padre Firmino Martins, Folklore do Concelho de Vinhais, 2º vol., pp. 130