Texto de Pietro Ferrua, in Verve, nº 7, pg 226-243
Um estudo sistemático das atividades anarquistas do grande dramaturgo ainda não foi empreendido, que eu saiba [1], porém existem muitos ensaios sobre ele e os dados colhidos permitem estabelecer uma trajetória se não completa pelo menos suficiente.
A mais pormenorizada das biografias interessantes para o nosso assunto é sem dúvida a do casal Gelb [2] , que chega quase a mil páginas, mas tem também duas obras de Sheaffer também oferecem uma grande quantidade de informação. Descobre-se assim que um dos primeiros contatos que O’Neill teve com anarquistas data de 1907, quando conheceu Benjamin Tucker e começou a freqüentar a livraria dele em Nova Iorque: The Unique Bookshop situada na Sexta Avenida. Eugene não tinha ainda vinte anos enquanto o pensador e escritor anarquista alcançara já os cinqüenta, com mais de trinta anos de experiências como propagandista, redator de periódicos, autor de ensaios. Foi através do Tucker que O’Neill travou conhecimento com a obra de Bacunin e Kropotkin, Proudhon e Tolstoi, Stirner e Nietzsche. Definiu-se então "anarquista filosófico" uma etiqueta pouco usada em outros países, mas que se tornou comum nos Estados Unidos e que eqüivale – ainda hoje – a "anarquista não-violento". Distinção necessária pois a opinião pública tende a misturar anarquismo e terrorismo. Para bem da verdade cabe reconhecer que naquela época a associação com Czolgosz (que tinha matado um Presidente) e Berkman (que atirara contra um capitalista inflexível e cruel contra operários grevistas) era comum. Quem apresentou O’Neill ao Tucker foi Paul Holliday, outro anarquista, irmão de Polly Holliday, gerente de um café boêmio no Greenwich Village, companheira de vida de outro militante ativo muito conhecido, Hippolyte Havel. O Paul foi um grande amigo de O’Neill até sua trágica morte poucos anos depois. Outro grande amigo anarquista (e futuro personagem de sua obra) foi Terry Carlin (verdadeiro nome Terence O’Carolan) que tinha a qualidade adicional de ser de origem irlandesa, como O’Neill. Companheiro de bebedeira o escritor nunca o renegou quando ficou famoso e passou a mandar-lhe cheques mensais para que nunca lhe faltasse a bebida. Os Gelb escrevem "O Carlin teve uma influência maior na filosofia de O’Neill do que qualquer outra pessoa". Não devemos estranhar isso, pois o Carlin foi admirado por escritores importantes como Jack London e Theodore Dreiser. Mais uma amizade importante – e que durou até o fim da vida- foi a com Saxe Commins (verdadeiro nome Cominsky) dentista que se tornou autor teatral, e sobrinho de Emma Goldman. A ele O’Neill se dirigiu para que lhe procurasse documentação sobre algumas personagens anarquistas em suas peças. Em gratidão pela hospitalidade recebida dele e de toda a família e por ter-lhe cuidado dos dentes de graça, O’Neill sugeriu sua contratação pela Random House, onde se tornou seu editor pessoal. O Saxe foi também quem manteve contatos indiretos entre O’Neill com as duas primeiras esposas e os filhos que dela teve. Qunado fugiu para a França onde vivia incógnito com Carlotta, que tornou-se sua terceira mulher, um dos poucos que sempre sabia onde ele se encontrava foi justamente o Commins. Aliás, O’Neill não era o único que o estimava pois tornou-se também amigo de Albert Einstein, que conheceu quando ambos ensinavam em Princeton.
Hippolyte Havel, anarquista europeu que veio aos Estados Unidos junto com Emma Goldman, que o conheceu em Londres, foi também admirado por Dreiser, inspirou o John Cage e deu vida a um dos personagens da peça The Iceman Cometh. O’Neill conservou algumas fotografias dele , uma das quais os reúne nos ensaios de uma peça para o Provincetown Theater.
A galeria de personagens anarquistas ao redor de O’Neill é muito rica e compreende ainda outro escritor da época: Hutchins Hapggod. Autor de An Anarchist Woman ele tinha se aposentado no Cape Cod e colaborara estreitamente com John Reed, Louise Bryant e outros nas encenações do Provincetown Theater.
Entre as mulheres pelas quais O’Neill talvez se apaixonou, emerge a figura de Dorothy Day, que mais tarde se converteu ao catolicismo sem abandonar o anarquismo e tornou-se co-fundadora do movimento Catholic Worker (uma derivação comunitária da filosofia personalista de Emmanuel Mounier), que ainda hoje existe e tantas páginas gloriosas acrescenta aos anais da luta contra a segregação racial, as guerras, o serviço miltar, o pagam,ento dos impostos ao Estado, etc…
Christine Ell, amante passageira do O’Neill, foi outra anarquista inspirada por Emma Goldman, e também tornar-se-á personagem teatral do autor. Não há muitos vestígios de encontros entre Emma Goldman e Eugene O’Neill, mas sabe-se que ele lia Mother Earth (na qual revista publicou um dos primeiros poemas antimilitaristas), frequentava as palestras do Ferrer Center, foi grande amigo de Lena Cominsky irmã da Emma) e de Stella Ballantine (sobrinha de Emma), de Mary Eleanor Fitzgerald (secretária do Provincetown Theater depois de ter trabalhado na redação de Mother Earth ). De Emma Goldman se sabe que conhecia as primeiras peças do O’Neill e fez palestras sobre elas. Apesar dos poucos contatos pessoais Emma foi uma grande fonte de inspiração, como veremos logo, em duas das peças que comentaremos.
Outro anarquista muito conhecido que ele pouco frequentou mas cuja personalidade, pensamento e ação inspiraram o O’Neill, que, anos depois, o declara numa carta, é o Alexander Berkman, Em data 29 de janeiro de 1927, numa carta de Hamilton, Bermuda, O’Neill escreve ao Berkman:"It is a long time since that night at Romany Marie but I am quite sure that you do not remember me better than I do you. I have a very clear picture of you in my mind to this day. I had had a very deep admiration for you for years and that meeting was sort of an unexpected fulfillment. As for my fame…and your infame, I would be willing to exchange a great deal of mine for a bit of yours. It is not so hard to write what one feels as truth. It is damned hard to live it."*
["Passou muito tempo desde aquela noite em Romany Marie mas estou muito certo de que você não se lembra de mim melhor do que eu de você. Tenho uma imagem nuito clara de você na minha mente desde então. Eu já tinha uma muito profunda admiração por você desde vários anos e aquele encontro foi um acontecimento inesperado. Em quanto á minha fama…e sua infámia, gostaria de trocar muita da minha por um pouco da sua. Não é tão difícil escrever o que se considera ser a verdade. Mas é muito difícil vive-la."
Essa admiração desenfreada por um homem então muito mais conhecido como homem de ação do que como teórico do anarquismo nos leva a notar que O’Neill não teve como amigos só inteletuais e artistas, anarquistas "filosóficos"mas frequentou também militantes sindicais. Um destes foi James Joseph Martin (dito Slim Martin), marinheiro e operário especializado, que era militante da IWW e a quem O’Neill pediu que o levasse a reuniões sindicalistas. O resultado foram pelo menos duas peças (The Personal Equation e The Hairy Ape) acabadas, publicadas e produzidas, e algumas outras só começadas e abandonadas por várias razões. Também tornou-se propagandista ativo quando passou anos navegando na marinha comercial.
Ser rodeado de amigos anarquistas, ter lido livros de autores anarquistas, assinar obras de conteúdo anarquista talvez não seja suficiente para traçar um retrato completo de uma pessoa. Foi o comportamento dele na vida pública e particular condizente com a ética anarquista? As lembranças dos que o freqüentaram durante a juventude dão a imagem de um bébado inveterado. Como tal é representado pelo menos em dois filmes nos quais ele tem um papel: Reds de Warren Beatty e Entertaining Angels de Michael Ray Rhodes. No primeiro ele é o amante de Louise Bryant e no segundo um amigo de Dorothy Day. Esta última, companheira de bebedeira antes de se tornar apóstola social e religiosa explica assim o vício do O’Neill: "Eu tinha a impressão que ele considerava beber como um ensaio para a morte. Bebia o uísque puro, de um só gole, não para ficar bêbado mas para ver se agüentava". Muitos anarquistas do século XIX consideravam o alcoolismo como uma das piores pragas sociais, como as drogas no século XX . A doutrina, a esse respeito, não é fixa e varia de país para outro e de uma geração a outra. Pode se deplorar a dependência de Eugene do alcool mas não usa-la como um argumento em contra dele (ele mesmo se deu conta que a bebida o destruia e acabou se tornando sóbrio) tomando em consideração que o pai e o irmão mais velho eram alcoólicos, em quanto a mãe tinha se tornado morfinómana desde o nascimento dele.
Mais repreensível, talvez, tenha sido seu comportamento de marido e de pai.Casou com a primeira mulher e sumiu logo depois deixando-a grávida. A Kathleen pediu e obteve o divórcio tres anos mais tarde. Foi só ao atingir a idade de doze anos que o filho conheceu o pai. Sua atitude para com a família não melhorou com o segundo casamento (núpcias de amor com bastante anos de convivência) do qual ele fugiu de repente, sem nenhuma explicação, ignorando os filhos durante anos. Foi assim que Oona casou com Charlie Chaplin, que tinha tres vezes a idade dela, mas representava justamente uma figura paterna que substituia o pae que ela nunca tinha tido.
Como conclusão provisória digamos que O’Neill praticou a solidariedade do anarquismo social fora de casa mas na família praticou mais o comportamento individualista á maneira de Nietzsche, seu autor de cabeceira. Nestas alturas cabe formular a pergunta: como é que O’Neill via a si mesmo?
Numa carta de 1939 a Bernard Cerf o dramaturgo escreve: "Diga ao Saxe que estou me reconvertendo a um anarquismo de aço". Isto foi nas vésperas da Segunda Guerra mundial, durante a qual ele compõe The Iceman Cometh que parecia ser um adeus ao anarquismo, mas não foi o caso, como vamos ver. Também disse:
"Time was when I was an active socialist, and, then, after that, a philosophical anarchist" [3]. Na última conferência de imprensa que ele deu em 1946 (isto é no fim de sua carreira quando já era famoso no mundo inteiro devido ás suas peças e ao Prêmio Nobel e poucos anos antes de morrer declara "sempre ter sido um anarquista filosófico"
A obra confirmará tudo isso.
O anarquismo na obra do autor
Traços do pensamento e da conduta anarquistas se encontram em vários personagens de muitas peças de O’Neill. Nalgumas delas os anarquistas são personagens centrais (que ás vezes se identificam com o autor e outras são baseados em pessoas existentes) ou assunto da obra. É de estranhar que – como já aconteceu com a vida- o seu teatro de cunho anarquista não tenha interessado os historiadores do anarquismo americano. Quem mais o cita - como era de se esperar – é o Paul Avrich que, em pelo menos duas de suas obras [4] o apresenta como frequentador do Centro Ferrer de Nova Iorque, colaborador ocasional de Mother Earth, amigo de vários companheiros, etc… confirmando tudo o que foi dito pelos Gelb e pelo Sheaffer, e acrescentando alguns pormenores. É bem provável que o Avrich volte a falar do assunto no próximo livro dele, dedicado ao Alexandre Berkman, que foi um dos "ídolos" e também o tradutor russo do O’Neill.
Na maior parte das peças O’Neill se fantasia de personagem expressando idéias antimilitaristas, anticapitalistas, pro-sindicalistas ou abertamente anarquistas. Junto a ele uma galeria numerosa de companheiros por ele conhecidos. admirados de longe ou de convivência direta.
Limitar-me-ei a examinar quatro das peças de mais importância para as idéias anarquistas.
A primeira das com forte conteúdo anarquistas é The Personal Equation, de 1915, há, como sempre no teatro de O’Neill, elementos autobiográficos combinados como elementos imaginários.
Entre os primeiros está Tom que pode ser o autor como fôra na realidade (devemos lembrar que ele navegou profisionalmente e ocupou empregos humildes nas estivas ) ou como ele teria desejado ser. Na peça há também conflitos entre pai e filho bastante parecidos aos que ele vivia com o próprio genitor, conhecido actor teatral. A crítica discorda sobre se o Hartman da peça corresponde a Sadakichi Hartman (que realmente existiu) ou não seria um psudónimo para Hippolyte Havel, o anarquista tcheco que aparecerá como Hugo Kalman na peça posterior The Iceman Cometh. Olga Tarnoff, o papel femenino mais importante, foi inspirado por Emma Goldman. Esta peça é inteiramente dedicada ao anarquismoe contém toda a problemática contemporanea: os desentendimentos entre as várias facções da esquerda (os socialistas confiando no processo eleitoral e os anarquistas na ação direta), a denúncia da exploração capitalista, o direito de greve, a oposição dos revolucionários á Primeira Guerra mundial que já tinha estourado na Europa e na qual a América está a ponto de participar, a dramática alternativa entre meios violentos e não-violentos de libertação social, a união livre ou o casamento, e assim por diante. Apesar disso não se trata de teatro de pura propaganda, mas de uma peça em quatro atos na qual são criadas situações dramáticas de alta tensão e credibilidade.
A primeira cena tem como fundo a sede de um sindicato da IWW onde as conversas se desenrolam no nível públiso (planos de greve) e no nível individual (a Olga que ama o Tom mas rejeita a idéia do casamento e da maternidade). O Tom, bastante parecido com O’Neill, acabou de perder o emprego por ter feito propaganda "subversiva"no lugar de trabalho. O segundo ato situa-se na casa de Thomas Perkins, mecánico de navíos, viuvo e pai do Tom. A empregada do Perkins o informa das más freqüentações políticas e sentimentais do filho. Na discussão que sobreveem entre pai e filho, este admite viver maritalmente com Olga porém sem estar casados. O Perkins desaprova. Eles discordam também sobre o uso da força nas reivindicações sociais e políticas. A posição do pai é que o Tom deveria não só abandonar Olga com a qual ele vive no pecado, mas também pedir desculpas aos dono da companhia por estar assistindo a reuniões anarcosindicalistas.
O terceiro ato acontece em Liverpool, em parte a bordo do navio S.Francisco – onde se encontram Thomas Perkins de serviço ás máquinas, o filho (escondido sob o nome de Tom Donovan) que se encarregaria de dinamitar os motores do navio se a reunião sindical que está tendo lugar não decreta a greve), e a Olga, fantasiada de homem, como se fizesse parte da tripulação. Os sindicalistas burocráticos, corrompidos pelos patrões, se declaram contra a greve e os anarquistas resolvem então passar á sabotagem. O companheiro que devia fornecer a dinamita, porém, foi preso e os grevistas terão que encontrar outra solução para impedir ao navio de zarpar. O Tom decide imobilizar os motores mas, para isto, tem que enfrentar o próprio pai. Nesse encontro terível, cada um procura proteger o outro, mas, ao mesmo tempo, desempenhar tarefas contrárias. O pai sem querer, atira contra o filho.
O ato seguinte advém num hospital. O pai, bem como a namorada, querem tomar conta do Tom, reduzido a uma existência vegetativa. Ele não pode se expressar, parece não reconhecer ninguém, e só repete frases como um papagaio. A Olga e o Perkins, depois de brigarem, chegam a um compromisso: ambos amam ele e tomarão conta do Tom e da criança que a Olga traz na barriga.
A peça conclui com o Tom, que mentalmente voltou á infância, repetindo o slogan: "Viva a Revolução!"
A moral resumida pela Olga (-Emma Goldman) é : "…lutamos e caímos frente ao poder da Sociedade, mas a revolução continua sobre nossos cadáveres. Vai adiante mesmo se talvez não o vejamos. Nós somos a ponte. O nosso sacrifício não é inútil. Nos é suficiente saber que estamos fazendo a nossa pequena parte e que as nossas pequenas vidas e pequenas mortes , apesar de tudo valem algo".
A segunda peça que examinarei é de 1922 e intitula-se The Hairy Ape. [5]. Está ambientada novamente, em meios anarcosindicalistas mas, desta vez, tem tons de comédia.Os dois protagonistas principais são membros da classe peoletária que se queixam de sua condição social.Fazem parte da tripulação de um navio e falam a giria dos marinheiros. Apesar da falta de cultura que revelam no decorrer dos acontecimentos, não lhes falta o sentido da dignidade humana. Além de serem explorados pelos donos do navio e apesar de sujos devido ao trabalho que exercem na barriga do navio, ao redor das máquinas e no meio do carvão, eles gostariam de ser considerados seres humanos e não animais, "macacos peludos" (nome da peça mas também insulto de visitantes ocasionais, como a filha do patrão). Feridos em sua honra, Yank, o mais primitivo, o mais violento mas, talvez, também o mais sensível deles, reclama vingança. Isto poderia se efetivar numa visita aos bairros elegantes e uma provocação na saída da missa do domingo, contra a mesma Mildred Douglas, filha do armador, que tão severa se mostrou com ele durante a visita ao navio. No bairro nobre da cidade, cheia de lojas de luxo onde se vendem jóias e casacos de pele cujo preço é assombroso, o Long e o Yank observam que uma família de trabalhadores ou de gente pobre e desempregada poderia viver um ano com o que os ricaços gastam comprando um desses objetos. A irritação do Yank cresce e o leva á inevitável agressão de classe. Acaba sendo preso, pois o lugar dele não é na frente das casas dos poderosos mas num calabouço. Durante sua prisão alguém lhe lê um artigo de jornal sobre os Wobblies. Assim são chamados os membros do sindicato Industrial Workers of the World. O recorte reproduz o discurso de um senador antirevolucionário que denuncia o anarcosindicalismo como sendo a maior chaga da nação. O Yank se sente atraído por esse movimento e decide aderir a ele. Na próxima folga ele visita a sede dos portuários da IWW. Bate na porta e os companheiros estranham este comportamento pois a particularidade deles é de deixarem a porta sempre aberta: é só empurrar e entrar. Pede admissão que é aceita logo sem nenhuma formalidade e pagando só uma moéda. O secretário sugere que ele leve um pacote de folhetos revolucionários mas o adverte ser prudente pois essa propaganda é considerada ilegal pelas autoridades. Mas não é propaganda que ele quer fazer senão ação direta, que ele associa a violência contra a propriedade. Os Wobblies começam a desconfiar desse desconhecido que aparece de repente e propõe dinamitar os estaleiros ou os navios de Mr. Douglas. Isso cheira a provocação. Assim o imobilizam e põem para fora.
Rejeitado por todos ele acaba se refugiando no jardim zoológico onde, depois de ter um diálogo incomunicável com um gorila, acaba entrando na gaiola dele, deixando livre o animal perplexo. Agora sim que pode ser considerado um verdadeiro "macaco peludo".
A linguagem é dura, a alegoria é pesada mas a moral da comédia é em favor de uma visão individualista.
A mais importante das peças, porém, é The Iceman Cometh que ele começa a escrever em 8 de junho de 1939 e finaliza em 26 de novembro do mesmo ano. Relê o texto, faz algumas mudanças e assina a versão final em 3 de janeiro de 1940. O assunto da peça é a validade ou não das teorias anarquistas. Para ilustrar o assunto ele se pauta em documentos e pede ao amigo de juventude Saxe Commins [6] que trabalha na editora Random House (empregp obtido por "imposição"de O’Neill) para lhe mandar a velha literatura anarquista. Recebe assim cópia de velhos periodicos dirigidos por Hippolyte Havel (anarquista tcheco escolhido como personagem da peça com o nome de Hugo Kalmar) e obras do Bacunin e do Kropotkin. Outro personagem anarquista é Larry Slade, inspirado por Terry Carlin (Terence O’Carolan) que foi outro amigo de juventude que o autor ajudou até o fim da vida. O terceiro, mas não último, anarquista seria Don Parritt, que se apresenta como tal. Na realidade, é um traidor que veio da Califórnia para Nova Iorque, sob o pretexto de estar envolvido num atentado mas que trabalha para a polícia, procurando provas para ajudar a prender os culpados do atentado contra o Los Angeles Time fato que, históricamente aconteceu.
O enredo leva o Don ao encontro do Larry por este ter sido o único que, quando era criança, sempre o tratou com carinho e o escutou como se fosse um adulto. O Larry, para o Don, é uma figura paterna e, talvez, seu verdadeiro pai ( foi amante de sua mãe). Mas o Don é torturado e mente mas acaba admitindo que traiu, para salvar a mãe, diz ele no começo. A mãe, Rosa (inspirada em parte por Gertire Vose e em parte por Emma Goldman) está presa. O filho acaba confessando que a denunciou por ciúme, pois ela o traia com as próprias idéias que colocava acima de seus deveres de mãe. No fim, revela ao Larry ter traído por dinheiro. Angustiado ele medita o suicídio, ao qual o Larry, sem compaixão, o empurra.
Devemos lembrar que na vida real, na época em que O’Neill frequentava a boêmia do Greenwich Village, ele tentara o suicídio num local muito parecido com o Hell Hole [7]. As discussões sobre anarquismo na peça são estéreis e negativas, mas deve-se considerar que os tempos em que este drama foi concebido que assiste a uma dupla derrota: a do sonho anarquista na Espanha de 1939 e o início da Segunda Guerra mundial. Contudo o anarquismo não é o único assunto da peça. Em primeiro lugar, numa polémica com o comunista Mike Gold (que lhe foi apresentado por Dorothy Day) que queria que ele escrevesse obras mais engajadas, O’Neill declarou:"quando um autor escreve propaganda ele cessa de ser artista e torna-se um político". Além disso, O’Neill sempre insistiu sobre os diversos níveis de escritura. Há quem considere que o elemento religioso, representado por Hickey, é fundamental na peça. De fato existe um breve estudo de Robert C Lee que toma em consideração os dois aspectos: "Evangelism and Anarchism in The Iceman Cometh". [8.
O’Neill foi criado católico e, apesar de ter renunciado á fé (deixou no textamento que não queria padres no enterro) escreveu muitas peças sobre personagens e assuntos religiosos. Há uma interpretação do Iceman… come se fosse uma "Última Céia" tendo doze personagens na mesa incluindo a um Judas. Discordo desta interpretação pois os personagens, se incluirmos as tres prostitutas e os dois policiais superam o número de doze. mas sobretudo por outra razão, que seria a presença de duas personagens excepcionais e positivas, que não fazem justamente parte da elenco da distribuição e que ninguém – que eu saiba – percebeu como sendo centrais no enredo. Uma seria a Evelyn, mártir de tipo cristão, a mulher que o Hickey mata, por ser tão boa, tão compreensiva, tão paciente, tão generosa, tão amorosa, que entende tudo e aceita tudo, e que o marido sente a necessidade de matar, para preserva-la, para não decepciona-la, para não machuca-la moralmente.
Outra é uma mártir laica, Rosa Parritt a mãe traída do Don. Ela encontra-se presa por idealismo, paga pelos erros dos outros, mantém viva a chama do ideal. É uma figura empolgante, a ser reverenciada e imitada.
O verdadeiro anarquismo, em suma , não é dos tres bébedos, um parasita, um preguiçoso e um traidor mas nessa bela figura de mulher. O Iceman Cometh soa pessimista só depois de uma leitura superficial. Pense-se aos "pipe dreams", isto é, aos "castelos no ar" (as utopias, os sonhos irrealizáveis) aos quais se alude amiúde. O próprio autor, numa entrevista declarou: "Bem, o que eu posso dizer é que se trata de uma peça sobre castelos no ar. A filosofia subjacente é que sempre resta ainda um sonho, um sonho final, qualquer seja o nível baixo ao qual se cai, no fim da garrafa, eu sei, pois eu mesmo vi…". O’Neill estava satisfeito com esta peça e disse: "é uma das melhores coisas que jamás fiz. De alguma maneira talvez a melhor".
Outros devem ter concordado com ele pois existem duas versões cinematográficas, uma de Sydney Lumet e outra de John Frankenheimer. Aliás temos duas provas contundentes de que o pessimismoi aparente de O’Neill não marcou o fim do anarquismo dele. A primeira é a entrevista já mencionada, que terá lugar anos depois de ter escrito a peça e poucos anos antes de sua morte, na qual ele reitera suas convicções anarquistas. A segunda está no fato que logo depois de ter concluído The Iceman Cometh ele dá início a outra obra de tema anarquista, e desta vez uma comédia, mostrando que nem abandonou as convicções ideológicas da juventude, e não aderiu ao pessimismo dos personagens da peça anterior.
A última obra que mencionarei nunca foi concluída, mudou de título mas é a que revela o profundo conhecimento que O’Neill tinha do anarquismo internacional, de seus pensadores bem como de seus militantes. É dedicada ao Errico Malatesta, agitador anarquista italiano mundialmente conhecido. Teria sido uma comédia mas com um fundo ético e político. Não só cronológicamente, mas também filosoficamente é uma continuação do Iceman Cometh . Não foi nunca encenada nem terminada, mas todo o trabalho de pesquisa, as anotações do autor e as cenas já compostas foram publicados postumamente. Dedicou mais de um ano a esta comédia e revisou constantemente o texto. O título inicial era The Visit of Malatesta passou a ser Malatesta seeks Surcease. [9]O nome escolhido para o personagem principal era "Cesare", depois mudado em "Enrico", se bem que na Itália, onde ele nasceu, a forma preferida é a de "Errico". A colocação temporal inicial era de 1912, mas a data foi adiantada para 1923 para poder justificar a fuga do Malatesta da ditadura fascista iniciada em 1922. Malatesta, na realidade, não pode visitar seus amigos americanos até a morte (em 1935) por se encontrar sob vigilância policial especial em Roma, por ordem expressa do Mussolini. O Malatesta porém esteve nos Estados Unidos mas em 1899. Há quem diga que O’Neill poderia tê-lo escutado naquela época, mas não há provas disso ter acontecido. Aliás O’Neill teria tido 11 anos.
A função do Malatesta e da peça mesma é de representar a ESPERANÇA que talvez tivesse sido sacudida pelo pessimismo aparente do Iceman Cometh. Outro intuito dele é lutar contra o alcoolismo que freia as energias revolucionárias dos militantes mas que também alimenta a cobiça daqueles companheiros italo-americanos da comédia que negligenciam o ideal para ganhar dinheiro imitando assim os capitalistas. O do alcoolismo é um problema que afligiu não só o movimnento, mas o próprio O’Neill, vítima desse fenómeno, como o foram o irmão maior e o pai, bem como muitos dos boêmios, anarquistas ou não, que ele frequentou na vida real. Aliás não há peça dele na qual não apareça algum bébedo.
Na "Visita do Malatesta", a mulher do Daniello chama-se Rosa, como já se chamava Rosa a mão presa do Don Parritt da peça anterior. Pouco importa saber se o nome "Rosa" se refere a Emma Goldman ou não. Um dito da época nos ambientes anarco-sindicalistas é uma das reivindicações que vai além das melhoras económicas: "Queremos pão, mas rosas também". A "Rosa"torna-se metáfora do amor, da solidariedade, do engajamento, da chama da revolução. No rascunho se prevê que o Malatesta acabará casando com uma das filhas do Daniello, Francina, que se gaba de ter se tornado "a rosa da paixão pela revolução".
Não me atrevo a atribuir ao O’Neill uma conclusão da peça, mas tudo leva a crer que seria uma confirmação do "sonho anarquista".
Por razões de saúde O’Neill abandona este projeto e vários outros previstos no seu jornal pessoal. Uma tremedeira constante, mal diagnosticada pelos médicos e nunca curada o acompanhará até o fim e , nos últimos dez anos ele viverá uma existência solitária, separando-se temporáriamente até da própria mulher (a terceira, a que mais amou) nunca renegando, porém, seus ideais anarquistas.
Pietro Ferrua
[1] Cheguei a esta conclusão depois de consultar a bibliografia de "First Search"que contém informação sobre todos os livros existentes nas bibliotecas e também as teses de doutoramento.
[2] Arthur and Barbara Gelb, ed. O’Neill (New York, Harper and Row, 1974, in-8°, 990p.)
[3] Louis Sheaffer: O’Neill. Son and Artist (Boston e Toronto, Little-Brown & Co., 1973, in-8°, 750p.) e O’Neill. Son and Playright ( mesmo editor, 1968, in-8°, 543p.);
[4] Gelb, op.cit., p.286 (tradução deste autor)
[5] Ibid., p.387
[6] Interview do Sunday Times de 1946
[7] O Hell Hole da peça é uma combinação de tres locais realmente existentes no Greenwich Villagee que O’Neill e outros boêmios frequentavam durante od dois primeiros decênios do sécilo XX
[8] Paul Avrich, Anarchist Voices (An Oral History of Anarchism in America), Princeton, University Press, 1995 e posteriormente em The Modern School Movement (Anarchism and Education in the United States), Princeton, University Press, 1980
[9] "Notes for The Visit of Malatesta"in Eugene O’Neill. The Unfinished Plays, edited and annotated by Virginia Floyd, New York, Continuum, 1988, in-8°,xxviii-213pp.); a mesma é também autora do precioso ensaio Eugene O’Neill at Work: Newly Released Ideas for Plays (New York, Ungar, 1981, in-8°, xxxix-407pp.).