Então para que é que servem as utopias?
Para isso mesmo, para fazer-nos caminhar.»
Como será a sociedade do futuro? ...As últimas notícias da utopia!
Em Agosto de 2005 cerca de sessenta pessoas – militantes políticos, escritores, jornalistas , sindicalistas – receberam por correio electrónico um convite irresistível. Michael Albert, próximo de Noam Chomsky, e animador da rede Znet (1), propunha aos destinatários da sua mensagem, muitos deles colaboradores daquela rede, encontrarem-se em casa dele dez meses mais tarde, ou seja, em Junho de 2006, durante cinco dias. Objectivo? As discutir as formas que as sociedade do futuro poderá tomar.
A proposta tinha os seus perigos. Lançado com um ano de avanço, corria o risco de tropeçar com um uso de tempo demasiado sobrecarregado. O seminário seria mesmo organizado às portas do Verão num local agradável (Woods Hole, em Cape Cod, a uma centema de quilómetros de Bóston, na costa leste dos Estados Unidos), junto à praia e com possibilidade de excursões…Já mais a sério a reunião permitiria aos colaboradores da Znet, se bem que alguns deles pouco implicados nessa rede, de se conhecerem. E de reflectirem em conjunto, na companhia de Noam Chomsky, Barbara Ehrenreich, Arundhati Roy, Naomi Klein, etc, que também marcariam presença.
O convite comportava uma vantagem suplementar: a própria formulação do projecto. Com efeito, Michael Albert escrevia: «Imaginai cada sessão corresponderia a uma exposição sobre a visão do futuro, a estratégia, o programa – e não tanto s obre o que corre mal na actual sociedade, as opressões, etc – e que essa exposição esteja estruturada a partir de um texto distribuído previamente que seria comentado por uma pessoa, também escolhida de antemão, e tudo isso conduzisse a uma discussão colectiva.» Para os convidados, no seio dos quais se contavam os velhos frequentadores dos Fóruns Sociais e dos seus discursos estereotipados, repetidos sucessivamente de Porto Alegre a Atenas, tal seria uma forma de ultrapassar a litania dos sermões acusadores contra o ultraliberalismo e os seus sequazes.
Nesse ponto a promessa foi cumprida. É certo que nem Chomsky, nem Ehrenreich, nem Roy, nem Klein apareceram: os mais conhecidos são os mais anunciados, mas também os mais desistentes. E se em matéria de «programa» ou de «estratégia» as coisas não foram tão satisfatórias, a verdade é que, em contrapartida, não faltou capacidade de imaginação e de antecipação. Com uma meteorologia uniformemente má, refeições tomadas em grupo numa cantina de empresa, um programa cheio de exposições e de debates – ao longo das manhãs, tardes e noites – tudo isso fazia com que cada um escolhesse fixar a sua atenção sobre uma problemática, cuja actualidade não era particularmente grande, sobretudo nos Estados Unidos: na suposição de que o capitalismo não existisse («suponha que…» é uma das figuras retóricas preferidas por Michael Albert, que a ela recorre, de resto, mais do que uma quarenta vezes, no seu último livro, «Realizing Hope»), como se pareceria a sociedade ideal?
Michael Albert tem como se calcula uma pequena ideia sobre o assunto. Recorde-se que ele se insere na tradição libertária, no sentido mais amplo do termo (2). Elaborou até, mais do que Chomsky, um modelo alternativo de sociedade que rompia simultaneamente com o capitalismo ( a regulação pelos mercados é rejeitada) e com o socialismo ( que gere inevitavelmente uma vanguarda autoritária e uma classe de «coordenadores»).
Desenvolvida desde há una quinze anos, juntamente com Robin Hahnel, este projecto de «economia participativa» ( «participatory economics» ou Parecon em inglês, ou «participalismo» em francês) iria servir de referencial ao longo dos cinco dias do seminário. As obras de Michael Albert estão traduzidas em numerosos países, mas o seu impacto é demasiado modesto para que uma explicação, ainda que sucinta, do seu programa – da sua «utopia» -seja completamente supérflua (3).
Apesar de «igualitária», «solidária» e «autogerida», a economia participativa não se reclama da iguadade absolutta dos salários, e menos ainda da ideia, julgada irrealista, do «cada um segundo as suas necessidades». Ela adopta como critério de remuneração «o esforço e o sacrifício» na «produção de bens socialmente úteis». Quem trabalha mais, e mais duramente, em condições mais difíceis, receberá mais. Em contrapartida, quem, pelo único efeito do destino ou do nascimento, beneficiar de máquinas ou de tecnologias mais avançadas, ou de dons artísticos, físicos ou intelectuais, não será por isso melhor remunerado.Michael Albert é sensível, mais do que ninguém, à injustiça dos rendimentos imobiliários até porque o valor da casa que serve de quartel general às operações «participalistas» foi multiplicado por nove em catorze anos. Prova suficiente, ironiza ele, de que em regime capitalista «uma massa inerte pode trazer mais trabalho aos seus proprietários que uma vida de trabalho».
A economia participativa reprova a organização social que fixa tarefas de execução, de limpeza a uns, e reserva as missões de enquadramento, de criação a outros. Comabeta o modelo industrial baseado na especialização fordista. Se nos países capitalistas, tal como nos países «socialistas» (stakhanovismo), um tal modelo favorecer a produtividade, isso foi à custa de uma organização de trabalho alienante e «desgastante» (como é o caso da cadeia de montagem automóvel). Mas foi, segundo Albert, a consolidação de uma terceira «classe», os coordenadores», que teria entrado em contradição como o esquema marxista de uma sociedade que tinha como dialéctica principal a oposição entre os detentores do capital e os que vendem a sua força de trabalho.
Cauteloso em evitar a sobrevivência –ou o regresso, uma vez passada a euforia revolucionária – desses especialistas, quadros, tecnocratas, e do seu desdém social e do seu autoritarismo legitimado pela sua «competência», os participalistas propõem que em cada actividade profissional, o conjunto das tarefas sejam redefinidas de modo a misturar as tarefas de execução e de concepção. Essa Seia a única forma aceitável de distribuir os benefícios e os constrangimentos do trabalho social. Tal significaria que o patrão da General Electric encarregar-se-ia por vezes da limpeza do elevador, ou da recepção do correio, enquanto que a sua empregada de limpeza verificaria as contas? Não será bem assim, porque nem na General Electric nem em nenhuma outra parte, haveria «patrão» ou «empregada de limpeza», mas antes actores iguais com «conjuntos equilibrados de tarefas» ( balanced Job complexes) concebidos graças a negociações e discussões prévias.
Utopia prometaica à escala de um país gigantesco e de uma economia diversificada como a dos Estados Unidos, o projecto já encontrou, no domínio privado, a partilha de tarefas doméstica por (modesto) antegozo. E tal não é anedótico nem secundário pois tudo deve estar lgado:«O prgresso numa certa esfera deve ir concetado com o avanço numa outra esfera». Um participalismo que já rege, aliás, algumas das empresas cooperativas. As quais, pela sua própria existência, prefiguram a utopia autogestiono presente. «Incorporam as sementes dofuturo desconhecido nos nossos comportamentos imediatos».
A casa editorial «South End Press» que Michael Albert criou com outros em plenos anos 60 e a imensa efervescência progressista que ela gerou na sociedade norte-americana, inspirou-se em alguns daqueles princípios enunciados. A recusa de separação entre funções de execução e funções de direcção foi tal que South End Press ( quatro empregados) decidiu, pelo menos uma vez, excluir da cooperativa um dos seus membros que, por receio de tomar um dis uma decisão prejudicial ao colectivo, recusava ser responsável pelas escolhas editoriais. Reclamando querer manter-se num posto subalterno, ele confessava-se satisfeito em contribuir assim para um objectivo comum. A resposta que recebeu é que uma conduta desse género era inaceitável: a lei do participalismo era para se cumprir…
A situação inversa é mais fácil de imaginar: a do caso em que o editor ou um autor hesitam em abandonar os trabalhos de pesquisa e de escrita para reservar algumas horas do dia aos trabalhos domésticos, ao conserto de sapatos ou a descida a um poço ( a polivalência requerida deve abranger diversos sectores de actividade). Susan George apresentou uma objecção por via de uma interrogação «antropológica»: terá existido na história da humanidade uma sociedade sem classes, principalmente quando a definição das classes passa, para além da propriedade dos meios de produção, pela incorporação do saber dos «coordenadores»? Pouco convincente ( e convicta) da resposta, ela concluiu: «Desde que se sejamos altamente qualificados no que fazemos, devemo-nos poder consagrar inteiramente e a fundo nisso». Um veredicto contrário à utopia defendida por Michael Albert e partilhada pela maior parte dos presentes.
Mesmo supondo que o princípio-chave da economia participativa não seja posto em causa, a verdade é que as questões só agora começam. Quem estabelece a remuneração dos esforços e do sacrifício? Quem reorganiza o trabalho em torno dos conjuntos equilibrados de tarefas? Quem fixa o nível e o tipo de oferta ( da produção)? E como se irão prever as reacções da procura ( dos consumidores)? Resposta: o que o mercado ( desigualitário e fonte de injustiças) e os coordenadors centrais ( presumivelmente, autoritários) fariam seria realizado pela «planificação participativa». Mas o que é que isto vêm a ser? «Conselhos alargados e abrangentes» ( nested councils) descentralizados, compostos por actores sociais implicados que tenham uma palavra a dizer em função das consequências, que as opções a tomar, lhes possam afectar; e que todos tenham acesso a uma informação de qualidade, sejam devidamente formados, e tenham confiança nas suas competências e estejam motivados para as desenvolver, comunicar e exprimir as suas preferências.»
Um vasto programa - não há dúvida -, tanto mais que ele pressupõe certas condições prévias que dizem respeito quer ao saber partilhado, à consciência política, à motivação e à informação democrática. Não será muito surpreendente que uma tal visão de conjunto não deixe de suscitar algumas dúvidas, menosprezo até, e reiterados pedidos de aclarações. (4). Um dos objectivos do seminário organizado por Michael Albert era reforçar o ptencial do modelo através da indicação de exemplos que de um modo ou de outro pudessem evocar o género de estrutura autogerida atrás descrita.
Agora sobre a América do Sul, comecemos com a Argentina em que, há alguns anos atrás, foi submergida com a exclamação «que se vayan todos!» e um movimento de recuperação de 180 fábricas abandonadas pelos seus proprietários, assim como por cooperativas, trocas, sistemas de trocas locais (SEL), de autogestão, e assembleias de bairro. (5). Desconfiança em relação a todas as instituições ( a que não foi estranho a espectacular falência que atingiu a Argentina), recusa da delegação de poderes e da recuperação: o questionamento da propriedade dos meios de produção que então se registou não poderia deixar de encantar os anarquistas. Até parecia que, conforme ironizou um dos intervenientes do seminário, Marie Trigona, ela «nos iria conduzir à utopia, como no filme de René Char de 1931, A nous la liberte, quando a fábrica começou a funcionar por si mesma, enquanto os operários divertiam-se, pescavam, dormiam a sesta ou faziam um pique-nique».
Poesia cinematográfica aparte, essas estruturas autogeridas já constituíram uma «rede internacional de solidariedade que reúne 300 empresas recuperadas da Argentina, Venzuela, Brasil e uruguai».Em Novembro de 2005 realizaou-se em Caracas uma conferência destas unidades de produção e de outras na Europa ( estiveram então representadas 135 dessas empresas). Exemplo de entre-ajuda entre elas é o facto de um jornal argentino autogerido publicar gratuitamente os anúncios das agências de viagens venezuelanas; em troca, os trabalhadores desse jornal passaram férias no mar das Caraíbas. Trocas deste género são tanto mais valiosas quanto, por falta de infra-estruturas e de tecnologias adaptadas, a maior parte das cooperativas operárias, de dimensão modesta ( a mais importante na Argentina é uma fábrica de cerâmica de 470 assalariados) não suportariam o impacto do mercado capitalista. De resto, alguns dos fornecedores ou clientes habituais hesitam em trabalhar com empresas com um estatuto legal incerto.
E este não é mais do que um dos muitos problemas. Os outros são a família,o Estado, a «visão prospectiva». Relativamente à família, segundo Marie Trigona, «desde que os trabalhadores tomaran o controle do hotel Bauen, a cooperativa recrutou 85 pessoas. Quase todos eram filhos, filhas, mães, pais, irmãos e irmãs dos trabalhadores». Ou seja, o perigo de uma forma de nepotismo pesa sobre a nova utopia.
Depois há o Estado. As autoridades políticas argentinas nunca encorajaram a recuperação das fábricas abandonadas, se bem que não tivessem lançado as forças de ordem contra a maior parte das cooperativas.No total, o movimento sobrevive num vazio jurídico – com a ajuda funanceira, por vezes, do Estado – e não se alastra.Michael Albert, que se deslocou à Argentina, confessou a sua decepção sobre este ponto: os assalariados das empresas recuperadas não se dedicavam a propagar as suas conquistas às outras empresas. Apesar de se mostrarem orgulhosos da sua nova organização de trabalho, eles não conseguiam «ver que o que faziam era muito mais importante daquilo que produziam».
Ausência de consciência revolucionária, de visão prospectiva? Susan George avançou uma outra interpretação. Algo cansada das batalhas de aparelho em que a sua associação Attac está envolvida, ela recordou a objecção que Oscar Wilde (1854-1900) tinha apresentado ao socialismo na sua época: « Isso exige muitas reuniões». E acrescenta num murmúrio: « as pessoas cansam-se rapidamente, e não têm desejos de consagrar todo o seu tempo livre a assembeis intermináveis e a um trabalho de evngelização». O reparo visava indirectamente o participalismo e os seus conselhos de bairro e de empresa, cada qual com 25 a 50 membros, que deliberam muito para que todos os perticipantes possam estar a par do que está em causa nas questões que lhes digam respeito. E delegam num dos seus, revocável a todo o momento, para estar presente numa assembleia mandatada para arbitrar qualquer questão que ulrapasse a competência do grupo de base ( num período de gripe aviaria, por exemplo, uma pequena comunidade não poderia decidir sozinha sobre o que fazer das suas aves doentes). E assim continuamente…até ao sexto nível: um Parlamento para o conjunto de população mundial. O projecto pode parecer complicado, a jurisdição dis diversos conselhos é bastante delimitada.Mas não passa de um esquema e a sua execução não é para amanhã…
No caso da Argentina a incapacidade aparente das cooperativas em irradiar a sua prática de autogestão ao conjunto da sociedade explica-se também pela consciência dos riscos de repressão que os operários passavam a estar sujeitos caso a sua experiência se alastrasse. Esticar a corda poderia significar perder tudo, inclusive o seu pequeno paraíso. Ou seja, mais valia ter a seu favor as autoridades nacionais, do que estarem estas contra, não obstante pouco ou nada fazerem para apoiarem as experiências. Quanto aos patrões o modelo argentino era um pouco sui generis: os trabalhadores não se tinham defrontado com os seus empregadores , uma vez que estes os abandonaram.É difícil imaginar que a Ford, Total, Mittal abandonassem o seu património.
Quando se começa e enumerar as vantagens das cooperativas nos Estados Unidos ou na Argentina a primeira coisa que se nota é o impacto reduzido que tais estruturas têm no modo de produção dominante. O qual sabe perfeitamente adaptar-se à situação, tal como prova o que aconteceu com os media alternativos, as transgressões culturais, a gestão feminina de um departamento de Estado ou a presença de locutores negros na televisão. «São interessantes, mas completamente anedóticas», ouviu-se dizer uma voz na sala, quando se estava a expor uma outra experiência anti-autoritária.
Um interveniente argentino, Ezequiel Adamovsky, tinha participado no levantamento populat de Buenos Aires em Dezembro de 2001. Tinha verificado que «os movimentos que rejeitam todo o contacto com a política nacional são incapazes de estabelecer laços com a maioria da população. Porque o que nós propomos não era percepcionado como preferível ou realizável.As regras e as instituições que organizam a opressão são também as que organizam a vida social.». Por conseguinte, se é importante, segundo ele, saber responder à questão «o que é que nós propomos?», de repetir que a pobreza e o racismo existem, e que é preciso lutar, de que é possível a vitória contra o sistema, não é menos importante deixar de imaginar de que uma ordem espontânea vai surgir do caos. E saber precisar como e por quem as propostas vão ser apresentadas. Certamente que os partidos políticos procurarão colonizar os movimentos sociais e impor-lhes as suas regras de funcionamento hierárquico e autoritário…Mas isso não nos deve fazer esquecer que também existe frequentemente «a tirania da ausência de estruturas».
A mensagem que poderia ter passado por iconoclasta numa tal assembleia não suscitou praticamente nenhuma reacção. Provavelmente, porque depois de uma dezena de anos de retórica das soluções parciais, de comunidades em rede, do «mudar o mundo sem tomar o poder», tais fórmulas comecem a cansar (6). Demasiadas palavras, de «narcissismo anti-autoritário» ( nas palavras de um interveniente anarquista), de mediatização sem fim: demasiados efeitos face a um capitalismo talentoso na arte de recuperar o que o ameaça. (7)
Apercebemo-nos já deste cansaço – ou desta lucidez – em certos ecologistas europeus. Um dos animadores do movimento francês para o decrescimento, Vincent Cheynet, interpela alguns dos seus amigos: «Ainda que perturbadora, a mensagem da simplicidade voluntária (…) pode rapidamente converter-se numa legitimação do ultra-liberalismo. Os seus apóstolos indicam que isso é a prova de como o sistema deixa a cada um a liberdade de viver como quiser. Notemos, por exemplo, a importância da comunidade amish nos Estados Unidos: cerca de 250.000 pessoas vivem sem carro, sem tv, sem telemóvel. Apesar da sua existência, esta comunidade parece não ter contrariado a expansão do modelo consumista no país (…) A máscara do espírito libertário é utilizado, em contradição com o seu conteúdo histórico, para defender um ultraliberalismo puro e duro, e uma incapacidade profunda em pensar o colectivo. O ultraliberalismo gerou verdadeiras crianças soldados, não somente dentro das multinacionais, como no seio da sua própria contestção»(8)
Autores que giram em torno do movimento libertário formulam o mesmo tipo de impaciências.Ainda que dirigidas aos altermundialistas e aos seus Fóruns Sociais, a admoestações de Jean-Pierre Garnier poderiam também ser aplicadas a alguns anarquistas: «Não mais organizações hierárquicas e centralizadas, mas sim um “movimento de movimentos” estruturado em rede; não mais um quadro nacional previamente fixado para se constituir em força política, mas sim um activismo transnacional; não mais uma classe operária compacta e disciplinada, mas sim “cidadãos” com forte capital cultural, zelosos em preservar a sua autonomia e individualidade; não mais “uma grande noite”, “amanhãs que cantam”, mas sim “alternativas concretas” e “utopias realistas” (…) Esta “figura moderna” não é outra coisa que um neoreformismo que abre caminho à promoção de uma globalização que seja “democrática”, “justa”, “solidária” e “ecológica” (9)
A maior parte dos conferencistas de Woods Hole não eram reformistas nem – muito menos – adeptos do oximoro de uma globalização «democrática». Não obstante, certas consideraçõesde Jean-Pierre Garnier não deixavam de os interpelar, pelo menos em certos aspectos. Na verdade, colocavam-se problemas como se já estivessem resolvidos, ou como se a prefiguração de uma utopia «libertária» ( a cooperativa em Boston, o movimento indígena em Chiapas, um squat em Amsterdam) e o estabelecimento de «laços» (links) diversos ( Internet, Fóruns mundiais) entres estas ilhotas participativas pudessem dar lugar a alguma estratégia política. Como se as experiências locais que são enaltecidas não fossem tributárias de decisões nacionais e internacionais ( nível de vida, fiscalidade, acordos de livre-troca, moeda, guerras,..) que proíbem a construção das pequenas utopias «sem tomar o poder». Como se um internacionalismo legítimo pudesse esquecer que certos Estados-nações constituíram campos de luta, de solidariedade, e permitiram garantir conquistas operárias que a «globalização» se tem empenhado em quebrar em eliminar.Como se, na coligação imaginada dos explorados, das vítimas, a subtracção não levasse a melhor à adição, em especial, à medida que as regressões religiosas e os fechamentos identitários ganhassem um ascendente sobre as solidariedades económicas.
Implicados numa infinidade de combates muito actuais e muito concretos – sindicalismo britânico, pacifismo americanos, altermundialismo europeu, software livre, solidariedades com a Venezuela, direito das mulhees no Afeganistão, etc – os presentes no Seminário, organizado põr Michael Albert avalaliaram as dificuldade concretas. Naõ eram ingénuos nem fechados sobre si mesmos. Não ignoraram que mesmo depois do capitalismo, numa hipotética sociedade sem classes, numerosas questões ficarão sem resposta: o direito das crianças, a legalização da droga, a pornografia, a prostituição, a liberdade religiosa quando contrária à igualdade de género, a alocação de recursos médicos dispendiosos, o tratamento dos animais, a clonagem, a eutanásia (10)…
Como explicou o escritor do Quebéc, Normand Baillargeon, «a anarquia é a possibilidade de organizar uma sociedade muito complexa com um mínimo de autoridade». E o seu camarada sérvio Andrej Grubacic acrescentava: «A era das revoluções não terminou. O movimento revolucionário do século XXI não será socialista, mas anarquista». Grubacic declara-se inspirado pela economia participativa, «uma visão económica anarquista, por excelência», mas também pelas «municipalidades autónomas de Chiapas», e pela «procura de consensos característica dos quakers norte-americanos». Contudo, para ele, «os grandes recrutadores anarquistas em países como os Estados Unidos foram escritoras feministas como Starhawk e Ursula K.. LeGuin».
Há, no fundo, tantas anarquias quantos anarquistas.Alguns reclamam-se de socialistas pré-marxistas como Charles Fourier ou Robert Owen, que não es esqueceem que as marmitas do futuro aquecem-se sempre no fogo dos sonhos. Em 1949, um pensador de direita incitava os seus adeptos, evangelistas do mercado, a terem «coragem de serem utópicos», tal como os socialistas: « O que nos falta – escrevia von Hayek (1899-1992), teórico do liberalismo – é que uma utopia liberal não se limite àquilo que é politicamente possível hoje». Mudem o adjectivo e a frase continuará a apontar para a mesma direcção.
Texto de autoria de Serge Halimi, publicado na edição de Agosto de 2006 do Le Monde Diplomatique.
Notas:
(1) www.zmag.org/ Trata-se de uma publicação, Z Magazine ( com 10.000 exemplares), um centro de formação audiovisual, Zmedia Institue, e um boletim quotidiano electrónico, em que um especialista analisa uma tema ligado à actualidade ( 150.000 subscritores recebem Zet por 30 a 120 dólares por ano, conforme os rendimentos)
(2) Um dos participantes, o ´servio Andrej Grubacic, resumia assim os «princípios de base» do anarquismo: «Descentralização, associações voluntárias, apoio mútuo, modelo em rede, e, acima de tudo, recusa da ideia de que os fins justificam os meios, e que um objectivo revolucionário pode apoiar-se do poder do Estado para em seguida impôr a sua visão com uma arma na mão»
(3) O livro mais conhecido e traduzido em várias línguas de Michael Albert é Parecon, Elementos de economia participalista. O seu último livro é «Realizing Hope: Life beyond capitalism», Z Books, Londres, 2006, de onde foram retiradas a maior parte da citações do presente artigo. Para uma exposição detalhada da teoria, consultar Michael Albert e Robin Hahnel, The Political Economy of Participatory, Princeton Press, Princeton (New Jersey), 1991
(4) Um debate muito vivo e completo opôs David Scweickart e Michael Albert, consultável em www.zmag.org.org/debateschw.html
(5) Ler Cécile Raimbeau, «En Argentine, occuper, résister, produire», Le Monde Diplomatique, Septembre 2005
(6) Um dos intervenientes, Greg Wilpert sugeriu o sentimento que lhe inspira as teorias de John Holloway, autor do livro com data de 2002, «Change the world without taking power: the meaning of revolution today» (Pluto press), ao titular o seu livro, recentemente editado pela Verso (Londres), «ChangingVenezuela by taking power: the history and policies of the Chavez government»
(7) Ler «Eternelle récupération de la contestation», Le Monde Diplomatique, Avril 2001
(8) Vincent Cheynet, «our en finir avec l’altermonde»,La Décroissance nº 32,Lyon, Juin 2006
(9) Jean-Pierre Garnier, «L’altermondialisme: un internationalisme d’emprunt», Utopie critique nº37, Paris, 2º trimestre de 2006
(10) Esta lista retoma no essencial a de Stephen Shalom que está resumida em «Realizing Hope», p. 23-24