A miséria económica dos países do Sul
e a miséria afectiva dos países do Norte
Face ao mal-estar das sociedades de consumo das economias industrializadas ( como é o caso de Portugal), que pouca importância conferem à vida intelectual, ética e espiritual, e que condena o quotidiano dos «cidadãos» a un estilo de vida gelatinoso e a uma frugal vida de aparências, quantas vezes ocupada em hipermercados, centros comerciais e cabeleireiras, oferecendo subprodutos de escaparate, transformando as pessoas vulgares em «clientes» passivos, anulando a sua capacidade activista de, como sujeitos, traçarem o seu próprio destino, já para não falar dos efeitos induzidos do assalariamento desresponzabilizante do trabalho por conta e sob a direcção de outrem, assim como da alienação televisiva ( com telenovelas, concursos, espectáculo,…) que empurra e promove a passividade amorfa do telespectador de sofá – face a esta triste realidade do seu quotidiano, os cidadãos dos países industrializados do Norte sentem cada vez mais a necessidade de preencherem o seu vazio existencial e «fugirem» para o ambiente «quente» e muito mais «humano» e afectivo das sociedades do Sul, nem que para isso tenham de recorrer ao seu enorme poder de compra de consumidores, comprando os mais variados serviços, sejam eles de carácter turístico ( viagens de avião, por exemplo), de carácter afectivo ou até mesmo sexual.
Trata-se, no fundo, de estratégias comportamentais para satisfazar necessidades existenciais que não encontram satisfação nas nossas sociedades desenvolvidas em que predomina os feitiches e os gadgets do consumismo paralisante e amorfo, o frio formalismo burocrático da modernidade, e a espectacularidade dos media ( com a TV à frente) que tudo converte em realidade catódica pronto a ser servida à hora do jantar…
É neste contexto societário que se insere, e que se pode explicar, a actual e crescente vaga de turismo sexual realizado por indivíduos dos países industrializados do hemisfério Norte em direcção aos países pobres do hemisfério Sul.
Um turismo sexual que não é exclusivo dos homens mas que também envolve cada vez mais mulheres que se dirigem para estas últimas sociedades em busca de satisfações afectivas e sexuais que não encontram nas suas terras de origem e que, habitualmente, passa pelo pagamento monetário destes serviços, mas que pode em alguns casos não ser assim, uma vez que nessas sociedades a monetarização das relações sociais ainda não é completa e as relaçõe afectivas e sexuais naquelas culturas indígenas poderem ser regidas por outros padrões que não decorram do uso de moeda, ao contrário do que acontece nas nossas sociedades de consumo onde as relações sociais estão completamente mercantilizadas e que são intermediadas pelo omnipotente ( e existencialmente absorvente) dinheiro.
Desgraçadamente já se tornou um hábito assistirmos( sobretudo nos períodos de férias), a uma sucessiva hemorragia de turistas europeus em direcção a países como Marrocos, Brasil, Tailândia, Filipinas,etc. Uma vez chegados ao destino, num qualquer balcão de ocasião, não escondem o que realmente procuram e querem obter:
- «Um postal e uma puta, se faz o favor!» (para os homens)
ou
- «Uma bebida e um macho amável, por favor!» (para as mulheres)
Reproduz-se a seguir o texto publicado no Le Monde Diplomatique de Agosto de 2006, com o título «Para uma massificação do turismo sexual? » ( Vers un tourisme sexuel de masse?) e de autoria de Franck Michel
As indústrias de viagem e do sexo partilham entre si interesses comuns ao converterem o mundo num gigantesco parque de atracções. Assente no tradicional universo da prostituição, o turismo sexual estende-se ao ritmo da crescente mobilidade e globalização turística. Nos países onde a constante é a pobreza, ele afecta centenas de milhares de seres humanos, em que as crianças são uma parte não negligenciável.
No seguimento do turismo clássico chegou agora o turismo sexual a conhecer actualmente a «democratização». Cada vez mais se assiste à emergência de uma prostituição «à la carte», uma tendência que segue, aliás, de perto o que se passa com as viagens à medida…Não é raro encontrar em Phuket ou em Ko Samui, só para evocar o caso da Tailândia, um motoqueiro ocidental a transportar, atrás de si, na sua moto uma «namorada», designação oficial e mais aceitável que prostituta, e que ele alugou para uma semana ou um mês.
O turismo sexual conhece hoje uma autêntica «bola de neve» e que se está a tornar numa verdadeira massificaçã. Ainda na Tailândia, os novos clientes são cada vez mais jovens ocidentais em busca de aventuras e de sensações fortes. Tais jovens estão a substituir os velhos turistas alemães, japoneses ou norte-americanos, os quais já tinham substituído os militares que estavam colocados naquela região, aquando da guerra do Vietname. Por outro lado, uma nova clientela faz a sua aparição nas praias e nos bares: os malaios, chineses, sul-coreanos…
A prostituição «turística» afecta muito os países do hemisfério Sul: aí as raparigas ( e os rapazes) são jovens, ppbres,pouco instruídos e facilmente exploráveis. Entram de uma forma mais ou menos forçada na prostituição, «ofício» este que não têm vontade de exercer. À busca de sexo fácil e barato os turistas sexuais estrangeiros afluem à procura de carne fresca, disponível e submissa. Numerosos deles, para a sua boa-consciência, apontam mil e umas razões para se auto-convencer que não abusam da miséria dos jovens. Segundo eles,mais não fazem que ajudar, apoiar e contribuir para o desenvolvimento do país….
Nesses países , após a vaga do turismo de massas, o desenvolvimento do sector informal da prostituição verificou-se com a chegada dos turistas individuais. Pode-se estabelecer uma cartografia do turismo sexual: as mulheres vão a Goa ( na Índia), à Jamaica, à Gambia; enquanto os homens preferem os países do Sudeste asiático, Marrocos, a Tunísia, o Senegal, a República Dominacana, Cuba, Panamá, Suriname, México, sem esquecer, é claro, o Brasil, onde se estima que haja 500 mil crianças a prostituírem-se (1)
O turismo sexual de massas desenvolve-se assim no cruzamento de diversos mobilidades turísticas. Para muitos ocidentais, ele representa uma nova forma de colonizaçãoadaptada à nossa época. Há quem queira estabelecer uma distinção entre prostituição forçada e a prostituição voluntária ou «livre». Sob o pretexto de que em certas cidades dos países do Norte – ou nos enclaves abastados dos países deserdados – a prostituição de luxo, dita «livre», poderá permitir a certas raparigas ( que tenham escapado ao controle dos proxenetas) de «dispôs livremente do seu corpo». Esses mesmo admitem, no entanto, que na maior parte dos países do Sul – tal como nos enclaves miseráveis das cidades dos países do Norte ou do Leste – a prostituição é uma actividade exercida sob um apertado controle ( com proxenitismo, violências, violações) (2). Mas como combater a prostituição nos países pobres do Sul, se se pretende que ela é, nos países do Norte, o resultado de opções individuais.
Industrialização dos corpos
Outros insistem para que não se confunda a prostituição infantil e a prostituição dos adultos. A insistência nesta diferença acaba por ser algo suspeita. Tanto mais que o consenso estabelecido para condenar o abuso sexual de crianças já não é fácil para a condenação do abuso dos adultos ( mulheres e homens), que é visto e admitido como uma deriva, presumida como inevitável, no mundo em que vivemos. Como consequência, a prostituição infantil incómoda todos, mas cada qual vai acomodando-se à prostituição «clássica».
Numa tal atmosfera o turismo sexual é objecto, de alguma forma, de uma desresponsabilização e desculpabilização. Tanto mais que a prática se inspira nas indústrias clássicas do sexo: pornografia e prostituição. Uma prostituição que não seria mais do que aquilo que é proposto pela pornografia (3). Estes dois universos convergem para instrumentalizarem os seres humanos e industrializarem os corpos. O aparelho mediático e publicitário aparecem a preparar o terreno visando reforçar o reconhecimento oficial da indústria do sexo. A violência sexual é assim celebrada, ao mesmo tempo que ele surge em tudo o que é media, mesmo quando é para ser alvo de denúncia. Um paradoxo e uma confusão que é bem a imagem da nossa cultura porno chic e soft que consagra a dominação do macho, numa época em que a sua virilidade parece estar em declínio.
A procura sexual é encorajada e estimulada por uma oferta em alta. O mercado estende-se e diversifica-se: uma internacionalização da oferta, com raparigas cada vez mais jovens, provenientes dos quatro cantos do mundo, atrai novos clientes (4). Com este afluxo de emigrantes do sexo, alimentado pela sede de consumo, a rotação das raparigas está garantida. Objecto de todas as espécies de tráficos, os corpos ficam disponíveis. A tarifas que não param de deixar por causa da dura concorrência.
O sucesso crecente do turismo sexual feminino mostra que a mulher vai a par com o homem, reiterando e reproduzindo as representações do poder, da dominação e da exploração. A esse respeito, não é inútil a aproximação – no plano essencialmente simbólico – entre, por uma lado, o «turismo organizado», confiado a uma agência ou a um operador, e, do outro, o «turista sexual».
O turista organizado afasta, frequentemente, toda a responsabilidade desde o momento em que ele desembarca no destino da sua viagem de férias. Expressão disso são as palavras do viajante, acabado de desembarcar no aeroporto de Hanói: « Eis que acabei de chegar de avião, a partir de agora confio a minha sorte nas próximas semanas ao meu guia, pois estou fatigado de mais do meu emprego e agora não quero mais pensar,mas apenas deixar-me levar». Não há aqui, certamente, qualquer referência sexual explícita, mas outros farão a devida associação de ideias, e não deixarão de dar o passo que falta…
Com efeito, no fim do mundo, tudo se torna possível, nomeadamente quebrar certos interditos. Outro exemplo: um turista perdido no meio do seu grupo confiará talvez o seu destino ao guia ou à agência de viagens, permitindo práticas que seriam objecto de reprovação ou de proibição ao pé da sua porta. Como banhar-se nu numa praia da Malásia, rodeado de pescadores muçulmanos, ou namorar uma miúda que se aproxima para vender cigarros ou bugigangas num restaurante do Vietname.
É quase sempre desta forma que o turista ordinário, longe da sua casa, começa a praticar actos que seriam totalmente impensáveis na sua própria região habitual de residência. Esta aspiração à transformação de si é tanto mais fácil para os turistas – organizados ou não – quanto mais tiver se instalado na sua mente a perda de responsabilidade que ocorre durante a viagem… Para o turista organizado, o Outro – o “indígena”, dizia-se no tempo das colónias – é o servidor turístico, cujo papel consiste em ser explorado.
O turista sexual livra-se com frequência de toda a responsabilidade humana, uma vez que, por meio de uma transacção financeira, sente-se liberto da necessidade de se preocupar com o Outro. Ele não se sente mais nem na obrigação de respeitar a sua (ou o seu) parceiro efémero, nem de lhe proporcionar prazer. Ao pagar por um serviço – no caso, sexual – ele está comprando a liberdade de uma pessoa sobre a qual, por um tempo determinado, tem todos os direitos. Inclusive o de reduzir esta pessoa ao estado de “produto mercantil”, de mercadoria.
Ele não precisa de poupar sua presa, forçada à submissão, da qual pode dispor como bem entende, sem ter medo de ser expulso ou castigado por uma autoridade. O cliente é rei. Em férias, muito particularmente. O cliente-turista é o único a mandar a bordo, uma vez que o Outro foi relegado à condição de escravo sexual, pouco importando, aliás, que ela (ele) seja bem ou mal tratada pelo seu mestre do momento.
É visível as grandes diferenças entre o turista organizado e o turista sexual, mas a passagem de um para o outro por vezes vem a ser surpreendentemente fácil. “Em geral”, explica Paola Monzini, “o sexo pago tornou-se uma componente mais ou menos visível do turismo de massa (5)”. Contudo, a maioria dos turistas sexuais opera de modo solitário. Essencialmente por duas razões: o medo de chamar a atenção e ser denunciado, e o egocentrismo evidente do abusador.
Pode um turista organizado transformar-se num turista sexual? Sim, caso ele se acomode com muito facilidade à tendência actual de ficar ligado na moda do momento – que celebra o culto do corpo e o do rejuvenescimento, tendo como pano de fundo a apetência sexual e o mal-estar da civilização (6). Encontramos, por exemplo, o arquétipo desse veraneante no personagem central do romance “Plataforma”, de Michel Houellebecq, no qual o mergulho no sexo e na viagem permite ao turista vulgar ter a impressão de ser alguém diferente daquele que está empregado e é submisso, enfim, no homem sem qualidades que ele é na sua morna vida quotidiana. No Ocidente, o turismo sexual continua sendo representado de duas maneiras muito simplistas e incompletas demais: de um lado a miserabilidade, e do outro o angelismo.
Cinco causas principais estão na origem da expansão sem precedente do turismo sexual de massa: a pauperização crescente; a liberalização dos mercados sexuais, que incentiva mais ou menos directamente o tráfico de mulheres para fins de prostituição; a persistência de sociedades patriarcais e sexistas; a deterioração da imagem da mulher, tendo como pano de fundo a violência sexual generalizada e banalizada; e a explosão do turismo internacional e dos fluxos de migrantes de todo tipo.
Esta expansão foi estimulada por duas características das nossas sociedades: em primeiro lugar, a ‘democratização’ dos fluxos de viajantes (massas de turistas que circulam por todo lado); em segundo lugar, a hiper-sexualidade dos jovens, cultivada por meios de comunicação obcecados pela violência sexual. Ela alimenta-se também da convergência entre a miséria e a beleza do mundo. Miséria e beleza atestam o corte que rege a ordem desigual do planeta. Uma miséria afectiva nos países do Norte, e uma miséria económica nos países do Sul e no Leste; “beleza” dos bens materiais de consumo no Norte, beleza das paisagens e das pessoas, assim como da espiritualidade, do modo de vida e das “tradições” no Sul e no Leste.
Na sequência da publicação da Declaração da Organização Mundial do Turismo (OMT) sobre a prevenção do turismo sexual organizado (9), adoptada no Cairo em Outubro de 1995, que sensibilizou os agentes do turismo e o conjunto dos clientes-viajantes para este flagelo global (que não diz respeito apenas às crianças), a luta contra “o turismo sexual de massa” começou a organizar-se melhor..