24.4.06

A televisão no Árctico (!!!) e os seus efeitos catastróficos!


Ao longo do livro « Quatro argumentos para acabar com a televisão» é possível encontrar muitos exemplos do impacte da televisão nas culturas nativas e o tipo de visões do mundo matizadas que não se prestam a serem representadas por este meio de comunicação. Dez anos depois de acabar de redigir o livro tive ocasião de tomar contacto directo com o chamado processo de homogeneização cultural a que me referi, quando visitei uma comunidade de indígenas que tinham acabado de ver pela primeira vez uma televisão. O que observei confirmou plenamente a ideia de como esse meio de comunicação pode transformar negativamente uma cultura, reconfigurando-a de forma a adptá-la ao mundo industrial das grandes empresas.

Fui convidado pela Associação de Mulheres Nativas dos territórios do Noroeste do Canadá para visitar as aldeias mais a norte dos índios dene e dos inuit (esquimós) precisamente quando a recepção de televisão acabava de ser possível naqueles longínquos territórios. Tudo se passou nos meados da década de 1980. Aqueles territórios eram uma região muito remota, descrita como «terra baldia, vazia e despovoada», perto do círculo árctico. Para começar, o território referido, longe de estar «vazio», possui cerca de 26 comunidades nativas de nómadas itinerantes ( num total de 22.000 pessoas) que vivem dispersas ao longo dos lagos, bosques, e, a norte, da tundra. Na maior parte dos casos, estas comunidades haviam conservado a sua economia tradicional e as suas práticas culturais: a pesca através do gelo, a caça com tiro, com cães e armadilhas. Viviam em casas comunitárias, feitas de troncos de madeira para várias famílias que compartilhavam o trabalho. Nesses locais, as temperaturas baixam a -30º e a estação de Verão era muito pequena. As precipitações eram de tal modo escassas que a região se considera desértica. Esses povos iam sobrevivendo, aparentemente, com alegria, desde há mais de 5 mil anos, até que chegou a televisão.

Segundo a Associação de Mulheres Nativas logo que chegou a televisão as coisas começaram a mudar. O governo canadiano tinha insistido junto destas comunidades para que aceitassem a sua oferta grátis de instalação de televisão por satélite, admitindo que a sua intenção era para que os indígenas se sentissem mais canadianos. Acontece que a descoberta de novas jazidas de petróleo nos territórios mais a noroeste requeria uma maior abundância de mão de operários, e os índios bem poderiam desempenhar essa função, para mais como uma mão de obra barata, desde que abandonassem os seus hábitos tradicionais. Ora a televisão era o único meio de poderia realizar essa tarefa de desculturalização e de reculturalização que levaria a estimular o desejo de abandonar os costumes índios, e tornar estes povos mais urbanizados, à procura de comodidade e de salários regulares.
A Associação das Mulheres Nativas confirma que a chegada da televisão provocou mudanças repentinas na vida familiar, em especial no comportamento e nos valores dos jovens, principalmente quanto ao seu interesse em aprender as habilidades tradicionais de sobrevivência num habitat dos mais duros do mundo. Para além do mais, os jovens deixaram de ir à caça e pesca. O que eles passaram a querer a desejar era comida junk, carros novos ( apesar daqueles territórios não teres estradas), e roupa de moda.

Mas o mais grave, segundo aquelas mulheres, era a extinção de práticas culturais como «narrar histórias». Até a televisão chegar uma das actividades mais típicas era, depois do cair da noite, a refeição em comunidade, após a qual os jovens se reuniam num canto com os mais velhos para escutar as suas histórias. Escusado dizer que eram histórias fabulosas que tinham passado por gerações, e através das quais se realizavam processos de aprendizagem, essenciais para a preservação da cultura. Mais do que isso, as pessoas eram criadas com essas histórias. Estar sentada com os mais velhos, a ouvir os seus contos, era como uma janela aberta para o passado, para as raízes ancestrais da existência índia. Reuniões como essas estimulavam também, o amor de integração, a confiança e o respeito. Com a chegada da televisão, acabaram as narrativas e os contos.
Quando eu lá cheguei encontrei toda a gente, jovens e menos jovens, sentada diante de um aparelho de televisão a ouvir «histórias» de Los Angeles, de Toronto e Nova Iorque sobre polícias e ladrões, casas esplendorosas e refeições opíparas.
Ao fim de escassos 3 anos os jovens começaram a dizer que lhes custava serem «índios» e que, por sua vontade, queriam ir trabalhar para o oleoduto, e ir viver para as barracas, construídos para o efeito pelos projectistas da empresa de extracção do petróleo.

Autor: Jerry Mander
O texto é o prefácio da tradução em castelhano do conhecido livro de Jerry Mander « Os quatro argumentos para acabar com a televisão» ( existe tradução portuguesa na Antígona)