Quer isto dizer que todos os aspectos da nossa existência passam pelo pequeno ecrã.
Impossível ignorar esse poder imenso que a todos afecta.
Esta semana, o Eurodata TV Worldwide ( que integra a empresa europeia Médiamétrie) divulgou um curiosíssimo estudo sobre os tempos de consumo da televisão. De acordo com os dados recolhidos em 64 países, verifica-se que a duração média de acompanhamento da televisão, por dia e por pessoa, atingiu em 2005 o valor de 3 horas e quatro minutos, um minuto mais do valor correspondente a 2004. Considerando os trinta países (predominantemente europeus) que constituem a base histórica dos estudos do Eurodata, isso significa que, entre 1995 e 2005, cada cidadão passou a consumir mais 28 minutos diários de televisão: cada europeu vê agora 3 horas e quinze minutos de televisão por dia.
São dados tanto mais impressionantes quanto ajudam a sacudir um pouco a pressão chantagista que, por vezes, os números das audiências adquirem no interior de alguns discursos. (…) De acordo com tais discursos, o máximo de audiência coincide com o «gosto» mais alargado, ogo deve ser adoptado como lei global de todas as grelhas.
Em boa verdade, essa lógica argumentativa não passa do simulacro de um discurso economicista, empenhado em reduzir todas as actividades humanas a quantidades sempre mensuráveis que, na sua frieza aritmética, não reconhecem legitimidade a qualquer ponto de vista alternativa.(…) Tem-se visto, entre nós, os resultados práticos da sua maquinaria. Ou seja: o triunfo generalizado de conceitos unívocos de espectáculo ( com o domínio absoluto do futebol) e de modelos encerrados em mecanismos de pura repetição ( televisão, reality shows).
Os valores divulgados pelo Eurodata implicam uma mensagem muito simples com que, regra geral, as televisões não gostam de lidar. A saber: a televisão é o maior e mais poderoso instrumento cultural do mundo contemporâneo. Importa repetir esta evidência básica, quanto mais não seja porque muitas televisões (sobretudo as generalistas) insistem em definir a «cultura» como o espaço dos «outros», negando o simples facto de que tudo na televisão é cultural. Porquê? Porque decorre de escolhas ( o que se programa e o que não se programa), destaques ( o que se coloca no horário nobre ou dele se exclui) e celebrações ( o que se promove e o que se difunde sem qualquer tipo de apoio).
Supor que a cultura é o espaço de um «bem» comum e automático é um discurso de incorrigível ingenuidade (…) A cultura …é…uma paisagem sempre em guerra. O que é que nela se guerreia? Visões do mundo, modos de olhar, conceitos de relações. A média de mais de 3 horas por dia é um poder imenso. Tudo nas nossas vidas passa por ele.
Reprodução quase integral de um artigo de autoria de João Lopes, sob o título «A cultura é uma guerra», publicado no Diário de Notícias de 2 de Abril de 2006