O direito penal ou, mais exactamente, aquilo que se convencionou chamar direito criminal está em franco descrédito. O facto não é surpreendente, pois do que se trata ainda é de um vestígio residual de épocas passadas, uma disciplina indelevelmente ligada ao tempo histórico pretérito. Os criminalistas insistem, no entanto, em manter os seus ilógicos conceitos, no meio de todos os estertores a que vimos assistindo que lhe vão retirando toda e qualquer credibilidade e, apesar da sua morte anunciada, teimam em travar o passo, e impedem, por todas as formas, as mais insidiosas, o avanço dos criminólogos, e o seu enorme e continuado labor, que pretendem demonstrar os seus assertos e investigar as causas da delinquência por via da criminogenia.
Para o desenvolvimento da criminologia não faltam, por conseguinte, resistências e obstáculos, tal como se passou, de resto, com Pasteur, Freud e muitos mais cientistas e investigadores. A Pasteur foi-se ao ponto de lhe ser recusado o título de médico, não obstante as suas descobertas - contra os santuários intocáveis erigidos a favor das verdades absolutas – terem sido determinantes para a evolução da Humanidade. Contra a ciência oficial também Freud se levantou ao demonstrar que «a histeria não era uma doença exclusiva da mulher, mas que também existe nos homens», conclusão que não foi sequer tolerada pelos seus opositores, firmes e convencidos como estavam, que a histeria era, única e exclusivamente, uma enfermidade do sexo feminino.
Face aos desenvolvimentos da genética, neurobiologia, neurofisiologia, sociologia, antropologia e tantas outras disciplinas que têm materializado importantes descobertas para entender o comportamento humano, o direito penal mostra-se cada vez mais anacrónico e passadista. Na realidade, ao passo que o direito criminal é uma disciplina normativa, fria, dogmática, já a criminologia, por sua vez, se mostra como uma área de saber relativamente sistematizada, explicativa e causal. A diferença que vai entre a ficção abstracta e a dogmática da penologia até ao território objectivo e experimental da criminologia é bem nítida e esclarecedora.
O direito penal para funcionar requer certos pressupostos como, por exemplo, a livre determinação do sujeito. A criminologia, pelo contrário, procura os factos e as circunstâncias concretas, tangíveis, que constituam a conexão entre o efeito – o delito – e as causas que o gerou. A criminologia não só se interroga sobre «o que é o delito», mas investiga ainda as próprias raízes da questão «porque é que, certo facto, é um delito» . A criminologia entranha-se nas razões mais profundas de natureza biológica, psicológica e social que levaram e se reflectiram na conduta delinquente.
O direito criminal começou há muito a perder qualquer credibilidade, pois deixou de ser o depositário de qualquer verdade incontroversa, passando a exibir a sua verdadeira natureza como simples instrumento vingativo de uma classe, cujos interesses protege, através de normas rígidas e das suas consequentes perseguições. Para o seu descrédito não foi alheio também o facto de se abster em conhecer o próprio ser humano, na sua complexidade individual e social, para o colocar antes num terreno etéreo do bem e do mal, isto é, no plano da pura moral, quando não está mesmo ao serviço dos próprios interesses conjunturais do Estado e dos governos e respectivas políticas criminais.
Tanto na substância como no plano procedimental as questões penais deveriam estar entregues a cientistas das ciências humanas ( psiquiatria, psicologia, sociologia, etc, etc) e não a simples juristas que pouco entendem para além dos preceitos frios e inertes, elaborados por legisladores, para valerem com regra geral.
Já se preconizou que a chamada justiça penal fosse substituída pela «clínica penal», e que a pena desse lugar a tratamentos adequados à conduta e às circunstâncias do delinquente. No dia em que o direito penal for substituído pelas várias ciências criminais que estudam o fenómeno criminal desde várias perspectivas, nesse dia começará o crepúsculo dos códigos penais, que deixarão de ser penais para se transformarem em terapêutica para condutas antisociais, antes mesmo que se produza o delito propriamente dito. Bem ao contrário do direito penal, fundado na arbitrariedade da política penal do Estado, a criminologia tende e assume-se cada vez mais como uma ciência que conhece as causas e o desencadear de todo o processo causal que leva à delinquência.
Mais a mais, a criminologia não vê o delinquente como alguém desprezível. Vê-o antes como um indivíduo afectado por diversos factores que urge conhecer e reparar, e que justifica a sua intervenção.
A enorme quantidade de falhanços e erros da máquina jurídico-penal, que provocaram a morte e a punição de tantos inocentes, justifica em absoluto toda uma nova abordagem com recurso à multidisciplinaridade das ciências criminais. Recordemos os casos dos fuzilados em Liège, Bélgica, de 1891 a 1892; do trabalhador mexicano Emiliano Benavides, electrocutado em Huntsville em Agosto de 1942; de Hauptmann a quem acusaram do assassinato do jovem Lindbergh; dos dirigentes operários da greve de Chicago em Maio de 1886 que pagaram com as suas vidas a provocação policial que lançou uma bomba sobre a multidão; a Joseph Majczek cuja inocência ficou provada quando o acusado estava em vias de ser passado pelas armas; os casos de Tom Mconey, Sacco e Vanzetti, de Stielow, dos negros de Scottsboro; em França, os casos de Figaud; na Inglaterra, os de Robert Drake, de Violeta van der Elst, e Tomthy Evan (em 955); na Itália, o caso de Pacuale Ferrini; etc, etc. Todos eles põem de manifesto a inoperância do direito penal, que mais parece um ordenamento fossilizado, para não dizer instrumentalizado, e que está longe de se mostrar apropriado para prevenir e punir a delinquência.
Diz o axioma jurídico romano que as leis desajustadas às necessidades da comunidade são ela próprias que motivam a delinquência («leges ineptas criminum causa») e todos os precedentes, tal como os acontecimentos mais recentes, só confirmam essa grande verdade vinda do fundo dos séculos.
( texto elaborado a partir de um artigo publicado no jornal Tierra y Libertad, de Diciembre de 1978)