28.7.05

Abolicionismo penal


A história passada e do presente tem-se encarregado de mostrar que o direito penal não consegue resolver as questões para as quais foi criado, envolvendo-se antes numa espiral que tem contribuído não só para alimentar o círculo vicioso da violência e da delinquência social, como se transformou num puro instrumento do poder arbitrário sem qualquer outra finalidade que não seja a materialização da política conjuntural do poder instituído.
Preocupando-se exclusivamente com o autor do delito, e sua punição, o direito e o actual sistema penal ignora todas as outras pessoas, incluindo a própria vítima, que deveria merecer antes toda a atenção. Apresentando-se como pacificador e preventivo, e um meio para garantir a segurança das pessoas, a verdade é que o direito e o sistema penal modernos não poucas vezes tornaram-se num agente da própria violência e incerteza.
Aliás, um dos argumentos dos defensores do abolicionismo penal é mostrar que nas nossas sociedades já se prescinde do sistema penal tal como está actualmente configurado. Com efeito, um número cada vez maior de pessoas procuram encontrar soluções pacíficas para litígios através de mecanismos de conciliação e de carácter compensatório, sem recorrerem à máquina punitiva do sistema penal do Estado.
Por outro lado, está provado que o direito penal não alcança muitíssimas situações sociais que, de outro modo, seriam penalmente tuteladas: falamos das chamadas «cifras negras» que traduzem numa infinidade de delitos que não entram sequer no sistema penal, ficando os seus intervenientes sem qualquer tutela penal. Este facto mostra, se necessário fosse, a crescente desadequação do tradicional direito penal - especialmente na sua vertente de direito criminal, com o uso e abuso das penas privativas de liberdade - às realidades sociais dos nossos dias.
Por mais reformas que sejam introduzidas, por mais descriminalizações que sejam decididas, o que realmente está em xeque é toda a filosofia que serve de base ao direito penal e ao sistema que ele materializa, tal como o conhecemos desde o século XVIII.
Só a abolição do direito penal, e não simplesmente a simples descriminalização, permitirá às ciências criminais uma abordagem multidisciplinar do fenómeno, assim como a substituição do primado da punição sobre o delinquente pela consequente valorização e intervenção das vítimas e de todo a comunidade no sentido de garantir a justiça compensatória que o delito praticado venha a determinar e exigir.
Pouco a pouco emerge um novo paradigma de justiça social diametralmente diverso daquele que tem existido, e que teve no aparelho repressivo do Estado o seu principal esteio e na pena privativa de liberdade a sua penalidade de eleição, com todo o cortejo de perversões e contra-sensos que tem acompanhado o sistema penitenciário e as prisões em geral.
À medida que o aparelho de Estado vai declinando, depois de ter preenchido as suas funções históricas que lhe foram atribuídas ao longo da modernidade capitalista dos últimos três séculos, assiste-se também ao naufrágio dos fundamentos que originaram o sistema penal estatal, com os seus códigos, as suas perseguições policiais, as suas prisões, e todas as instituições que lhe sobrevieram para o materializar naquilo que hoje todos nós conhecemos.
Não é, por acaso, que os próprios profissionais forenses (magistrados, juízes, advogados e juristas em geral) fogem instintivamente dele, tal é o descrédito em que, já há muito tempo, o sistema jus-criminalista e o seu direito penal caiu.
O paradigma emergente da justiça penal valoriza mais a vítima que o delinquente, a justiça compensatória mais que a ideia de punição em termos de privação da liberdade, a intervenção comunitária e social em vez do sistema punitivo estatal.