5.6.05

Para uma ecopolis

Notas para uma estratégia de ecopolis

Por Jacinto Rodrigues

1. METODOLOGIA

A primeira reflexão metodológica é a necessidade de pensar em termos interdisciplinares e transdisciplinares nas intervenções urbanas. A abordagem deve ser integrada. Os vários elementos: a componente das energias, da produção, da circulação, dos consumos e da reciclagem, interagem uns nos outros. Assim, as questões naturais, técnicas e sociais são sistémicas e só podem ser abordadas segundo o pensamento da complexidade.Essa abordagem deve ser mais profiláctica do que terapêutica. A cidade deve ser entendida como um eco-sistema. Tal perspectiva exige sair da visão ?modernista? da cidade mega-máquina e procurar enquadrar a urbe como a expressão eco-sistémica da ligação da sociedade como componente da Biosfera. Este é o sentido lato com que se deve entender a paisagem antrópica.A cidade como mega-máquina é dissipativa, consumista e contaminante. Tem como matriz o ?Shoping Center?.A eco-polis, cidade como eco-sistema regenerativo, funciona num processo integrado entre civilização, eco-técnica e biosfera.

2. CONCEPÇÃO DA PAISAGEM

Assim, a estrutura construída, o processo de urbanização, deve enquadrar-se na paisagem mais global e articular-se na cidade-região/cidade-natureza. Como corolário deste ponto de vista procura-se então, em vez do uso de energias fósseis que levam ao esgotamento dos recursos naturais, criar uma produção de energias renováveis e eliminar uma produção com materiais poluentes e energias não limpas, evitando os resíduos contaminantes e tóxicos. Os lixos deveriam ser recicláveis, permitindo assim a substituição do metabolismo linear, próprio das máquinas, em metabolismo circular ou regenerativo dos seres vivos. Esta é toda a diferença existente entre um entendimento da cidade como máquina ou da cidade como ?ecosistema?.

3. MULTIFUNCIONALIDADE

A monofuncionalidade, ou seja, a separação das actividades urbanas, característica dos zonamentos da cidade-máquina ?moderna?,deve dar lugar a uma interacção onde os mesmos elementos podem constituir respostas multifuncionais.Isto é particularmente importante no que diz respeito à relação entre paisagem natural e edificação. As árvores e os arbustos, a reorganização do planeamento vegetal em geral, e também a reorganização hidrológica, constituem factores não apenas susceptíveis de embelezamento estético mas de bioclimatização e de biodepuração.

4. BIO-CLIMATIZAÇÃO E BIO-DEPURAÇÃO

O verde urbano, através de corredores verdes, jardins e bosques urbanos, deve ter uma função ecológica decisiva para a bioclimatização e biodepuração.Muito do lixo orgânico, resultante dos consumos urbanos, pode ser reciclado como fertilizante para hortas e bosques. Recorde-se o exemplo de Curitiba em que os fertilizantes orgânicos entregues pelos cidadãos, permitem a troca com produtos agrícolas criados nas hortas municipais.Também a renaturalização dos rios não é apenas uma questão de estética.Hoje conhecem-se bem os fenómenos da fito-depuração dos sistemas de lagunagem, da meandrização e das pequenas cascatas como factores de melhoria na qualidade da água.

5. ENERGIAS RENOVÁVEIS

As energias renováveis devem ser tratadas como uma questão central do ecodesenvolvimento. Devem ser utilizadas duma forma integrada e essencialmente numa escala regional. Por exemplo: mini-centrais que articulem várias energias complementares (solar/ eólica/ hídrica/ biogás, etc.) podem responder muito melhor do que estruturas gigantes monoenergéticas. A escala construtiva comunitária oferece também vantagens sobre o uso de protótipos energéticos à escala familiar. Todas estas estruturas devem inserir-se numa malha policêntrica do território, capaz de o cobrir, energeticamente, com o máximo de descentralidade e complementaridade.

6. BIO-CONSTRUÇÃO

A edificação deve pautar-se por uma legislação com preocupações ecológicas claras. O uso de materiais não poluentes, as preocupações pelos sistemas solares passivos, a articulação com a bioclimatização gerada pela eco-paisagem, devem ser um factor chave. A própria disposição espacial pode valorar o aproveitamento energético.O exemplo francês pode ser implementado como processo pedagógico. O programa denominado construção de alta qualidade ambiental (H.Q.C.) estabelece concursos especiais na base de soluções ecológicas através da escolha de materiais não poluentes e soluções energéticas alternativas.As edificações públicas, em particular as escolas e centros de formação cultural devem tornar-se experiências exemplares. Quando funcionam segundo o preceito da eco-construção, favorecem comportamentos e atitudes que são as melhores soluções para uma verdadeira educação ambiental.A construção bioclimática exige novas formas, novos materiais, novos processos de implantação topológica. Estas novas morfologias complexas são dispositivos catalizadores duma outra civilização.

7. AGRICULTURA E INDÚSTRIA ECOLÓGICA

Em articulação com a actividade construtiva e também em função de outras actividades como a industrial, deveria proceder-se a uma eco-agricultura que complementarizasse a abertura de novos postos de trabalho às exigências simultâneas da agricultura e indústria numa base ecológica. Um exemplo que me parece interessante estudar é o do incentivo da cultura do cânhamo que foi uma cultura historicamente conhecida no Norte, Centro e Sul de Portugal, nomeadamente quando era aplicado no fabrico das velas e do cordame para os barcos à vela, desde o séc. XVI. Tem a seguinte particularidade: é uma produção agrícola de fácil manutenção, beneficia os solos e permite, para além da tecelagem, o fabrico de papel e outros materiais. Acontece ainda que, através de processos recentes, esta planta está a ser utilizada na bioconstrução. Também a transformação tecnológica do bambú chinês ?miscanthus? poderá vir a possibilitar uma articulação entre a actividade agrícola e a bioconstrução.São também possíveis outro tipo de actividades agrícolas (permacultura, agricultura biodinâmica) capazes de promover agro-pecuárias ecológicas.

8. TRANSPORTES ALTERNATIVOS

Os transportes públicos não poluentes deveriam constituir uma alternativa à invasão do trânsito urbano.Com os corredores verdes, para além da função depuradora, criam-se circuitos pedonais e ciclovias que poderão permitir conexões entre várias zonas.As passarelas constituem atravessamentos fáceis, permitindo logradouros por onde se espraiam paisagens urbanas.Os centros da cidade, em particular os centros históricos, são avessos ao uso de automóveis.No estado actual, os veículos são poluentes e constituem uma oposição ao uso de hortas urbanas e espaços públicos de lazer e cultura.

9. PARTICIPAÇÃO CONSCIENTE DAS POPULAÇÕES

A prática do urbanismo numa perspectiva ecológica deverá ter em conta a mobilização das populações na detecção dos problemas e sua resolução.Assim, o eco-urbanismo é, antes de tudo, desígnio estratégico sujeito às múltiplas interacções surgidas ao longo dum percurso que deve ser entendido como processo permanente embora com faseamentos nos objectivos mas que serão sempre sujeitos a constantes avaliações e retroacções.A ?investigação-acção? e o ?trabalho de projecto? são as práticas sociais que melhor se coadunam com esta filosofia. A mobilização consciente da população é decisiva. Volto ainda à experiência de Curitiba: Nalguns festivais culturais, encontros de cinema, teatro ou música promovidos pela municipalidade dessa cidade brasileira, a entrada dos espectáculos é paga com garrafas usadas ou papel para reciclar. Este tipo de mobilização pela positiva é uma forma educativa que sendo alheia a qualquer processo administrativo-repressivo, liga as aspirações às necessidades, promove solidariedade e cooperação num clima social, lúdico e festivo tão necessário à participação popular nos objectivos de interesse público.Através desse processo, a população vai tomando consciência da problemática ecológica e o planeador deixa de ter a arrogância dum tecnocrata autoconvencido dum qualquer ?modelo? estático e ?ad eternum...?.Assim, o eco-urbanismo é um caminho que se faz caminhando, parafraseando o poeta Machado.No entanto, qualquer intervenção deve ser reflectida e inserida numa óptica projectiva, futurante, pois os dispositivos topológicos são, por natureza, resistentes à mudança. E quando se constroem dispositivos errados, estes funcionam como travão às mudanças, podendo mesmo transformar-se em mecanismos de reprodução de hábitos opostos à necessária e permanente metamorfose social.

Jacinto Rodrigues, in A Página

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