10.6.05

A Criança e o Estado




Introdução

O tema que nos propomos tratar ao longo deste trabalho são as relações que o Estado tem mantido com o mundo das crianças.


Metodologias

No presente trabalho exploram-se algumas pistas de acesso ao estudo multidisciplinar entre as ciências sociais, fornecidas pelo discurso jurídico sobre a criança e que nos obrigou a lançar mão de algumas metodologias sociológicas e outros tantos instrumentos teóricos fornecidos por concepções macroscópicas em domínios vários que vão desde a Retórica, a Sociologia do Direito, a Antropologia do Direito, a Filosofia do Direito e do Estado, até à Teoria Sociológica e às Sociologias Especializadas.
João Ferreira de Almeida e J. Madureira Pinto (1976) distinguem técnicas documentais e não documentais em ciências sociais. Nas primeiras separam as de teor clássico, que se caracterizam por uma análise qualitativa em profundidade, das técnicas modernas, de características quantitativas e extensivas cujo objecto de estudo são um vasto campo de estudo. Aquelas são alvo de críticas cerradas pela sua tendencial subjectividade, pelo que são habitualmente complementadas pelas segundas, que revestem normalmente duas modalidades: a semântica quantitativa ( estudo do vocabulário por processos estatísticos) e análise de conteúdo (estudo, já não de vocábulos, mas de significações e de materiais significantes em geral). Note-se que a quantificação não garante só por si a validade da pesquisa, nem se pode desconhecer as virtualidades da análise qualitativa. A análise do conteúdo veio a ser definida como uma “técnica de investigação que permite fazer inferências, válidas e replicáveis, dos dados para o seu contexto” ( Krippemdorf citado em Vala, 1986), o que exige a maior explicitação de todos os procedimentos utilizados. “O material sujeito à análise de conteúdo é concebido como o resultado de uma rede complexa de condições de produção, cabendo ao analista construir um modelo capaz de permitir inferências sobre uma ou várias dessas condições de produção. Trata-se da desmontagem de um discurso e da produção de um novo discurso através de um processo de localização-atribuição de traços de significação, resultado de uma relação dinâmica entre as condições de produção do discurso a analisar e as condições de produção da análise” (Vala, 1986).
Recorde-se que a questão metodológica nas ciências sociais não é das mais fáceis desde o declínio do positivismo, o que é tanto mais paradoxal quanto é certo que tinha sido o próprio positivismo-empirismo que mais tinha aprofundado a matéria. A reflexão metodológica encetada então conduziu à distinção entre campo teórico substantivo, campo analítico e campo de observação; ao pluralismo metodológico ( uso articulado de métodos qualitativos e quantitativos, e das várias técnicas de investigação); e ao exercício da reflexividade ( “ a ciência torna-se reflexiva sempre que a relação «normal» sujeito-objecto é suspensa e, em seu lugar, o sujeito epistémico analisa a relação consigo próprio, enquanto sujeito empírico, com os instrumentos científicos de que se serve, com a comunidade científica em que se integra e, em última instância, com a sociedade nacional de que é membro”), com duas orientações distintas ( uma reflexividade mais subjetivista, e outra mais objectivista, e em que na primeira se procura tornar explícitos os pré-juízos, os valores do sujeito epistémico, como fazem W. Mills, H. Becker, G. Myrdal, A. Gouldner, Boaventura S. Santos, e em que na segunda se questiona já não o sujeito, mas os instrumentos teóricos que utiliza, como faz, por exemplo, Bourdieu, e muitos trabalhos sobre sociologia da sociologia). ( Santos,1989)
Será com estes parâmetros metodológicos que nos abalançamos a levar a cabo a análise das relações entre o Estado e a criança, mormente através do discurso legislativo que aquele tem produzido na última centúria. Dadas as características do presente texto não se cuida agora em aprofundar e esclarecer questões de metodologia. Esta secção serve apenas para dar alguma consistência científica a um trabalho a que se quer dar alguma seriedade e não apenas aos imperativos do dever académico cumprido.


O Estado



«Sem fé, sem lei, sem rei», era ssim que no século XVI o Ocidente falava dos povos indígenas, caracterizando desta volta a sociedade primitiva. Inversamente, toda a sociedade não primitiva teria um aparelho estatal (Clastres, 1974). Sociólogos e antropólogos têm demonstrado que existe poderes que não se confundem com os do Estado, sendo possível encontrar sociedades sem Estado, em relação às quais é estranho qualquer ideia da instituição de um poder político acima da sociedade. Óbviamente que tal facto não impedia que tais sociedades não desconhecem as noções de autoridade e de coerção, até pela razão simples de os respectivos líderes e chefes estarem revestidos de um prestígio, de um carisma e de dons especiais que se concretizava na irradiação de uma autoridade dificilmente contestada. Como quer que seja, certo é que as investigações antropológicas, etnológicas e históricas levam-nos à conclusão que o Estado nem sempre existiu.
A História tem mostrado como terá sido a génese do Estado moderno. Este, como poder político institucionalizado, começa a esboçar-se no seio da sociedade feudal do século XIII e XIV em reacção contra o poder senhorial e eclesiástico. Enquanto no regime feudal subsistiam vínculos e laços individualizados, a máquina estatal moderna assenta em instituições. Logo aí se pode descortinar a diferenciação entre a autoridade ( fundada na instituição) e o indivíduo que a exerce, que pode ser assim regularmente substituído sem lesão de maior para a conservação daquela. O Poder deixa de estar incorporado em individualidaes para se construir com base em estruturas jurídicas explícitas regulando as relações públicas e privadas. “No Estado, o Poder é institucionalizado no sentido em que é transferido da pessoa dos governantes que não mais o têm, para o Estado que se torna o único detentor do Poder” (Burdeau, 1970). Defende-se aqui uma concepção continuísta do Estado.
A edificação do Estado moderno é feita seguindo linhas evolutivas aparentemente dispersas, desde a institucionalização até à centralização do aparelho estatal, passando pela especialização dos próprios agentes e funcionários, até convergirem na emergência do Estado moderno e à transferência para o Rei dos diversos vínculos de natureza feudal.
Aparece então uma estrutura durável e soberana, a quem é outorgada a autoridade suprema, e que exclui toda a subordinação e a concorrência de qualquer autoridade potencial, assistindo-se à identificação de cada estrutura estatal a uma comunidade etno-linguística que lhe era subjacente, vindo a culminar no Estado-nação.
Para Maquiavel o princípe ( figura de Soberania ) tem uma relação de transcendência com o seu principado, está acima da lei, e a sua acção não tem limites morais a não ser os critérios de eficácia.
Já para Hobbes a teoria sa soberanis absoluta liga-se à ideia de um «contrato» ( visão contratualista do Estado ), concebido como forma de abandonar um «estado de natureza» insustentável e, assim, fundar voluntáriamente uma organização social.
O livre arbítrio do soberano é progressivamente substituído pela ideia de que a realidade social não é aleatória, devendo o soberano «ilustrado» conhecer as leis que regem os comportamentos das populações, pelo que as leis deixam de ser imperativos morais, mandamentos divinos, para se transformarem em leis científicas, em regularidades necessárias.
Henri Lefebvre, na sua conhecida obra “De l’État”, escreve: “O Estado realizou aquilo que nenhuma religião e igreja conseguiram fazer: conquistar o mundo, alcançar a universalidade, ou pelo menos, a generalidade, e assumir, tal como o mercado, a qualidade planetária”.
A concepção classista do Estado perspectiva-o dentro de um sistema económico dado - o capitalismo -, aparentemente separado da sociedade, podendo revestir-se de diversas formas, mas sempre indexado aos superiores interesses de uma classe, sem nunca perder aquela natureza classista apesar das vicissitudes históricas no transcurso da evolução socio-histórica. Na terminologia marxista o Estado e as superestruturas política e jurídica têm a função ideológica, e de controle formal, ajustada às exigências da classe social dominante, estando assim identificado com a racionalidade instrumental da infra-estrutural socio-económica. Neste quadro são conhecidas as teses funcionalistas (Ralph Miliband, Paul Sweezy) e as teses estruturalistas ( Poulantzas) sobre o Estado.
Claus Offe critica ambas as perspectivas por só examinarem as determinações externas à actividade estadual, e nenhuma delas tratar os mecanismos internos do Estado. O conceito que o cientista político alemão utiliza - os «mecanismos selectivos» - serve-lhe para identificar três funções básicas dentro do aparelho estatal: 1) selecção negativa, a fim de excluir sistematicamente da actividade estatal os interesses anticapitalistas; 2) selecção positiva, pela qual se selecionará a política que favoreça os interesses do capital no seu conjunto; 3) selecção de «mascaramento» para manter a aparência da neutralidade de classe da máquina estatal. Offe ocupa-se então em estudar o carácter contraditório que estes mecanismos vão assumindo. Demonstra, por exemplo, que muitas estruturas relevantes na selecção negativa ( tais como os rígidos procedimentos burocráticos, e as defesas constitucionais e ideológicas da propriedade privada ) são entraves para o desenvolvimento de mecanismos selectivos que garantam uma produção do Estado ao serviço dos interesses gerais do capital ( Wright, Gold, Lo, 1985).
Boaventura Sousa Santos identifica o Estado com o Pilar da Regulação no projecto sócio-cultural da modernidade, que é subdividido em três períodos: capitalismo liberal (onde se contrapões a sociedade ao Estado ); capitalismo organizado (onde se assiste ao aprofundamento e relacionamento do Estado com o mercado através da progressiva regulamentação dos mercados, o que acrescido com as intervenções várias dará origem ao designado Estado-Providência); capitalismo desorganizado ( onde a fraqueza externa do Estado motivada pela transnacionalização da economia e do capital, é compensada pela frenética actividade institucional e burocrática do Estado e do reforço do seu autoritarismo). O resultado é uma desregulação global da vida económica, social e política que, no entanto, sublinha aquele autor, na esteira de Offe, coexiste com uma atmosfera espessa de rigidez e de imobilidade ao nível global da sociedade ( Santos, 1994).
Julgamos mais que oportuna esta referência ao Estado pois somos da opinião que se torna imprescíndivel a elaboração de uma Teoria do Estado e da Educação na esteira do outros autores preconizam ( Morrow, Torres, 1997), e por arrastamento, uma qualquer abordagem acerca da criança não pode ser realizada sem a sua contextualização e o enfoque que a organização estatal reserva ao mundo infantil, sob pena de mutilação insustentável. A hipertrofia da função educativa do Estado moderno, conduzindo-o a tomar a iniciativa de dar resposta ao aumento da procura do ensino, além da sua instalação em muitos domínios da vida social, reforça ainda mais a necessidade de questionamento das relações entre o Estado e as crianças. Falar destas, do seu lugar na sociedade, da história da concepção social sobre a criança, sem se referir explicítamente à intervenção do Estado na matéria, dada a importância que este tem vindo a ganhar, seria certamente condenar a investigação sociológica.
Talvez não seja despropósito lembrar a concepção hegeliana do Estado, e a legitimidade que dela arranca do Estado como educador por excelência da sociedade: “ O Estado é a realidade em acto da ideia moral objectiva, o espírito moral como vontade substancial revelada, clara para si mesma, porque se conhece, se pensa e se realiza no que sabe, porque sabe” ( segundo tradução livre do texto original).
Mas a verdade, porém, é que o Estado não é uma constante histórica, mas antes o produto de uma evolução histórica. Actor do sistema social, o Estado está ligado à história deste sistema, o qual por sua vez não se encontra menos associado à própria história do Estado. Um dos contributos primeiros para uma sociologia do Estado foi-nos legado por Marx. Este examina com minúcia o aparecimento das estruturas burocráticas «reais», o Estado constituinte que se torna em «potência real e o seu próprio conteúdo». Analisa as trajectórias estatais em países como a Inglaterra, a França, a Prússia, os Estados Unidos, para rematar que, apesar da diversidade das formas que se revestiu essa trajectória, a máquina estatal em todas elas assenta na moderna sociedade burguesa. Refere-se ao Estado bonapartista como aquela específica forma estatal que gozaria de maior autonomia face à sociedade. Mas nunca deixa de nomear o «o governo moderno como um comité que gere os negócios gerais da classe burguesa», os seja, o objectivo do Estado confunde-se com o do capitalismo.
Durkheim analisou o desenvolvimento das sociedades em função da divisão do trabalho, na linha do organicismo prevalecente no séc. XIX que via na divisão do trabalho o princípio esplicativo da história das sociedades, que se desenvolveriam à maneira dos sistemas biológicos, através de uma especialização incessante que levava a que cada orgão assumisse cada qual uma função específica. É certo que Durkheim se afasta do organicismo mais estreito ao mostrar como a divisão do trabalho não deixa de implicar o aparecimento de novas estruturas, e por conseguinte, de novas formas de poder. Daí afirmar “...que quanto mais as sociedades se desenvolvem, mais o Estado se desenvolve, as suas funções se tornam mais numerosas, penetram mais e mais em todas as funções sociais, que ele acaba por concentrar e unificar ele mesmo. O progresso da centralização é paralelo ao da civilização”. Durkheim formula pois uma concepção evolucionista da transformação das sociedades e de como a necessária divisão do trabalho conduz inelutavelmente à aparição do Estado., segundo leis idênticas.
É conhecida a interpretação que ele faz da história dos sistemas sociais: nas sociedades que não conhecem a divisão do trabalho, a solidariedade derina de uma forte coerção externa exercida pelo costume, pela religião e pelo conjunto das representações colectivas, sendo esta solidariedade mecânica resultado pois de um forte controle social. Mas à medida que aumenta a densidade social, assiste-se a uma indispensável divisão do trabalho que favorece a eclosão de uma solidariedade organica, derivada da divisão funcional das tarefas, ou seja, da interdependencia dos actores. Neste contexto, as representações colectivas diminuem de peso e intensidade, o mesmo se passa com o controle social, ao passo que o Estado se desenvolve como um organismo distinto do todo!
Inspirando-se em Tocqueville, Durkheim traça a história do Estado como força única de centralização, mostrando como o Estado se implantou progressivamente ao longo de todo o território numa rede cada vez mais complexa substituindo-se aos organismos pre-existentes entretanto assimilidos no aparelho estatal. Na sua actividade normal, o Esatdo deve exercer várias funções, porquanto é ele o orgão de reflexão, de deliberação. “A função essencial do Estado, para Durkheim, é pensar” . O Estado aparece-nos como o orgão por excelência da Racionalidade. Adverte-nos todavia para o crescimento excessivo do Estado, que pode levar este a pretender dominar o conjunto social: “ uma sociedade composta de uma poeira de individuos indiviualizados que um Estado hipertrofiados pretenda englobar e encerrar, constituiria uma verdadeira monstruosidade sociológica”. O despotismo estatal seria criado por uma sociedade de massas profundamente atomizada, em que nenhuma outra entidade limitava o poder das instituições estatais.
Weber é o primeiro autor a encarar os fenómenos politicos como factos particulares dotados de uma lógica própria e de uma história específica. Mais que os meios de produção ou a divisão do trabalho, o que realmente influencia o sistema social são os seus meios de administração, estudando a natureza e o tipo de dominação, de subordinação, de autoridade e de poder. Recorre ao método analítico para construir tipologias, distinguindo três tipos de dominação legítima, que não se sucedem uns aos outros mas que serviriam para reconhecer as sociedades históricamente determinadas. A «dominação carismática» assenta nas qualidades excepcionais de uma personagem, tratado como se fosse um «enviado de Deus», um Fuhrer. A «dominação tradicional» apoia-se no carácter sagrado do que é transmitido para a nova geração, e exterioriza-se normalmente pelo poder patrimonial do senhor que controla a sua administração, chamando a si os seus serventuários, remunerando-os ou atribuindo-lhes um título. Contra isto ergueu-se a «dominação legal» do Estado cujo esteio, e instrumento, principal constitui a administração burocrática. A instituição estatal separa-se da sociedade , diferencia-se e institucionaliza-se, recorrendo à violência legítima e à administração. O Estado deve remunerar os seus funcionários a fim que estes se identifiquem com a sua função e se distanciem do seu vínculo social. A burocracia apresenta-se como uma organização no seio da qual os actores ocupam funções adequadas às suas competências segundo critérios meritocráticos.
A sociologia do estado contemporânea de inspiração durkheimiana baseia-se na dissociação entre o campo das relações sociais privadas e o da autoridade publica, pelo que o Estado originaria um espaço público distinto, detendo a sua própria legitimidade assim como as condições do seu funcionamento autónomo. O Estado assume-se como organizador de relações de autoridade pública; como uma colectividade humana regida por relações de cidadania; dotado de mecanismos impessoais e permanentes, superando os grupos locais e familiares como fontes de domínio. Historicamente, a construção estatal revela-se como um aspecto particular do processo mais geral de racionalização. Nesta linha situam-se autores como Smelser e Parsons para quem o aparecimento do Estado se liga ao processo de diferenciação do sistema político relativamente aos outros sistemas sociais, podendo-se inclusive vê-lo como o elemento integrador priviligiadso na medida em que será capaz de harmonizar todos as diferenciações exigidas pelo precesso de modernização, o que reforça por sua vez a importância e autoridade do Estado que se vê assi revestido de importante um capital de poder.
O paradigma funcionalista não se revelou satisfatório. Amitai Etzioni refere que mais do que o resultado de uma cisão e diferenciação, o que realmente se verifica é a unificação das funções por intermédio do Estado segundo um processo de epigénese. O nascimento do Estado corresponderia à criação e unificação de poder, e não à cisão dos poderes detidos pelas estruturas políticas pré-estatais que coexistiriam anteriormente de modo atomizado.
Todo o debate sociológico em torno do Estado e a sua convocação para estas linhas tem a virtualidade de chamar a atenção para o lugar central que aquele ocupa nas sociedades contemporâneas, e sem a reflexão do qual não será possível a análise dos fenómenos sociais.
Boaventura Sousa Santos defende a chamada teoria da dialectica negativa do Estado capitalista que se consubstancia na ideia segundo a qual “a função política geral do Estado consiste em dispersar as contradições sociais e as lutas que elas suscitam de modo a mantê-las em níveis tensionais funcionalmente compatíveis com os limites estruturais impostos pelo processo de acumulação e pelas reacções sociais de produção em que ele tem lugar. Não se trata, portanto, de resolver (superar) as contradições sociais ao nível da estrutura profunda da formação social em que elas se produzem, mas antes de as manter em estado de relativa latência mediante acções dirigidas às tensões, problemas, questões sociais por que as contradições se manifestam ao nível da estrutura de superfície da formação social. Para tal são accionados, através, sobretudo, do direito, diferentes mecanismos de dispersão ( mecanismos de socialização, integração, trivialização, neutralização, repressão e exclusão). A grande diversidade destes mecanismos confere ao direito o seu grande dinamismo e complexidade (...) e essa heterogeneidade e essa complexidade da praxis jurídica revelam-se no facto de a legalidade capitalista ser constituída por três componentes estruturais básicos - a retórica, a burocracia e a violência - que se articulam segundo modos característicos. Cada um destes elementos constitui uma forma de comunicação e uma estratégia de tomada de decisão. A retórica baseia-se na produção de persuasão e de adesão voluntária através da mobilização do potencial argumentativo de sequências e artefactos verbais e não verbais, socialmente aceites. A burocracia baseia-se na imposição autoritária através da mobilização do potencial demonstrativo do conhecimento profissional, das regras formais gerais, e dos procedimentos hierarquicamente organizados. A violência baseia-se no uso ou ameaça da força física.” (Santos,1982)

A Construção Social da Criança

Aponta-se o estudo pioneiro de Philippe Ariès sobre “A Criança e a Vida Familiar no Antigo Regime”, editado em 1960, como referencial primeiro na análise sobre as concepções socio-históricas sobre a infância. Defende ele a tese segundo a qual a especificidade da criança só se autonomizou como fase distinta da idade adulta a partir dos finais do século XVII, especialmente do século XVIII, nas classes superiores da sociedade, sobretudo por via de uma certa individualização no vestuário, na linguagem, etc - em contraste com a época medieval em que predominava a ideia da criança como um adulto em miniatura, vivendo, trabalhando, divertindo-se no meio dos adultos. Constata ainda que, nas classes populares, a antiga concepção de infância se tem mantido até à actualidade. A inexistência de uma autonomia do mundo infantil não significava, porém, o desamparo e desprezo pelas crianças, mas antes a sua incorporação precoce no mundo adulto.
A emergência da sociedade burguesa vai a par do aparecimento do interesse pela educação infantil, traduzida numa necessidade de separação em relação à sociedade dos adultos, defendida aliás por pedagogos, moralistas e médicos - e que Ariès designa por “uma espécie de quarentena”. A partir de então, a protecção e a formação da criança, reconhecidas como necessárias, vão passar a recorrer a instituições específicas, escalonadas por níveis etários, recorrendo-se a doseamento, variável conforme os meios e objectivos, de ingredientes aparentemente contraditórios, a ternura e a severidade. Ariès fala de uma tendência para a privatização da vida familiar, em contraponto ao modelo da família alargada vigente na Idade Média.
Outro historiador da infância, com influencia no mundo anglo-saxónico, Lloyde de Mause, sugere que quanto mais recuarmos na história mais probabilidade teremos de encontrar o infantícidio, o abandono, a violência, o terror sobre as crianças. “A evolução para atitudes e condutas reveladoras de sensibilidade. reconhecimento e valorização das crianças é explicada por Mause no quadro daquilo que ele designa por teoria psicogenética da História. Aparentada ao método psicanalítico, tal teoria sustenta que cada geração acciona uma capacidade de retroceder à idade psíquica dos filhos e que, revivendo a ansiedade própria dessa idade, procura proporcinar uma melhor experência do que aquela que teve então.” (Pinto,1997).
Supomos, no entanto, que só contribuições vindas de outras áreas poderão dilucidar e aprofundar esta evolução.
Em contrapartida, sabemos o que pensavam Locke e Rousseau sobre as crianças: embora partindo de pressupostos diferentes, ambos reconheciam a necessidade da intervenção dos adultos no processo de formação das crianças, e a necessidade de uma especial atenção sobre a criança. Condorcet, no lastro da Revolução Francesa, institui desde logo a instrução pública através da escola laica, obrigatória para as crianças.
Freud destrói a imagem idílica da criança e mostra a importância da frustração e do recalcamento para a vida social. Curioso é o facto de a maior parte dos estudiosos da infância pouco ou nada dizerem sobre o contributo de Freud tal é obsessão de salvar a ideia de criança que alimentam lá no fundo. E isto apesar de Freud inaugurar toda uma nova época da contemporâneidade...
George Herbert Mead, fundador do interaccionismo, procurou estudar os processos pelos quais se desenvolve a criança em interacção entre o seu eu (self) e o do outro, e a importância que aí se reveste a dimensão da alteridade na construção de si próprio.
Em suma: “As mudanças de sensibilidade que se começam a verificar a partir da Renascença tendem a diferir a integração no mundo adulto cada vez para mais tarde, e a marcar, com fronteiras bem definidas, o tempo da infância, progressivamente ligado ao conceito de aprendizagem e de escolarização. Importa, no entanto, sublinhar que se tratou de um movimento extremamente lento, inicialmente bastante circunscrito às classes mais abastadas.” (Pinto, 1997).
A esta maior consideração pela criança sucedeu recentemente, ainda segundo Ariès, um «malthusianismo hedonista» em que a criança é encarada como um obstáculo a um melhor desenvolvimento dos individuos e do casal. O fenómeno da emancipação da mulher, o novo estatuto por esta adquirido com a sua entrada em larga escala no mercado do trabalho, e consumismo e produtivismo como apanágio do nosso sistema social não deverão ser certamente estranhos àquela evolução registada nos últimos tempos.
Chamboredon e Prévot (1982) mostram como as funções conferidas ao período pré-escolar têm evoluído desde as funções de espera e lazer para funções de socialização, preparação escolar e desenvolvimento intelectual.
Defendem ainda que a descoberta da primeira infância como «sujeito cultural» se deve ao dsenvolvimento e difusão dos conhecimentos psicológicos, e à descoberta da importância daquela idade para a constituição da personalidade. Este novo olhar surtiu efeitos vários como a criação de um mercado específico para a infância, dispositivos pedagógicos próprios e a redefinição do papel pedagógico da mãe.



O Discurso Estatal sobre a Criança

Na impossibilidade de reunirmos todo o acervo legislativo relacionado directa ou indirectamente à criança, tarefa ciclópica e desproporcionada para os fins em vista, considerámos útil e recomendável seleccionar alguns diplomas legais, desde a 1ª República, que pela sua simbologia pudessem ser representativos desse tal discurso estatal sobre a criança.

* Decreto de 29/3/1911 - Reestrutura o ensino primário, definição das linhas gerais de orientação e valorização da escola infantil

*Lei de Protecção à Infância de 11/5/1911 (LPI)

*Programa publicado no Diário do Governo de 25/8/1911 - Define os programas e regras de funcionamento do ensino infantil

*Decreto 2887 de 5/12/1916 - compilação de toda a legislação sobre o ensino primário infantil

*Decreto 12/7/1918 - Centralização da Administração do ensino

*Decreto 6137 de 29/9/1919 - Regulamentação das escolas infantis

*Decreto 6156 de 13/10/1919 - Regulamenta a escola infantil criada em Vila do Conde

*Decreto 10.767 de 15/5/1925 - Organização Judiciária de menores

*Decreto 14.498 de 29/10/1927 - Regulamenta o trabalho de menores e das mulheres


*Decreto 15.162 de 5/3/1928 - Medidas de direito criminal aplicadas a menores


*Decreto 16.037 de 15/10/1928 - Reestrutura o ensino normal

*Constituição Política de 1933

*Decreto 25.311 de 10/5/1935 - Aprova os programas das Escolas do Magistério Primário e Infantil

*Decreto 26.893 de 15/8/1936 - Aprova o Estatuto da Obra das Mães para a Educação Nacional OMEN)

*Decreto-lei 28.081 de 9/10/1937 - Determina o fim do ensino infantil público

*DL 30.135 de 14/12/1939 - Cria a Escola Normal Social para formar assitentes de serviço social que devem trabalhar em instituições com finalidades educativas

*Lei 1928 de 15/5/1944 - Regulamenta o estauto da Saúde e Assistência

*DL 35.108 de 7/11/1945 - Regulamenta a lei anterior

*DL 37.545 de 8/9/1949 - Estauto do Ensino Privado

*DL 44.288 de 20/4/1962 - OTM

*DL 47.727 de 23/5/1967 - modifica o DL anterior

*Lei 5/73 de 25/7/1973 - Reforma do sistema educativo (Reforma Veiga Simão)


*Constituição de 1996


*Lei 5/77 de 1/2/1977 - Cria a rede de educação pré-escolar do Ministério da Educação

*Despacho de 9/5/1978 - Define normas das amas legalizadas

*DL 314/78 de 27/10 - OTM

*DL 196/79 de 18/1/1979 - Bases legais do ensino particular e cooperativo

*DL 542/79 de 31/12/1979 - Define o Estatuto dos Jardins de Infância

*DL 401/82 de 23/9 - Regime especial para jovens delinquentes

*DL 90/83 de 16/2 - Centros de detenção para jovens

*DL 158/84 de 17/5/1984 - Criação de creches familiares

*Despacho Normativo 5/85 de 18/1/1985 - explicita os princípios do diploma anterior

*Divisão da Educação Pré-Escolar- Normativos - Recomendações aos educadores - 1/10/1986

*Lei 46/86 de 14/10/1986 - Lei de Bases do Sistema Educatino

*Divisão de Educação Pré-Escolar - Normativo de 13/3/87 - Criação de Jardins de Infância

*DL 286/89 de 29/8/89 - concretiza medidas no âmbito da LBSE

*DL 139-A/90 de 28/4/90 - Estatuto da Carreira dos educadores de Infância e dos Professores do Ensino Básico e Secundário

*Dec. Pres. Rep. nº49/90 de 12/9 - Ratifica a Convenção sobre os Direitos da Criança assinada em Nova Iorque em 26/1/90

Não pretendendo ser nem mais ou menos exaustivos na pesquisa sobre o discurso estatal sobre a criança podemos, no entanto, lançar algumas pistas para uma grelha de análise a partir de alguns normativos que reputarmos de alguma representatividade ao longo da produção legislativa que directa ou indirectamente diga respeito à criança.
Começando pelo Decreto de 25/8/1911 que define os programas e regras de funcionamento do ensino infantil, repare-se como se trata significativamente de um decreto dimanado do Ministério do Interior, no âmbito da sua Direcção Geral de Instrução Pública. E talvez valha a pena transcrevê-lo para inferirmos da filosofia que subjaz às suas palavras:
“As escolas infantis tem por missão tomar o filho à mãe apresentando-o mais tarde ao professor primário forte, robusto, alegre, equilibrado nas suas faculdades, apto para receber a semente da verdadeira instrução.
Não se trata nesta idade da preocupação de armazenar conhecimentos, mas de aperfeiçoar os instrumentos, de adquirir, precisos, conscientes e perduráveis.
Todo o fim, pois, das escolas infantis deve estar no robustecimento do organismo, na educação dos orgãos dos sentidos e no desenvolvimento das faculdades intelectuais das crianças, segundo as leis naturais do desenvolvimento humano, enriquecendo as faculdades infantis, hora a hora, dia a dia, progressivamente, com um considerável número de conhecimentos justos, precisos e verdadeiros.
(...) princípios destinados a servir de guia para à professora para a respectiva organização dos seus programas:
Bases para o programa de educação física
(...)
Educação dos orgãos dos sentidos
(...)
Desenvolvimento da habilidade manual
(...)
Desenvolvimento dos orgãos da fala
(...)
Desenvolvimento dos sentimentos morais. o sentimento da solidariedade
(...)
Desenvolvimento do sentimento do respeuito e da disciplina
(...)
Desenvolvimento da inteligência
(...)
Contar até 100 - soma e subtracção
(...)
Ensino da língua materna
(...)”
Dentro do seu articulado propiamente dito podemos encontar a orientação segundo a qual “os processos de ensino serão exclusivamente intuitivos” Artigo 3º) ; “sómente dos 6 aos 7 anos as crianças poderão receber lições mais metodizadas, não podendo todavia estas ter mais de 20 minutos de duração e sendo sempre separadas por cantos populares e patrióticos, jogos ou qualquer outra diversão, não esquecendo jamais que nas escolas infantis é brincando que a criança se educa”; “Na visita às escolas, observará o inspector (....) se o professor prepara convenientemente as lições de maneira a colher os resultados que o Estado e as famílias esperam do ensino”

Deste conteúdo é possível já retirar algumas ideias-fortes do Estado Democrático-liberal da 1ª República Portuguesa. Acentua-se a importância e o valor da educação física e dos sentidos, e a moldagens dos sentimentos. No fundo, pretende-se marcar precocemente a personalidade da criança para, mais tarde, ela poder ser um cidadão útil à República. O recurso a mecanismos intuitivos nesse processo, e na aprendizagem a ser efectuada, deve ser entendido como um dispositivo refinado alternativo à violência física e à propaganda grosseira não deixando de contituir um investimento potenciado na modelagem da personalidade precoce da criança.
Recorde-se que J. Varela (1991), na esteira de outros autores, e sob inspiração foucaultiana, chama a atenção para a importância da «ortopedia pedagógica» ou para a «cultura somática» que se depreeende de muitos dispositivos pedagógicos utilizados nas escolas e na educação.
O Decreto 2.887 de 5/12/1916 compila toda a legislação existente sobre o ensino infantil e primário, distinguindo-os ambos, e diferenciando o segundo em 3 categorias: elementar ( 3 anos), complementar ( 2anos), superior (3 anos). O ensino infantil é pensado para servir de apoio e de preparação para o ensino primário ( Conferir Artigos 5º e 6º), e segundo o Artigo 12º “ Todo o ensino primário deve ser essencialmente prático, utilitário e quanto possível intuitivo”, acrescentando-se no Art. 13º que “Os agentes deste ensino terão em vista que o fim da escola primária consiste em habilitar o homem para a luta da vida, ministrando uma educação que tenda substancialmente a esse fim”. Cardona (1997) faz notar que apesar da ligação que a 1ª República efectua entre a escola infantil e família, a ênfase é justamente pensar aquela em função das futuras aprendizagens. Nota ainda que o objectivo primeiro de toda a política educacional dos governos republicanos é a instrução o que bem se compreende dado os objectivos desenvolvimentistas perfilhados pelos políticos republicanos e considerável atraso socio-cultural da população portuguesa com percentagens altíssimas de analfabetismo. O Saber e a Instrução não são pois um fim em si mesmos mas com objectivos perfeitamente utilitários em prol do desenvolvimento económico.
O Decreto 6.137 de 29/9/1919 reforça as orientações anteriores e reforça a inspiração Montessoriana nos métodos preconizados ao fazer-lhe uma referêcia explícita no Artigo 16º e ao proclamar que a “professora deverá reduzir a sua acção à simples missão de guia, directora, intérprete, que formule questões, que estabelece problemas, esclarece erros, corrige desvios...” ( Artigo 14º).
Outro aspecto que reputamos de não menor significado diz respeito aos cuidados com a higiene e a referência constante a esta nos documentos oficiais. Sobre este tema e a função que o saber médico tem assumido na implementação de dispositivos de controle social sobre as crianças leia-se o texto de Ferreira e Rocha ( 1994).
Tanto a pedagogia perfilhada como as políticas educacionais seguidas pela República Parlamentar-Liberal sofreram um inflexão substancial a partir da Ditadura Militar e mais especialmente da institucionalização do Estado Novo corporativo.
A partir de então a educação começa a funcionar essencialmente como uma garantia para o estado, na defesa da “obsessiva prioridade dada à manutenção da ordem social e à preservação da identidade/independência nacional” (Stoer,1986)
Na Constituição de 1933 refere-se que o ensino deve ser orientado para os princípios tradicionais da religião católica, sendo a família considerada como base primeira da educação. E logo um Decreto de 1934 aprova os estatutos da Obra das Mães para a Educação Nacional (OMEN) que, entre outras finalidades, se define passe a ser responsável pela educação infantil e pré-escolar, em complemento da acção familiar. Ergue-se então uma concepção de educação de infância de natureza essencialmente assistencial e de conteúdos paternalistas, enquanto na educação em geral se assiste ao reforço da doutrinação ideológica ao serviço do Estado Novo, de que é prova o conteúdo dos livros únicos adoptados nos vários níveis de ensino como demonstra notavelmente a obra de Bivar(1971)
A Lei de Protecção à Infância (LPI) promulgada em 11 de Maio de 1911 visa, segundo os seus termos, a prevenir os males sociais que podem conduzir à perversão ou ao crime, os menores de 16 anos, ou comprometer a sua vida ou saúde, mas também a remediar os efeitos desses males. Para tal fim, eram criados tribunais especiais - as tutorias da infância - e a Federação Nacional dos Amigos e Defensores das crianças( que reúne todas as instituições, públicas ou particulares, de protecção à infância, assim como instituições de propaganda, de educação preventiva, de educação reformadora e de patronato) .Este diploma inaugura o moderno discurso jurídico-estatal de menores. A partir de então o delinquente que não tiver completado 16 anos está sujeito a este regime específico. Se a criança tiver até 9 anos a LPI não a considera delinquente, limita-se a entregá-la aos pais, ao tutor ou a uma instituição de assistência. A partir daquela idade introduz-se uma ideia de tratamento sobre o menor, nunca dissociando-se o castigo do fim educador que deve presidir ao processo. Prevêm-se ainda medidas diferenciadas conforme a gravidade do delito e a idade do menor. O Decreto nº 10.767 de 15 de Maio de 1925 altera e completa o diploma anterior. Não obstante a mudança política verificada, o sistema legal manteve-se inalterado no essencial. Nesse lapso de tempo a atenção recaiu na preparação do pessoal quer para magistrados, polícias quer para agentes de assistência e vigilância social, preceptores e educadores dos Serviços prisionais e dos serviços jurisdicionalizados dos menores.
O direito criminal de menores foi substancialmente reformado com a Organização Tutelar de Menores aprovada pelo Decreto lei nº 44.288 de 20 de Abril de 1962 que pretendia eliminar os vestígios da concepções punitivas e repressivas que ainda se mantinham no direito de menores, apesar de todas as proclamações de carácter preventivo e tutelar da LPI. Afastavam-se todas as ideias de responsabilidade moral, de reprovação social e castigo. Assim, a repreensão é transformada em admoestação; a liberdade vigiada, em liberdade assistida; a multa, em desconto no rendimento auferido; a detenção, em recolha em centro de observação; o internamento nos reformatórios ou nas colónias correccionais, em internamento em instituto de reeducação.
Nota-se, em suma, uma evolução de uma filosofia penal repressiva para uma outra de natureza preventiva, propedêutica, assistencial e educativa.
A OTM em vigor, aprovada pelo DL nº 314/78 de 27 de Outubro acentua o carácter protector e educativo que se pretende imprimir à jurisdição tutelar.
São quatro os aspectos que deverão merecer atenção na leitura e análise da legislação: 1) A ininputabilidade do menor; 2) o interesse jurídico a proteger ( o da segurança e paz social ou o do menor mesmo que inadaptado; 3) A influência estigmatizadora das instituições tutelares e penais, que longe de estarem preparadas, ainda reforçam o estigma do delinquente menor; 4) Incumprimento dos fins sancionatórios quando aplicados aos menores ( Molina,1988). Na posse destas linhas de análise não é difícil constatarmos a ineptidão do regime legal vigente e a indispensabilidade de uma pesquisa interdisciplinar sobre a matéria e a procura de soluções dentro desse âmbito, que não apenas no estreito quadro técnico-jurídico, o que requer uma visão holística como ainda uma adequada preparação do pessoal.

A Construção Estatal da Criança

Ao longo do presente trabalho observamos as relações do Estado com a criança por intermédio do discurso estatal por excelência, como é a produção legislativa, a partir da implantação da 1ª República até aos nossos dias. Não se tratou óbviamente de uma pesquisa exaustiva, mas antes de um levantamento das concepções e das ideias prevalecentes mantidas pelo Estado sobre a criança. E a esse propósito verificámos que as mudanças políticas arrastam consigo alterações no discurso e nas orientações adoptadas sobre aspectos particulares do mundo da infância. No entanto, a concepção geral sobre a criança e o seu papel no mundo social dos adultos não se alterou substancialmente, quando muito o que se assistiu foi ao reforço dos mecanismos estatais na consecução das medidas e finalidades relativas à criança. Os trabalhos de Ariès e outros sobre a construção socio-histórica da criança foram-nos úteis para situar as condições emergentes de como os adultos e a sociedade em geral tratam a infância na contemporâneidade. Por outro lado, os contributos da sociologia do Estado permitiram-nos desocultar o sentido e significado da organização estatal face ao seu discurso legislativo.
Nenhumas dúvidas nos oferecem que ainda haveria muito para escalpelizar sobre o tema. Mesmo as abordagens como a de Ariès não se mostram completamente satisfatórias. Quanto às teorias sobre o Estado é conhecido o debate sempre inacabado sobre a matéria. A referência a estas matérias neste trabalho serve sobretudo para contextualizar o assunto e caracterizar o tipo de abordagem, ou seja, a grelha analítica de que nos servimos para a respectiva teorização.
Nem o Estado é inocente, nem somos dos que pensam que as crianças o sejam. O paternalismo e o pedocentrismo são duas atitudes só aparentemente contrastantes. Ambas partem de partis-pris que carecem da devida justificação e, pior ainda, de duvidosa utilidade. A realidade é demasiadamente complexa para se compaginar com explicações de carácter monista jogando com uma única variável e à base de perspectivas simples e unilaterais. O que aparentemente é útil e vantajoso para a criança pode vir a revelar-se altamente manipulatório e regressivo. O assistencialismo, e sobretudo algumas das mais modernas concepções, de natureza fenomenológica, revelam-se à luz de uma análise mais exigente, profundamente perigosas ao postular um mundo infantil mirífico, pretensamente homogéneo, pronto a ganhar um direito de cidadania perfeitamente retórico e por demais perigoso para não dizer contraproducente.
Poder-nos-íamos por ventura questionar se muita da atenção dada às crianças não responderá mais às necessidades psicológicas dos adultos e até às exigências sociais e económicas do mundo social dos adultos, e não tanto ao reconhecimento da si ngularidade de ser criança. Na verdade, a hipervalorização retórica sobre as crianças a que hoje assistimos tanto por parte das pessoas em particular ( em especial pelas mulheres), como pela sociedade em geral ( através principalmente do Estado ) não terá tanto a ver com um recente “lugar ao sol” conquistado pela infância ( desmentido, aliás, pelo urbanismo, pelos produtos mediáticos até aos simples horários escolares...) mas com dispositivos psicológicos ( e sociais) dos adultos que procuram na retórica e nos mil e um cuidados ministrados às crianças paliativos para frustrações da mais variada ordem, desde mecanismos de sublimação libidinal, à rotina estupidificante do consumismo de massa, ao trabalho alienado e não-criativo, ao mal-estar civilizacional que se apoderou das sociedades desenvolvidas, tudo isto conjugando-se no sentido de virar as pessoas para as crianças e procurarem nelas um qualquer mundo perdido, uma qualquer bondade natural que lhes é recusada pelas condições socio-culturais , psicológicas e económicas em que vivem. Se anteriormente as crianças eram vítimas de desprezo e prepotência dos adultos, agora são o alvo sublimatório - seria a hipótese a trabalhar - da moderna civilização economicista.
O Estado paternalista, que vive proclamadamente acima dos cidadãos, e vela pela sua segurança e protecção, garante de uma dada ordem social e económica, não poderá deixar nestas circunstâncias de produzir toda um retórica benemérita a favor das crianças, não só com finalidades económico-sociais ao assegurar a reprodução da força de trabalho, mas ainda ao ser veículo de um discurso legislativo e de medidas políticas e administrativas aparentemente em prol da infânica - ainda que com nuances várias conforme as várias formas de poder político (Estado democrático liberal, Estado fascista, Estado democrático-social ) - está também a reproduzir uma determinada visão social ( e se se quiser, cultural ) da infância, porventura a mais elaborada e proficiente dentro dos limites permitidos pela formação socio-económica dominante. Uma visão a que não repugna até a concessão de um «direito de participação» e «direitos de cidadania» e que serão tanto mais rebarbativos quanto maior for sua formulação retórica.
Com efeito, a consideração estatal da criança como cidadão procura indexar àquela um lugar no mundo social dos adultos e implicítamente a negar a diferença e singularidade do mundo da infância. Face aos estreitos limites dos meios legitimadores e enunciadores do seu próprio discurso, é vedado ao Estado postular a criança de outra maneira que não seja em termos de cidadania, ou seja, segundo determinadados fundamentos e outros tantos enunciados que são privativos da própria filosofia do Estado , do Direito e da Sociedade, a que não são estranhos as condições sociais, históricas e económicas existentes.
Livros como o de Philippe Meyer ( “L’enfant et la raison d’État”), de J. Donzelot (“La Police des familles”), Vicente Romano (“La formación de la mentalidade sumisa”), Alberto Oliverio (“ Como nasce um conformista”) . são trabalhos teóricos de maior valia que contribuirão certamente para uma perspectivação interdisciplinar multifocal sobre o modo como o Estado articula a questão da infância, como um e outro se relacionam, e como a sociedade entretece tudo isto.
Pensamos pois que a construção estatal da criança, apesar de algumas virtualidades que se reconhece na protecção à infância, concentra em si uma perspectiva enviesada, que oscila entre o paternalismo e um progressivo pedocentrismo retórico, mas desconhece a criança em concreto. Isto como se o Estado pretendesse para salvar a mítica «idade de ouro» da infância matar a criança que vive dentro de cada «cidadão»!...




Bibliografia

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Autor do texto: AAS