A  consulta  a  um  dicionário  permitirá  encontrar   uma definição  de  Razão  como  aquela  faculdade  do  homem  que  lhe  permite  conhecer,  raciocinar  e  agir,  ou  ainda  como  o  conjunto  de  princípios  da  actividade  de  pensar  que  permita   raciocinar  bem, ou   por  outras  palavras, o  sistema  de  princípios  a   priori  que  rege  o pensamento  ( e  que  se  opõe  à  experiência); havendo  mesmo  quem  entenda  a  razão  como  o  conhecimento  natural,  oposto  ao  que  resulta  da  Revelação  ou  da  fé, enfim, a razão seria  o  raciocínio   conforme  os  factos.
Como  se  pode   constatar   existe  grande  ambiguidade   no  significado  do  termo,  que    aumentará  ainda  mais  quando  ficámos  a  saber   que  a   razão  pode  evocar  um  ideal, uma atitude  e  um  método.
A  razão  passa  por  ser  efectivamente  um  dos  «complexos  culturais»  mais  ricos  de  sentido  que  é  dado  ao  entendimento  humano.
Vulgarmente   opomo-la   ao  preconceito,  mas  podemos  entendê-la  como o  conjunto  de  formas  concretas  de  pensamento  e  acção   consideradas  como  racionais,    comummente   utilizadas  nas  ciências,  ou então  é  ainda    possível   pensar  a  razão  como  um  valor,  um  ideal  (concorrente  porventura  com  outros  valores). Como  quer  que  seja  torna-se  indispensável   ter  em  linha  de  conta   o  contexto   em  que  a    razão   se  concretiza,  as  estruturas  e  as  funções  para  que  esta    vai  servindo. Explicar,  por  exemplo,    como  e  por   que  é  que  se  chegou  à  ideia   segundo  a  qual  existe  uma  razão  que  subsiste  e  permanece  face  às  transformações  sociais  e   culturais.
Da tradição  greco-latina  podemos  reter  três  ideias  fundamentais  a  propósito  da  razão: 1º) A  razão  é vista  como  o  raciocínio  correcto, oposto  ao  conhecimento  imperfeito  e  ilusório  dos  sentidos  e  à  opinião  que  nasce  da  rotina; 2º) A  distinção  entre  formas  diferentes  de  razão  como  a  «razão  discursiva»,  isto  é, o  pensamento  articulado  através  de  um encadeamento  de   raciocínios,  e  a  «razão  intuitiva», capaz   de  captar  as  verdades ou  as  essências   num  único  momento  sem  necessidade  de  um processo  demonstrativo; 3º) A  razão  não  teria para  os  antigos  apenas  uma  função  de  conhecimento  mas    aplicar-se-ia  igualmente  à  prática    por  via  da  sageza  e  da  prudência. Para  Aristóteles  a  virtude  da  prudência  consistiria   em  alcançar  aquilo  que  o  homem   pode  realizar  segundo  os   «cálculos  da   razão», os  quais  seriam  comandados  por  uma  regra  ou  um  princípio  que  se  tornou  uma  das  expressões  mais  marcantes  da  sageza  grega:  a  busca  em  todas  as  coisas  do  «juste  milieu».  Não   se  esqueça  que Sócrates  assimila  o  irracional  ao  mal, à  ignorância,  considerando  o  exercício   da   razão  a  condição  primeira  para  a  virtude.
Ora    todo   este  pensamento  grego    acerca   da  razão  só  pode  ser  devidamente  entendido  se  recordarmos  que,  entre  outras  variáveis  que  não  cuidamos  por  ora,  a  sociedade  grega  vivia  à  base  de  uma  massa  de  escravos  que  libertava  os  gregos,  os  homens  livres, para  o  gosto  e  o  culto  deste  conhecimento,  desta  forma  de  entender  a razão.
Mas  um  aspecto  que  assumiu  para  a  posteridade as  maiores  consequências  foi  justamente  a  distinção  entre  a  razão  discursiva  e  a  razão  intuitiva,  associando-se  normalmente  o  pensamento  claro  à  primeira,  e  as formas  de  pensamento  mais  ou  menos  obscuros  ao  segundo.  A  isto  não  terá   sido    certamente  estranho    Platão  quando   qualificava  de  delírios  as  três  formas  de  inspiração ( o  amor, a  divinização, a poesia )  e  ligava-as   à  razão  intuitiva.  Na  verdade,  a   partir  de  então  não  mais  se  deixou  de  privilegiar  a  razão  discursiva.
A  filosofia  chama  a  si  o  estudo  da  história  da  razão  humana  opondo  esta  ao  mito  e  à  idade   mítica  (ou   consciência  mítica)  que  constituiria  a  pré-história  da  própria  racionalidade,  mas  da  maior  importância  para  a  configuração  e  a  compreensão  desta última.
Recorde-se  que  o  mito  é  um  símbolo  que  vale  por  si  mesmo,  onde  a  separação  entre  significante  e  significado  não  existe.  Para  o  pensamento  mítico  o  símbolo  não  se  separa  do  concreto,  do  percebido,  pois  é  uma inteligência   que  funciona  por  dados  concretos  que  adquirem  na  narrativa mítica  uma  significação  simbólica. 
A  dimensão  do  abstracto  não  existe  na  consciência  mítica,  cuja  lógica  está  muito  próxima  da  intuição  sensível,  a  qual  transforma  por  assim  dizer  as  percepções  em  símbolos.
Inversamente,  para  a racionalidade  abstractizante   a  intuição  sensível, o concreto,  é  uma  parte  da  realidade  que  será  progressivamente  abandonada  para  se  passar   a  níveis  de  abstracção   cada  vez  mais   elaborados.
A  interpretação do  real  pela  consciência  mítica  realiza-se  por  construções  simbólicas  do  mito  que  nasciam duma sabedoria  concreta,  sensível.    Para  Lévi-Strauss  existem  dois  modos  distintos  de  pensamento,  correspondentes  não  a  estados  desiguais  de  desenvolvimento  do  espírito  humano,  mas  a  dois  níveis  estratégicos  pelos  quais  o  conhecimento  aborda  o  real: um  aproximativamente  ajustado  ao  da  percepção  e  da  imaginação;  o  outro  deslocado,  onde  a  racionalização  acaba  por  se  traduzir  num  processo  de  afastamento  contínuo  do  mundo  sensível,  e  implicando  uma  separação  nítida  entre  o  objectivo  e  o  subjectivo,  que  passam  a  constituir  um   dos  desideratos   resultantes  dessa  lógica  racional.  A  ordem  racional  que  se  acabou  por  se  tornar  dominante  assenta  pois  na  separação  clara  entre  o  símbolo e  a  realidade; no  afastamento  e  distinção  entre  a  intuição  sensível  e  o conceito  abstracto;  na  cisão  entre  sujeito  e  objecto,  entre o  plano  da  subjectividade  e  da  objectividade.
A  racionalidade  instaurada  com  a  filosofia  pós-socrática  entra  pois  em   ruptura  com  o  mito,  podendo  dizer-se  que   em  grande  medida   a  história  da  evolução  humana  consiste  nas  diferentes  estratégias  de  conhecimento  do  objecto  por  parte  do  sujeito.
E  a  razão discursiva,  que  se  tornou   dominante   no  pensamento  ocidental,  é  um  «dizer  inteligível», «um  discurso  coerente»  sobre  os  materiais  fornecidos  pela  experiência  -  oposta  a  uma  outra  dimensão  racional,  mas  com  um  estatuto  subordinado,  associada  à  criatividade,  à  construção  de  universos  de  sentido,  de  mundos  possíveis  que  rompem  com  os  dados  imediatos.
Na  história  da  razão  ocidental  relevam  três  momentos  de  destaque:  a  revolução  socrática,  a  revolução  cartesiana  e  a  revolução  idealista. Na  primeira  o  homem  torna-se  o  objecto  de  conhecimento  através  da  razão,  momento  a  partir  do  qual   esta  assume   a   maior  importância  para   o  desafio  que  é  lançado  pela    radicalidade  inquietante  do  real.  Em  Platão  a  razão  surge  naturalmente  como faculdade  que  permite  o  conhecimento,  ou  seja, só  racionalmente  o  homem  pode  avizinhar-se  da  realidade.  Descartes  funda  o  racionalismo  moderno  inspirando-se  no  modelo  matemático  para  construir  um  conhecimento  que  não  ofereça  dúvida  alguma  a partir  de  uma verdade  indiscutível,  para  o  que  teve  de  estabelecer  uma  dicotomia,  que  nunca  mais  abandonará  a  filosofia  moderna,  entre  a  «res  cogitans» (coisa  ou  realidade  pensante)  e  a  «res  extensa» ( coisa  ou  realidade  material), isto  é, postula  uma  separação  radical   entre  a realidade  espiritual  e  corpórea,  comunicantes  entre  si  apenas  pela  glândula  pineal.
Esta  separação  radical  entre  espírito  e  matéria  teve   como  consequência  o  facto  dos  filósofos  e  pensadores  posteriores não  mais  deixarem  de  privilegiar  um  dos  dois  termos  do  binómio,  ora  afirmando  o  espírito  como  o  verdadeiro  real  (idealismo),  ora   dando  primazia  à  matéria (materialismo). Por  outro  lado,  esta  distinção  entre  objecto/ser   levará  posteriormente  à tendência   de  se  reduzir  toda  a  realidade  ao  objecto,  caindo-se  no  objectivismo, ou então  à  tendência  de  reduzir  a  realidade  às  estruturas  subjectivas  do  ser.
Enquanto  Descartes  amplia   o  raio  de  acção  da  razão,  Kant  preocupa-se  por  seu  lado  em  traçar  os  seus  limites, isto é, esforça-se  em  estudar  os  elementos  a priori  do  conhecimento, opostos  à  materialidade  da  intuição  sensível. Procura  encontrar  os  quadros  do  conhecimento  que  considera  serem eles  próprios  uma  definição  do  espírito  enquanto  faculdade  de  conhecimento. Opera  a  chamada «revolução  coperniciana»   ao  colocar  sob  a  dependência  da  estrutura  dita  «transcendental»  do  sujeito   a  percepção  e  o  conhecimento  dos  objectos. No   fundo,  a  racionalidade  para  Kant  consiste   em  reconduzir  à  unidade  das  categorias  do   pensamento  os  elementos  dispersos   do  real. A  essa  faculdade  de  síntese  que  permite  a  passagem  das  intuições  sensíveis  às  experiências  do  sujeito  pensante   relativas  aos  objectos  chama  Kant   raciocínio ( Verstand),  reservando  o  termo  razão (Vernunft) a  um  grau  superior  de  síntese  de  conhecimentos. Sugere  pois  que  a   razão  tende  naturalmente  ultrapassar  a  experiência,  faz-nos-ia  conhecer  objectos  de  uma  ordem  superior,  não  presentes  na  nossa  simples  experiência. Note-se  ainda  que  Kant  refere-se  a   uma  outra  forma  de  razão,  a  chamada   Razão  prática,  ligada  à  faculdade,  não  de conhecer  os  objectos,   mas  de  gerar  máximas  de  acção  moral,  e   em  que  os   seus   postulados se  impõem  como  imperativos  categóricos, incondicionais,  fazendo   da Razão  prática  a  origem, não  do  conhecimento,  mas  duma  acção  conforme  o  destino  do  homem.
Kant  é  o  filósofo  do  Iluminismo  que  sugere    a  ideia  da  capacidade  da  razão  natural  ser  capaz  de  conduzir  os  homens  à  ciência  e  à  sabedoria.  A razão  deixa  de  ser  a  soma  das  ideias  inatas (Descartes)  para  se  confundir  com  uma  actividade  que  trabalha  os  materiais  sensíveis.  a  razão  define-se  menos  como  uma posse  que  como  uma  forma  de  aquisição  dos  dados  da  experiência.
Este  optimismo  pela  razão  é  atenuado  por  Hegel  ao  descobrir  o  carácter  histórico  da  razão:  ela  é  a  tomada  de  consciência  de  uma  harmonia  fundamental  entre  a  verdade  objectiva  e  os  nossos  pensamentos  subjectivos,  mas  esta  consciência   é  uma  conquista   obtida  ao  longo da  história  da  humanidade. Para  Hegel  esta realização  progressiva  da  razão  efectua-se  por  um  processo  que  ele  designa  por  dialéctico  e  se  consubstancia  no  movimento   incessante  que  arranca  da  afirmação, passa  à  negação  e  conclui  na  negação  da  negação  através  de  uma  síntese  provisória  (tese-antítese-síntese).  Escreve  Hegel: “  A  única  ideia  que  a  filosofia  nos  dá  é  a  da  Razão,  a  ideia  segundo  a  qual  a  Razão  governa  o  mundo  e  por  consequência   a    ideia  pela  qual  a  história  universal  se  desenrola  racionalmente... A  Razão  é  a  substância, isto é,  algo através  do  qual  a  realidade  encontra  o  seu  ser  e  a  sua  consistência.  Ela  é   a  infinita  potência ... Um  fim  último  domina  a  vida  dos  povos;  a  Razão  está  presente  na  história  universal,  não  a  razão  subjectiva  e  particular,  mas  a  Razão  divina,  absoluta.”
Esta  arrogância  da  razão  gera  naturais  reacções  anti-racionalistas de  que  são  exemplo as   filosofias  de Fichte,  Nietzsche,  Schopenhauer,  Kierkegaard, Bergson; e   correntes  literárias como  o  Romantismo.         
Fichte    ao   revalorizar  o  plano  impulsivo  do  sujeito   está  a  recuperar  o homem  total:  o  ser  humano  dotado  de  intelecto,  mas  também  constituído   pela  afectividade,  motora  da  acção.  A  vontade,  e  com  ela,  o  plano  instintivo  e  afectivo  do  ser  humano  voltam  a  ser  tema  central  das reflexões  posteriores.
Schopenhauer  fala  de  uma radical  contingência,  de  uma  ausência  de  fundamentação  racional,  face  a  uma  vontade  infinita,  devoradora  de  si  mesma.
Kierkegaard arremete  contra  Hegel    e   a  universalidade  da  razão,  o  mundo  da  necessidade  imposto  por  essa  mesma  razão,  em  que  a  liberdade   humana  mais  não  é  que  a  aceitação  racional  dessa  necessidade. Ao  invés,  Kierkegaard  conhece  no  homem  um  ser  que  goza  da  suprema  glória  de  não  estar  pré-determinado,  e  que  assim  sofre a  suprema  angústia  da  possibilidade.  O  que  domina  no  pensador  dinamarquês  é  a  existência  do  homem  concreto, individual  que  nega, pela sua  individualidade,  a  abstracção  da  Ideia. Não lhe  interessa  conceptualizar  a  existência,  mas  defrontar  a  realidade  concreta  em  que  se  dá  o  drama singular,  o transe  dramático  da  possibilidade.
Nietzsche  insere a  razão  e  a  sua  história  numa  história  mais  geral  que  seria  a  história da  moral. A  finalidade  de  Nietzsche  é  mostrar  como  o  homem  dotado  de razão  é  uma  figura  nascida  em  determinadas  condições  históricas  e  culturais,  ligada  ao  aparecimento  e  sedimentação  de  certos  valores  e  que,  pos  isso,  o  homem,  antes  de  ser  racional,  é  um  ser  moral.  Deste  modo, a  razão  e  outros  conceitos,  devem  ser  concebidos  como  valores,  criados  por  uma  moral. Daí  a  urgência  de  uma  genealogia  da  moral  que  se  mostra  como  a  única  capaz  de  explicar  em  profundidade  a  essência  da  chamada  racionalidade  humana. O  pensador  alemão  vai  encontrar  em Sócrates  e  na  moral judaico-cristã  a  origem  de todo  o  processo  dicotómico  entre as  essências  ou  ideias  por  um  lado,   e  o conhecimento  instável  aparente  do  mundo  sensível,  modelo  de  pensamento  que  acabará  por  se   impor  na  cultura  ocidental,  um  modelo  que  estabelece  uma  dualidade  de  realidades  com  valores  diferentes.
A  atitude  romântica  defende  a  primazia  dos valores  vitais sobre  os  valores intelectuais,  entendendo  por  aqueles  os  que  têm  as  suas  raízes  na  vida  biológica  por  oposição  aos  que  resultam   de  uma  imagem  da nossa  existência  reflectida  pela  inteligência. Exalta-se  o  poder,  o  amor, a  intuição (Bergson  opõe esta  última  à  inteligência  das  coisas  inertes,  que  predominaria  no  reino  das  ciências).  Promove-se   um  estilo  de  existência  que  valoriza  a  acção,  a  emoção  e  a  paixão.  No  domínio  do  conhecimento    a   atitude  romântica  opõe   ao  modelo  da  razão  abstracta  e  do  método  científico,  o  modelo  de  um  saber  directo  e  indecomponível.
A  escola  romântica  recusa  o  pensamento  do  racionalismo  iluminista  ( a  razão  discursiva)  ao  valorizar  a   imaginação,  a  sensibilidade,  a  intuição, a  singularidade  do  indivíduo.
Mas  tudo isto  não  impede  o  desenvolvimento  da   ciência.  Com  efeito,  se  o séc. XVIII  foi  chamado  o  século  das  Luzes,  o  século  XIX  é  conhecido  pelo  século  das  ciências.  Na  verdade, emergiram  nessa  época  novas  ciências,  e   vieram   a   obter-se  novas  descobertas  técnicas  e  científicas. Amparado  na  visão  determinista  da  razão  científica  o  positivismo  reforçou  o  cientismo  e  um   conhecimento   puramente  racional.  A  Revolução  industrial,  com  a  consequente  industrialização, acaba  por  impor  um  pensamento  ao  serviço  dos  números  e  do  dinheiro.  O  século XIX  concretiza  as  certezas  da  ciência  positiva  e  actualiza  o  triunfo  da  era  prometaica  iniciada  com  o  Renascimento. Prometeu,  herói  na  antiga  Ática, é  conhecido  por  ter  ensinado  aos  homens  o  saber  que fundamenta  a  civilização:  a  arte   de  trabalhar,  de  construir,  de  curar.  Trata-se  de  um  titã que  simboliza  a  revolta  humana  contra  a tirania  do  real  e  da  matéria.  Acontece  que  o  Prometeu  dos  tempos  modernos,  assoberbado  pela  obra  feita  e  dominado  por  um   poder  sem  freio, precipita-se para  a  sua  própria  queda.
A  consciência  ecológica  é  porventura  o  mais  transparente  sintoma   deste  sinal  dos  tempos. A  razão  e  a  ciência  tantas  vezes  idolatrada   recebem  aceradas  críticas  e  fala-se  até  de  crise  da  razão. O  vitalismo  bergsoniano,  o  pragmatismo  e  a   psicanálise  freudiana  mostram  todo um  mundo  que  se  esconde  por  trás  da  razão    omnipotente. As  próprias  guerras mundiais  levam  à  interrogação  sobre  o  poder  auto-destruidor  da  razão,  surgindo  esta  não  poucas  vezes  associada  à  opressão.  Aparece  cada  vez  mais  a  urgência  de  reequacionarmos  o  papel   e   o lugar  da  razão  no  mundo real. Humanistas ( Sartre)   e  anti-humanistas  ( estruturalismo,  mas  também   Heidegger  que  vê  o  homem  como  «pastor  do  ser»)  defrontam-se  numa  realidade  que  é  marcada cada  vez  mais   pelo  poder   da  tecnociência  e  do  audiovisual.
A  filosofia  das  ciências  e  a  epistemologia  entram  em  campo  e  assiste-se  ao debate entre  neopositivistas,  a  epistemologia  Bachelardiana, o  racionalismo  crítico  de  Popper,  a  teoria Kuhniana  dos  paradigmas  científicos  e  o  anarquismo  epistemológico  de  Feyerabend  sobre  a  possibilidade,  a  validade  e  a  operacionalidade  da  ciência,  e  com  ela  e  razão,  no  conhecimento  da  realidade. Na  conhecida  obra  de  Feyerabend, “Adeus à  Razão”,  o  autor,  que reconhece uma  certa  paridade  entre todos  os  tipos  de  aproximação  ao  real, assim  como  as  várias  estratégias  metodológicas  utilizadas  para  tal,  escreve  a  dado  passo: “...desenvolvamos  uma  nova  espécie  de  conhecimento  que  seja verdadeiramente humano,  não  porque incorpore  uma ideia  abstracta  de  humanidade,  mas  pelo simples  facto  de  que  todos possam  participar  na  sua  construção,  e utilizemos  esse conhecimento  para  resolver  os  dois problemas  mais  graves que  estão  pendentes,  o  da  sobrevivência   e  o  da  paz...”
Quanto  às  ciências  sociais  e  humanas  o  panorama  das ideias  altera-se  em  pouco  mais  de  vinte  anos:  o  estruturalismo  predominante  não  há  muito  tempo  é  substituído  pelo  individualismo (o  indivíduo  como  actor  de  acção social )  e pelo  irrupção  do  interaccionismo. A  morte do  homem  anunciada  por  Foucault  denuncia  a  própria  construção  socio-cultural (  e  ideológica )  da  ideia  de  homem,  e  com  ele,  da  razão  que  o  acompanha.
Este  final do  século  reabilita  a  natureza  e  liga  o  homem  a  esta. Ao  contrário  da  oposição  clássica  entre  natureza e  cultura,  e  da  idealização  do  humano,  Edgar  Morin   condena  a  “noção  insular  do  homem, isolado  da  natureza  e  da  sua  própria  natureza”  e  acrescenta: “...o  que  tem  de  morrer  é  a  auto-idolatria  do  homem,  que  se  admira  a si  próprio  na  imagem  pretensiosa  da  sua  própria  racionalidade”
 Max  Weber,  conhecido  pelo  seu  estudo  sobre  a  burocracia, prefere  uma  sociologia  compreensiva  a  uma  sociologia   explicativa. Para  ele  o  interesse  das  ciências  sociais  é justamente  encontrar  o  sentido  que  as  actividades  sociais  tomam  para  os  próprios  actores,  e  preconiza  o  estudo  do  comportamento  individual  e  a  significação  subjectiva  da  acção.
Alfred  Schutz  e  a  análise  fenomenológica    que  faz   do  mundo  social  assim  como  a  metodologia  proposta  sobre  a  articulação   entre  o  investigador  e  a  vida  quotidiana  inspiram-se  até  certo  ponto  em  Weber,  procurando  ir  mais  longe  na  pesquisa    do  sentido  que  o  sujeito  dá  à  sua  acção.         
Racionalidade  no  sentido  sociológico do  termo  consiste  justamente  nas  razões  que  levam  um  indivíduo  a  agir  desta  ou  daquela  maneira. Desta  definição  parte  o  individualismo  metodológico  para  o  seu  estudo  que  se  se  traduz  numa  análise  que  pressupõe  que  todo  o  fenómeno  social  deve  ser  compreendido  como  o  produto  de  acções   individuais.
O  sociólogo  francês  Maffesoli  acrescenta  no  entanto  a  esta  primazia  da  existência,  à  factualidade  fractal  e  efémera  das  construções  individuais,  e  consequente  pluralismo  cognitivo,  a  visão  holística  da sociedade,  na  medida  em  que  a  compreensão  da  sociedade  repousa  numa  análise  que  saiba  integrar  as  dimensões  económicas, políticas, organizacionais, culturais, imaginárias  e  quotidianas.  O  causalismo  e  o  quantitativo  nas  ciências  sociais não  devem  obstaculizar  ao  estudo   das  actividades  do  quotidiano  como  sejam  o sonho, o jogo,  a teatralidade,  os  rituais,  enfim,  ao  imaginário  que  povoa  as  experiências  quotidianas  dos  homens  concretos.
Aponta  inclusivamente  as  premissas  epistemológicas  de  um  tratado  de senso-comunologia, que  pretenderia  ser  o  resultado  da  sua pesquisa  sociológica: 1) crítica  ao  dualismo esquemático ( por  exemplo,  entre o  abstracto  e  o  concreto); 2)  formismo, uma  vez  que  a  sociolgia  estuda  as  formas  da  vida  social  enquanto  continentes  receptivos  a  conteúdos  diversos,  e  a  formal  é  formante  e  não  simplesmente  formal; 3) sensibilidade  relativista ; 4) pesquisa  estilística  e  estetizante; 5) um  pensamento  libertário.
Obviamente  que  um  saber  quotidiano  deste  tipo  requere  e  exige  uma  epistemologia  e   é,  justamente,  para  este  aspecto  que  Moisés de  Lemos  Martins  chama  a  atenção  no  seu  artigo  publicado  no  nº37  da  Revista  Crítica  das  Ciências  Sociais.
Gilbert  Durand  distingue  duas  correntes  nas  ciências  sociais  que  rompem  ambas  com  a  sociologia  positivista  e  que  exploram  domínios  inexplorados: a  primeira,  que  inspira  toda  a  etnologia  contemporânea,  estuda  os símbolos,  os  mitos  e  os ritos  enfim do  que  se  afasta  das nossas  sociedades,  e  tem  em  Roger  Caillois o  principal  representante;  a  segunda  debruça-se  no  que  é  mais  comum  da  nossa  vida  actual, reabilitando  o quotidiano,  sendo  o  precursor  desta  corrente  o sociológo  alemão  Georges  Simmel  que  no  início  do  século  lançou-se  na  análise  das  futilidades  como  a  moda,  a  fotografia, etc, e  tem  como  actuais representantes  nomes  como  Jacques  Bril, Pierre  Sansot, Michel  Maffesoli (fundador  duma  estética  sociológica,  atenta  às  figuras  do quotidiano,  ao  frívolo,  ao  efémero), todos  eles  saídos  da  Escola  de  Grenoble. Não  muito longe   destas  correntes  andam  ainda   a  sociologia  dita  das  “histórias  de  vida” (Ferraroti), e  autores  como  Castoriadis  (livro: L’Institution  imaginaire  de  la  société)  e  Balandier. Em  todos  estes  autores  como  bem  nota   Durand  “...um  esforço  para  reencantar  o  mundo  da  pesquisa  e  o  seu  objecto (o «social» e o «societal» ),  que  tão  desencantado  está  pelos  conceptualismos,  pelas  rígidas  dialecticas  e  pelos  positivismos  unidimensionais.(...)  Doravante   a  sociologia  quer-se  figurativa,  fundada  no  conhecimento  ordinário  do  quotidiano,  em  que  sujeito  e  objecto  não  são  mais  que  um  no  acto  de  conhecer,  e  em  que  o  estatuto  simbólico  da  imagem  se  torna  o  modelo  o  paradigma”.
Pelo  lado  da  filosofia,  Wunenburger  denuncia  a  lógica  e  o  modelo  de razão  que  tem  prevalecido  até  aos  nossos  dias.  Propugna  uma  lógica  que  aceite  as  contradições, os  conflitos,  as  oposições, enfim, uma  razão  contraditória.  E  descobre  duas  linhas do pensamento  contemporâneo  que  tentam  superam  a  razão identitária  clássica: uma  que  postula  uma  totalidade  compósita,  poliédrica, antagónica, holística; uma  outra  promove  modos  de  pensar  contraditórios  e  paradoxais.
Ainda do  lado  da  filosofia  temos  a  obra  de  Michel  Onfray  que  recupera  um  certo  hedonismo  dos  gnósticos  licenciosos,  dos  livre-pensadores  e  dos  libertinos  eruditos para    construir  uma   «Art  de Jouir»  a  partir  dos  escombros  da  razão  clássica  e  das  verdades por  ela  proclamadas,  não  se  cansando  nunca  de  lembrar  que  Dionysos  é  o  pai  de  Apolo.
Do  nosso breve  e  muito  resumido  excurso  pela  história  longínqua ( e  recente  )  da  razão  deriva  a  ideia  de riqueza  e  complexidade  do  seu  significado. Uma  razão  sensível  não  se  deixa  aprisionar  pela  razão  e  lógica  abstracta  e  descarnada,  antes  pelo  contrário alimenta-se  e  dirige-se  para  a  vida , o  quotidiano, a  experiência  e  procura  compreender a  dimensão  trágica  da  vida. Não  se  trata  de  uma  razão  asséptica, fria  e distante  do  objecto  que  cura  em  apreender. Afinal, do  que  se  trata,  e  outra  coisa  não  seria  possível,  é  de  uma razão  humana,  demasiadamente  humana.
Bibliografia  consultada:
Durand, Gilbert - L’Imaginaire- ed. Hatier
Feyeraben, P. - Adiós a la razon - ed. tecnos
Granger, G.G. - La  Raison - ed. PUF
Maffesoli, M. - O  Conhecimento  do  quotidiano
                        A  Conquista  do  presente
                         Aux  creux  des  apparences, pour  une  éthique  de  l’esthétique
Onfray, M. - L’Art de  Jouir - ed Livre  de  poche
Russ, J. - A  Aventura  do  pensamento  europeu - ed Terramar
Schutz, A. - Le chercheur  et  le  quotidien - ed. Klincksieck
Wunenburger, J.J. - A Razão  contraditória - ed. Instituto  Piaget
         
    
           
 
